Do Decreto-Lei n.º 111/2010 de 15 de Outubro, que “Modifica o regime dos horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais, procedendo à terceira alteração ao Decreto-lei n.º 48/96, de 15 de Maio, e revogando a Portaria n.º153/96, de 15 de Maio”
Publicado em Diário da República n.º 201, Série I, de 15 de Outubro de 2010
A publicação e o processo legislativo do Decreto-Lei nº 111/2010 de 15 de Outubro aprovado na generalidade em 22 de Julho e na versão final a 5 de Agosto, em reuniões do Conselho de Ministros, liberalizando completamente os horários de funcionamento das unidades da Grande Distribuição com mais de 2 mil metros quadrados, representam:
- um inaceitável “golpismo institucional” na relação de um órgão de soberania, o Governo, com outro órgão de soberania, a Assembleia da República e também com os parceiros sociais;
- um profundo golpe na situação, já demasiado fragilizada do comércio tradicional/comércio de proximidade face à grande distribuição, permitindo que esta se aproprie de uma ainda maior quota do mercado retalhista, alimentar e de outros produtos de grande consumo, consolidando um completo desequilíbrio de forças entre os dois tipos de operadores.
1.Com total falta de lealdade institucional e transparência, o Governo aprova o referido Decreto-Lei, após o encerramento da 1.ª Sessão Legislativa, da XI Legislatura, mesmo conhecendo o longo e intenso debate que sobre o assunto se processou na Assembleia da República, com a sua participação e da maioria parlamentar que o suporta.
O Governo conhecia o debate travado na anterior e na presente Legislatura, em torno das Petições e diversos Projectos de Lei, aliás com objectivos opostos. O Governo sabe que a maioria absoluta do PS na X Legislatura acabou por se agarrar e aprovar na generalidade, depois de um longo período de tempo em que prometia não mexer nos horários, o Projecto Lei n.º 489/X/3 do PSD, de sentido idêntico, mas cujo processo legislativo não chegou ao fim, por travagem do GP do PS, com o supremo argumento da “falta de estudos independentes” sobre os impactos de tal legislação. Estávamos em ano de eleições…Refira-se ainda, que os tais estudos independentes não existem, como se pode verificar pela ausência de efectiva resposta do Governo aos Requerimentos 846/X/1ª de 2 Agosto de 2010 e 3-AC/XI/2 de 15 Setembro de 2010 do Grupo Parlamentar do PCP.
2.Com total falta de lealdade e transparência no seu relacionamento com os parceiros sociais, apesar de conhecer o quanto é fracturante o tema.
A 15 de Julho, o Governo através da Direcção-Geral do Consumidor (DGC) enviou uma carta às várias entidades, com assento no Conselho Nacional de Consumo, onde foi solicitado que se “pronunciem sobre a definição dos horários a praticar pela grande distribuição, bem como sobre as entidades que deverão definir esses horários nos diferentes formatos e localidades”. O motivo invocado para o pedido era “uma análise real e aprofundada sobre os comportamentos e actuais hábitos de consumo dos consumidores portugueses nas grandes superfícies comerciais”. A solicitação dava como prazo o dia 26 de Julho, isto é, 11 dias para elaborar a resposta!
Na reunião da Comissão Permanente da Concertação Social de 21 de Julho, a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) solicitou o agendamento da questão dos horários do comércio para uma próxima reunião da Comissão, a que o Ministro da Economia, segundo o seu Presidente “primeiro ignorou e depois respondeu que ia avaliar”( Expresso, 31 de Julho de 2010). Estupefactas, ficaram as confederações patronais e sindicais da CPCS, quando constataram, que no dia seguinte (22 Julho de 2010), a referida legislação tinha sido aprovada em Reunião de Conselho de Ministros. O que significa também, quatro dias antes do fim do prazo para receber os contributos pedidos pela DGC!
3.A canhestra, nalguns casos fraudulenta, argumentação do Governo justificadora das alterações em matéria de horários do comércio.
(i) Em sede do Preâmbulo e articulado do Decreto-Lei n.º 111/2010, o legislador expende um conjunto de argumentos, que quando não são subterfúgios, são claramente abusivos ou mesmo falsos:
a) o Governo liberaliza, porque os horários “abrangem actualmente um nº reduzido de estabelecimentos”, porque dos “estabelecimentos com uma área de venda superior a 2 000m2 ou estabelecimentos integrados num grupo que dispõe, a nível nacional, de uma área de venda acumulada igual ou superior a 30 000m2” “apenas 5% dos estabelecimentos do ramo alimentar e 7,7% dos estabelecimentos do ramo não alimentar se encontram abrangidos pelos horários impostos às grandes superfícies comerciais”. Conclui, de forma admirável o legislador “Estes dados permitem concluir que os actuais horários das grandes superfícies comerciais (…) distorcem a concorrência em prejuízo do funcionamento do mercado e dos consumidores”!
