O suicídio de três jovens que, há uns meses, em Lisboa, se lançaram do viaduto Duarte Pacheco sobre a avenida de Ceuta por causas que ao que tudo indica se ficaram a dever ao desespero da toxicodependência, foi mais um testemunho chocante daquele que é um dos mais temíveis flagelos com que as sociedades contemporâneas se confrontam e contra o qual é indispensável definir e executar políticas mais concretas e eficazes.
Chamar a atenção para a enorme gravidade social que o consumo e tráfico de drogas assumem no nosso país está longe de ser uma atitude alarmista. Muito pior seria, sem sombra de dúvida, optar pelo silêncio ou por visões falsamente optimistas sobre um fenómeno cuja gravidade e cujo agravamento não podem responsavelmente ser ignorados.
Apesar de não existirem dados seguros sobre a real dimensão da toxicodependência, não é preciso frequentar os chamados hipermercados da droga para ter uma ideia da sua gravidade. Basta andar na rua. Basta saber da insegurança em que se vive perante a marginalidade crescente que decorre do consumo e tráfico de drogas. Sabe-se que não há dia que passa em que não haja mortes provocadas pela droga, seja por overdoses, seja por suicídio, seja por ataques cardíacos. Sabe-se da impunidade com que o tráfico de drogas se processa em locais públicos de forma muitas vezes assumida e até arrogante. Sabe-se das listas de espera de longos meses para obter uma consulta num centro de atendimento de toxicodependentes. Conhecem-se os casos de autêntica espoliação e mêsmo de charlatanice praticados sob o rótulo de pseudo-clínicas ou comunidades terapêuticas que prometem tratamentos infalíveis e que, perante a inércia do Estado ainda se apresentam como virtuosas criações da sociedade civil. E sobretudo não há ninguém que não conte entre os seus familiares, amigos, ou conhecidos, alguém que não sinta na sua própria vida as consequências dramáticas da toxicodependência.
Estão hoje claramente desacreditadas algumas teses recentes que apontavam para a contenção ou mesmo para o retrocesso do consumo de drogas em Portugal. Tudo aponta, infelizmente, para o contrário. É um facto inquestionável que a droga é hoje em dia, justamente, uma das maiores preocupações para a generalidade dos cidadãos.
Num passado recente, a dimensão do fenómeno da toxicodependência chegou a ser minimizada, com afirmações injustificadamente optimistas acerca de uma suposta contenção do crescimento do consumo de drogas. Tais afirmações, que os factos conhecidos categoricamente desmentem, visavam sobretudo criar a ilusão de que as políticas governamentais de combate à droga eram eficazes e estavam a produzir resultados visíveis. Quando a verdade é que essas políticas se têm caracterizado sobretudo, até à data, por uma forte presença mediática a contrastar com uma manifesta insuficiência de intervenção real.
Em todos os anos são prometidos os mesmos centros de atendimento para o ano seguinte, em todas as semanas europeias contra a droga se proclama a contenção do fenómeno; e periodicamente, lá se alteram nominalmente as fórmulas e estruturas do Projecto Vida reconhecendo o fracasso por demais evidente das fórmulas e estruturas anteriores. Entretanto, o tráfico continua a processar-se com larga margem de impunidade a todos os níveis; os centros de atendimento tão prometidos continuam por abrir; continuam a faltar os meios e a coordenação no combate à droga.
A falta de meios acessíveis para o tratamento e a reinserção social de toxicodependentes no nosso país, é uma vergonha nacional com que não nos conformamos.
Não podemos permanecer indiferentes perante listas de espera de meio ano para obter uma consulta num centro de atendimento da Grande Lisboa.
Não podemos aceitar que existam em todo o país, em instituições públicas, apenas 50 camas em unidades de desintoxicação.
Não nos resignamos perante a inexistência de centros de atendimento de toxicodependentes nos distritos de Bragança, de Vila Real, da Guarda, de Portalegre e de Beja.
Não aceitamos que ao desespero de milhares de toxicodependentes e das suas famílias se acrescente o drama de procura, em vão, soluções de tratamento idóneas e acessíveis.
Não aceitamos que, perante a inércia de Governos que não assumem as suas responsabilidades, o pseudo-tratamento de toxicodependentes apareça como um negócio paralelo ao tráfico de droga.
Não aceitamos que milhares de toxicodependentes sejam acantonados em estabelecimentos prisionais por falta de instituições onde possam encontrar soluções de tratamento e reinserção social que a própria lei prevê e incentiva.
A rede de serviços públicos que propomos, integra uma unidade de atendimento de toxicodependentes por cada distrito do país, seis novas unidades de internamento de curta duração, uma rede de comunidades terapêuticas dimensionada na base de uma cama para cada dez mil habitantes.
Não propomos portanto nada de exorbitante, de incomportável ou de difícil concretização. Propomos apenas que haja um pouco de vontade política para assegurar algumas das responsabilidades de que o Estado não se pode demitir.
Aqueles que nos acusam de estatizantes e de inimigos da iniciativa privada por propor-mos que o estado assuma as suas responsabilidades no tratamento de toxicodependentes, não estão mais do que a procurar subterfúgios para pactuar com a desgraçada situação existente.
O que propõem afinal, os que contestam este Projecto de Lei?
Esquecem porventura que, perante a inércia do estado, o tratamento de toxicodependentes tem sido quase exclusivamente entregue à iniciativa privada, onde se confundem instituições meritórias com autênticas associações de malfeitores?
É este o liberalismo que defendem?
Esquecem porventura que, de entre os milhares de camas para tratamento de toxicodependentes que por aí se diz que existem, nem uma só se encontra devidamente licenciada?
É este o papel do Estado que defendem? E quem defende os toxicodependentes e as suas famílias?
Negar o investimento público no tratamento e reinserção social de toxicodependentes é pactuar com aqueles que vivem da exploração do desespero dos toxicodependentes e das suas famílias, num negócio que por vezes assume contornos quase tão sórdidos como o tráfico de droga e que em casos já se confunde com ele.
Não assumam a responsabilidade de pactuar com este estado de coisas. Não ponham o vosso fundamentalismo neo-liberal à frente de valores humanitários essenciais.
Não ignoramos que o combate à droga tem de ser travado em várias frentes, complementares e indissociáveis. Não é possivel desligar o combate primordial ao tráfico de droga, da prevenção primária, da prevenção secundária e da reinserção social. Em qualquer destas áreas é necessário actuar mais e melhor.
Porém, sem subestimar a importância das restantes vertentes do combate à droga, para as quais temos vindo a contribuir com a nossa iniciativa, reflexão e propostas, entendemos que esta proposta concreta, num domínio tão gritantemente carenciado como a prevenção secundária, não só se justifica plenamente, como é absolutamente urgente.
Para suportar financeiramente a exequibilidade deste Projecto de Lei bastaria utilizar para esse efeito apenas uma parte das verbas que anualmente são disponibilizadas pelo Joker e que são distribuídas sem critérios que se conheçam.
Não podemos permitir que os cidadãos que, por vicissitudes da sua vida, caem nas malhas do consumo de drogas e se tornam dele dependentes, fiquem entregues apenas à sua falta de sorte. É nosso dever assegurar-lhes um mínimo de possibilidades de apoio, de tratamento e de reinserção. Ao apresentar o presente Projecto de Lei, assumimos as nossas responsabilidades. Convidamos cada um a assumir as suas.