África tem sido o continente mais próximo, mais esquecido e mais explorado. Isto, claro, na perspectiva histórica, económica e social que é, como nos é próprio, abusadamente eurocêntrica.O continente africano é o segundo mais populoso (depois da Ásia) e o terceiro mais extenso (atrás da Ásia e das Américas). Com pouco mais de 20% da área total da terra firme do planeta e com menos de 15% da população mundial.
Como o classifica a estatística económica, África é o continente mais pobre do mundo, e toda a sua história é a do retardamento ou da obstaculização do seu desenvolvimento.
No seu conjunto, o seu PIB é de apenas 1% do PIB mundial e o continente participa em 2% das transacções comerciais mundiais. Cerca de um terço da população de África vive com menos de 1 dólar por dia, definido pelo Banco Mundial como limiar da pobreza absoluta.
O colonialismo e a escravatura marcam a história de África, “escrita” por quem a atravessou, a circundou, a ocupou, para dela extrair o que lhe interessava e, não querendo (re)fazê-la, resumi-la ou sequer anotá-la, apenas deixo a significativa amostra da configuração dos países de hoje, herdada das colónias criadas ao longo dos rios para servirem de penetração e forma de trazer para o mar as “riquezas”, particularmente os escravos. A ilha de Goré, no Senegal, e o forte (português) de S. João Baptista de Ajudá, no Bénin, como armazéns-entrepostos de escravos em rota para os seus destinos, são marcos que visitei e onde chorei sem lágrimas.
Depois da 2ª guerra mundial, as mudanças no mundo também passaram por África, e a luta de movimentos e partidos (os PAI – partidos africanos de independência) levaram à independência política de antigas colónias, com a conhecida resistência do fascismo português, absurda e criminosa, que levou a década e meia de guerra.
Com a criação da CEE, assinado o Tratado de Roma, colocou-se a questão do relacionamento com as ex-colónias e, ultrapassada a questão da Argélia, em que a França ainda ensaiou o que Portugal levou até à exaustão, foi assinada convenção de Yaoundé (1963), em que se definiu um sistema de relacionamento com as ex-colónias, associadas, como países independentes, num grupo ACP (África, Caraíbas, Pacífico), dos quais 18 africanos. A essa convenção, que teve duas etapas, seguiu-se a convenção de Lomé, de 1975, já com o Reino Unido na CEE, que veio a ter quatro etapas ou reformulações pelas transformações que se iam verificando, substituído em 2000 pelo Acordo de Cotonou.
O relacionamento pretendido com as convenções, a partir de Yaoundé, estabelecia o que se chamava uma política de cooperação – a juntar às políticas comunitárias agrícola e comercial – e o facto é que se estabeleceu um mecanismo, chamado stabex, que consistia numa forma de evitar que oscilações no comércio internacional (cambiais e outras) em produtos condicionadores das economias dos países ACP provocassem grandes abalos nas receitas de exportação de países de economias frágeis, através de compensações estabilizadoras.
Não foi esse mecanismo que evitou o que tem sido o crescimento económico mundial, cada vez mais desigualisador, mas pode dizer-se que o princípio tinha boas intenções que se mantiveram até ao começo do milénio. Como de outras boas intenções têm estado cheios os tratados que, depois, maltratadas são, pavimentando o inferno de pobreza e miséria.
Aliás, África e alguns dos seus países em particular ilustram o que foi a exploração capitalista, sempre imperial, criando situações de dependência de mono-produtos (a começar pelos escravos) e de mono-culturas, como se pode exemplificar no caso de S. Tomé e do cacau e suas roças, depois abandonadas até poder aparecer, eventualmente, o que as substitua com o mesmo espírito predador das riquezas naturais, como o petróleo, os diamantes, o turismo.
Não que faltem afirmações de princípios no Acordo de Cotonou. Só que existe uma linha directriz clara, compatível com a organização internacional verdadeiramente emblemática da globalização imperialista: “a adopção de regimes comerciais compatíveis com a OMC (Organização Mundial do Comércio)”. E tudo estará condicionado por esse objectivo! Além da referência quase obsessiva à “boa governação”, na implícita responsabilização dos governos africanos (e outros) pelo mau estado da nação-mundo por não seguirem os “regimes comerciais compatíveis com a OMC”…
Sempre com o acréscimo da referência à corrupção, como se a corrupção fosse algo de folclórico e não tivesse a sua origem em quem corrompe, como se a má governação não fosse estimulada para manter e acrescer as dependências. Como se a dita (e mal) cooperação não fosse fórmula ou palavra para substituir a verdadeira cooperação que é a que existe para se tornar dispensável.
Segundo o Acordo de Cotonou, de Setembro de 2002 até Dezembro de 2007, os países da UE e ACP negociariam APE (acordos de parceria económica), que poderiam diferir entre países e regiões ACP, mas todos, e sempre, de acordo com as regras da OMC.
A partir de 2008, esses acordos comerciais seriam implementados até 2020. Os APE incluiriam assistência específica aos países ACP que teriam de se submeter a ajustes estruturais de modo a implementá-los. Os ACP poderão estabelecer APE com a UE individualmente, mas é notória a intenção (que nada tem de boa) de que tal se faça a partir de “esquemas de integração regional”, numa espécie de integração colonial nas ex-colónias.
A “cimeira” que se aproxima, na passagem da 1ª para a 2ª fase, pode ser um passo muito perigoso para esse futuro, já tão sombrio, de África! Como se disse em assembleias parlamentares paritárias ACP-UE, há que evitar que se faça entrar pela janela dos acordos com os ACP o que seja difícil fazer passar pela porta das negociações da OMC, e insistir na luta contra a paternalística condicionalidade, a imposição de modelos políticos únicos e da liberalização dos serviços públicos, particularmente da água. Tudo matéria para Franz Fanon, como tão oportunamente um camarada recentemente citou.
Mas África é, também, um continente do futuro. De um outro futuro, sempre adiado. E é significativo o desplante com que se têm menosprezado, ou desprezado, contributos de africanos que, vindos de outras paragens, seriam aproveitados e, talvez, empolados.
A mero título de exemplo, e muito pessoal, lembro Amílcar Cabral, que não só foi um combatente mas também um homem de pensamento criativo. O seu conceito de unidade, que não se restringia à situação concreta do seu partido, PAIGC, e das suas pátrias, Guiné-Bissau e Cabo Verde, e a sua ideia do suicídio da pequena burguesia intelectual, na inexistência de uma classe operária, são reflexões que estimo da maior relevância.
E termino, saudando África (e os africanos) como esse continente do futuro, de um futuro que não tem a pobre dimensão dos humanos mas da humanidade. Assim respondendo aos projectos do grande capital que passam pelas actuais manobras com estranhas circunvalações e estudos e ensaios que nascem onde o actual imperialismo tem a sua sede, como as actuais excursões e incursões vindas dos Estados Unidos e do seu complexo industrial-militar.
África ca mori!