O Governo deveria começar por explicar, a razão de, actualmente, os estabelecimentos abrangidos pela limitação nas tardes de domingos e feriados, com excepções, ser um universo reduzido. Explicar por exemplo, porque razão o poder político foi cúmplice da ilegalidade, ao longo destes últimos anos, permitindo que grandes superfícies, licenciadas com 1 998 m2, usassem o subterfúgio legal de uma área de vendas inferior aos 2 000m2, para abrirem aos sábados e domingos todo o dia! Explicar, porque razão o secretário de Estado do Comércio homologou por Despacho (1 de Março de 2010) o Parecer n.º 33/2009 de 22 de Março da PGR de esclarecimento da definição de “grandes superfícies comerciais”, que “legalizou” a abertura nas tardes de domingos e feriados a mais 86 grandes superfícies comerciais!
Mas mais grave, é o subterfúgio da utilização da fórmula percentual, para subestimar o impacto dos 177 estabelecimentos ainda obrigados a encerrar nas tardes de domingo e feriados. Porque o Governo não desconhece que os impactos, no caso em apreço, não resultam da maior ou menor percentagem do nº de estabelecimentos, mas do que esses estabelecimentos representam em termos de facturação/volume de vendas no mercado de retalho! É assim que os 74 Hipers, sendo 5% dos estabelecimentos do ramo alimentar, tiveram em 2009, 26% da Facturação (Índice Nielsen Alimentar) e as dezenas de milhar de lojas do comércio tradicional, 12% de um volume global de facturação de 12 868 milhões de euros!
Depois é notável, como o Governo, dos dados referidos – 5% (74 lojas) dos estabelecimentos do ramo alimentar e 7,7% (103) do ramo não alimentar encerrados nas tardes de domingos e feriados – tira a conclusão, de que “os actuais horários distorcem a concorrência! Porquê? Mistério que só o Governo saberá explicar. Mistério tanto maior, quando se sabe que os Grandes Grupos de Distribuição, proprietários desses 5% de estabelecimentos, são também os proprietários, de centenas de estabelecimentos dos formatos Supers e Discounts, abertos nas tardes de domingos e feriados, respectivamente, em 2009, com 44% e 18% da facturação! Terá o Governo pedido um parecer á Autoridade de Concorrência, na avaliação dessa distorção da concorrência?
b)Outro argumento, é a tese de que os actuais horários “se encontram dissociados das necessidades e interesses locais”, “distorcem a concorrência em prejuízo (…) dos consumidores”, o que o Decreto-Lei vai corrigir! Quem e como foram avaliadas as “necessidades e os interesses locais”? Com as autarquias locais? Com as associações do comércio tradicional e de proximidade? Teve o Governo em conta, a constatação de que a instalação das unidades (todos os formatos!) dos Grupos da Grande Distribuição se traduzir, em geral no empobrecimento e desestruturação das redes económicas regionais e locais, com redução da procura de bens produzidos local ou regionalmente? O que foi admitido, no Relatório elaborado pelo anterior Governo, sobre a execução da Lei n.º 12/2004, na avaliação dos “impactos intersectoriais” da instalação daquelas unidades, licenciadas ao abrigo dessa Lei?
Sobre a velha tese dos “interesses dos consumidores”, se não se confundir a manifestação desses interesses, com a “Petição” montada pela APED – a associação dos interesses dos grandes grupos da distribuição – o Governo podia esclarecer, como formulou tal conclusão e assim a configurou no Decreto-Lei em reunião do Conselho de Ministros, sem que as entidades do Conselho Nacional de Consumo tivessem tempo para se pronunciar? Ou o Governo já conhecia as suas opiniões? Justifica também o Governo, com a necessidade de “adaptar os horários das grandes superfícies comerciais aos hábitos de consumo entretanto adquiridos pela população portuguesa”. Mas se há outras lojas de retalho abertas, incluindo da Grande Distribuição, qual a necessidade de abrir mais? E então, porque não “adaptar os horários” de outros serviços, incluindo serviços públicos, a esses hábitos de consumo?
c)Outro argumento ainda, foi a de “permitir uma intervenção mais assertiva e planeada dos órgãos do poder local nas estruturas de negócio existentes no seu território”. O que é uma dupla mistificação. Primeiro, porque o Governo sabe que os impactos dos negócios das grandes unidades (e até das pequenas!) da Grande Distribuição, ultrapassam, e muito, os territórios municipais onde estão instalados, nomeadamente agem e interagem com os concelhos vizinhos. As áreas de influência das grandes superfícies comerciais ultrapassa as fronteiras de um concelho, e não é certamente por acaso, que o seu licenciamento, mesmo na recente (e má) legislação do anterior Governo, está sob a tutela de comissões regionais! Depois, porque vai ser quase que completamente impossível aos municípios restringir os horários que o Governo agora liberalizou totalmente! De facto, nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º111/2010, a restrição dos actuais horários só pode ocorrer “em casos devidamente justificados e que se prendam com razões de segurança ou de protecção da qualidade de vida dos cidadãos”! O que não será fácil de demonstrar em Tribunal. Isto é, essa restrição, só acontecerá, se a grande Distribuição aceder, sem accionamento judicial, à vontade da câmara municipal. Como se vai restringir horários, para proteger a qualidade de vida dos cidadãos, se a liberalização se faz em nome dessa qualidade e vida.
(ii) Outro argumento muito invocado pelo Governo (apesar das contradições secretário de Estado/Ministro) e pela Grande Distribuição, foi o de que a liberalização de horários ia criar uns milhares de postos de trabalho.
a)Tal argumento não contempla o impacto da actual situação, que a liberalização de horários vai agravar, de liquidação de milhares de postos de trabalho no comércio tradicional e na desertificação dos centros urbanos das cidades portuguesas. A que se acrescenta a constatação de que, apesar do crescimento exponencial de novas áreas comerciais, na última década, ao abrigo de legislação crescentemente liberalizadora, o emprego no comércio não aumentou proporcionalmente, antes na melhor das hipóteses estagnou! E a partir de 2005, período de vigência da Lei n.º 12/2004 (a área comercial duplica), a tendência é para a sua redução, mesmo que ligeira (Setembro de 2005 – 770,5 mil / Setembro de 2009 – 746,4 mil).
Não deixa também de ser significativo que o Relatório de Execução da Lei n.º 12/2004, já referido, tenha concluído pela impossibilidade prática de verificar do cumprimento pelos Grupos da Grande Distribuição dos compromissos assumidos em termos de criação de emprego nas candidaturas ao licenciamento.
A questão deveria, naturalmente, ser colocada em termos do saldo quantitativo e qualitativo do emprego final.
b)Mas o mais demonstrativo da pouca consistência das afirmações feitas, sublinhando bem o seu carácter propagandístico e interesseiro, de que o Governo se devia afastar, são as declarações publicadas na comunicação social sobre o assunto.
“A criação de emprego tem sido um dos argumentos para apoiar a abertura dos hipers. Fernando Serrasqueiro, secretário de Estado do Comércio, afirmou em Luanda que a medida vai criar 2 mil postos de trabalho. A posição não é partilhada pelo ministro da Economia, que explica que “o impacto na reestruturação do sistema de emprego já se procedeu de forma significativa””( Jornal “i”, 23 de Julho de 2010). “As empresas do sector (…) voltam a argumentar com números: (…) até 2017; serão criados oito mil empregos directos e indirectos” (Público 23 de Julho de 2010). “(…) o Governo fala na criação de 2 000 empregos directos. Podem chegar aos 8 000 até 2017, segundo a APED” (Expresso 31 de Julho de 2010). “Serão 2.000, segundo o Governo, e 5.000 segundo a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED) ” (Expresso 4 de Setembro de 2010). Notícias do Expresso de 9 de Outubro de 2010, informam que no retalho não alimentar a tendência (entre 2008 e 2009) é de descida: Staples, menos 11%; Decathlon, menos 3%; Moviflor, menos 4%; Aki, menos 3%, Media Markt, menos 4% e Massimo Dutti, menos 11%, embora todas, à excepção da Moviflor tivessem subido o volume de negócios! Sobre postos de trabalho a criar, com a publicação da nova legislação, Ikea, Leroy Merlin e Aki não prestaram declarações, bem como a Izi e Moviflor! No retalho alimentar “apenas Sonae e Auchan revelam que postos estimam criar. Uma contratará mil pessoas e a outra 400.” No Jornal de Notícias de 22 de Outubro de 2010, a contabilidade é mais precisa: a Sonae tem a “expectativa de que pode ser possível atingir mil postos de trabalho directos”, que na Auchan “vai originar a criação de 400 postos de trabalho”, a Moviflor “estima que terá de contratar mais 150 trabalhadores” e na Leroy Merlin “vão precisar de mais 200 pessoas”. Ou seja um total de 1.750 novos empregos…se tudo correr pelo melhor!
É também a altura de comparar os mil postos de trabalho directos “que pode ser possível atingir” na Sonae, pela abertura nas tardes de domingos e feriados (das 13 às 23 horas), com a previsão do seu Presidente, na apresentação das contas anuais a 17 de Março (Público 18 de Março de 2010), de que o encerramento do Continente ao domingo (das 9 às 13 horas, conforme projectos de lei, entre os quais um do PCP, então presentes na Assembleia da República) “representa pelo menos dois mil postos de trabalho”!
c)Escusado é dizer, que o Governo não fez nem mandou fazer nenhum estudo, que com rigor e seriedade, avaliasse, entre outros os aspectos, os impactos da sua vontade legisladora de liberalizar os horários do comércio, na criação e destruição de emprego no sector. Mas sabemos que a Autoridade da Concorrência, no Relatório Final sobre Relações Comerciais entre a Distribuição Alimentar e os seus Fornecedores, de Setembro 2010, na referência que fez aos números do emprego na Grande Distribuição, utilizou os dados estatísticos da APED. E questionado, não esclareceu porque não recorreu a dados do INE ou do IEFP!
(iii) Resta uma referência ao argumento, desta vez “esquecido” pelo Governo, das regulamentações e práticas em matéria de horários de comércio na Europa e na União Europeia. Desta vez, nem uma suposta tendência liberalizadora foi invocada, à semelhança do que tinha acontecido anteriormente na oposição a projectos de encerramento total das unidades das unidades da Grande Distribuição ao domingo!
E percebe-se o esquecimento. Com a publicação do Decreto-Lei n.º 111/2010, Portugal passou a ser um dos únicos países da Europa, com liberdade total de abertura aos domingos. Em 14 (Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Itália, Luxemburgo, Noruega, Reino Unido, Suécia) só a Suécia nos acompanha, porque mesmo a Bélgica, a abertura ao domingo é possível, desde que se encerre noutro dia da semana! E na União Europeia, só se acrescenta a Eslováquia, a Irlanda e a Letónia!
4. A necessidade de uma regulação diferente e equilibrada do horário de abertura das unidades de comércio, é hoje, incontornável. Não para «fechar tudo», como os adversários da regulação acusam, mas para fazer do encerramento ao domingo a regra, com todas as excepções necessárias à vida da sociedade hoje. Ao mesmo tempo, há que ter em conta situações de “facto consumado” pelas políticas comerciais nos últimos anos, como aconteceu com a instalação de milhares de pequenas empresas nos centros comerciais sujeitas a imposições de condições draconianas e «rendas» altíssimas pelos promotores dos mesmos.
O Grupo Parlamentar do PCP considera que é necessário e possível responder, com equilíbrio e flexibilidade, aos seguintes objectivos:
- Aproximar os horários de abertura comercial em Portugal das práticas mais habituais na Europa, e em particular nas regiões da vizinha Espanha;
- Estabelecer uma regra genérica de abertura e encerramento dos estabelecimentos, independente do formato comercial.
- Fixar a obrigatoriedade de os regulamentos estabelecerem regras comuns para os vários formatos e tipos de comércio, independentemente da sua localização ou integração;
- Introduzir a diferenciação de horários em função das condições concretas – zonas balneares, festas tradicionais, culturais, entre outras, que permita responder às características e condicionamentos locais;
- Prever expressamente regras diferenciadas para o comércio e serviços instalados no interior de centros (estações e terminais) de transportes, aeroportos, postos de abastecimento de combustíveis, hotéis;
- Equilibrar a concorrência entre o comércio independente de rua, de micro e pequenas empresas, com o instalado nos chamados centros comerciais, procurando atender-se à situação de inúmeras pequenas lojas sob as quais pesam as imposições e exigências dos promotores dos conjuntos comerciais.
Nestes termos, ao abrigo do artigo 169.º da Constituição da República e do artigo 189.º do Regimento da Assembleia da República, o Grupo Parlamentar do PCP, requer a Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei n.º 111/2010 de 15 de Outubro, que “Modifica o regime dos horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais, procedendo à terceira alteração ao Decreto-lei n.º 48/96, de 15 de Maio, e revogando a Portaria n.º153/96, de 15 de Maio” (Publicado em Diário da República n.º 201, Série I, de 15 de Outubro de 2010).
Assembleia da República, em 2 de Novembro de 2010