Intervenção

Memória colectiva sobre os crimes do chamado Estado Novo e de resistência à ditadura - Intervenção de Bernardino Soares na AR

Petição n.º 151/X (1.ª), solicitando à Assembleia da República que crie um espaço público nacional de preservação e divulgação pedagógica da memória colectiva sobre os crimes do chamado Estado Novo e de resistência à ditadura

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

A petição que hoje discutimos convoca-nos para um tema da maior importância, tendo merecido um circunstanciado relatório do Deputado Marques Júnior. Saudamos, por isso, os peticionários que tomaram esta iniciativa.

Ao aproximarmo-nos das comemorações de 33.º aniversário da Revolução de Abril, é impossível não sentir uma enorme indignação e revolta perante a situação de desconhecimento e desvalorização da realidade e dos aspectos do fascismo português e da resistência antifascista.

O Estado, sucessivos governos e as instituições democráticas em geral não cumpriram o seu dever de preservação do conhecimento e da divulgação, quer das atrocidades da ditadura fascista, quer da perseverança, coragem e heroísmo da resistência.

O fascismo português, a ditadura de Salazar e de Caetano, que, sendo velho na forma e no conteúdo, se auto-intitulava perversamente de Estado Novo, foi uma agressão contra toda a sociedade e o povo português.

Hoje, muitos desconhecem, mas não pode ser esquecido, que durante 48 anos a liberdade foi confiscada e a democracia proibida.

Não podem ser esquecidos a polícia política, a censura, os tribunais plenários e as suas condenações predeterminadas e prolongadas com arbitrárias medidas de segurança.

Não pode ser esquecido o colonialismo e a guerra colonial, bem como o conluio com o fascismo e o nazi-fascismo europeus.

Não pode ser esquecido o atraso e a pobreza extrema do País, o obscurantismo, o bloqueio no acesso à instrução e à cultura.

Não pode ser esquecida a tortura, o assassínio, a perseguição, a prisão dos que resistiram, o exílio forçado de muitos.

E se o que foi o fascismo não pode ser esquecido, igualmente tem de ser lembrada a luta antifascista que durante toda a ditadura se desenvolveu, apesar da ausência de liberdades e de regras democráticas.

Trabalhadores, camponeses, jovens estudantes, intelectuais, gente de todo o País e de diversas origens, resistiram e lutaram contra a ditadura e por isso, muitas vezes, «pagaram um elevado preço».

O PCP teve, como é sabido - embora não se pudesse concluir isso se ouvíssemos apenas a intervenção do Deputado João Soares -, um papel fundamental nesta resistência antifascista: foi a principal força política organizada e a única que resistiu e lutou durante toda a «longa noite fascista».

Naturalmente, foram militantes comunistas a maioria dos torturados, dos perseguidos, dos presos e dos que sucumbiram às mãos do fascismo português.

Felizmente, muitos outros democratas, não só comunistas, evidentemente, resistiram e lutaram e foram, consequentemente, vítimas da repressão. A luta antifascista congregou muitos cidadãos de diferentes origens políticas, com diversas formas de participação e de intervenção, convergindo para o objectivo do derrube do fascismo e da conquista da liberdade e da democracia.

Se tudo isto aconteceu, assume especial gravidade que esteja, em muitos casos, cada vez mais escondido.

Na escola portuguesa as crianças e os jovens abordam de forma totalmente insatisfatória o período do fascismo e a luta dos que lhe resistiram.

Existem preconceitos que levam à procura de uma neutralidade que não existe - não existe neutralidade perante o fascismo -, que muitas vezes reduzem a uma abordagem «asséptica» o período da nossa história que constitui o fascismo e a luta antifascista que lhe correspondeu.

É, pois, a máquina do «branqueamento do fascismo» que existe e funciona, como nos últimos tempos tem ficado claro e evidente com a «bafienta» insidiosa promoção do ditador.

O revisionismo neofascista em Portugal, na Europa e no mundo procura obter a reabilitação do fascismo e o apagamento dos seus crimes. E também ao mesmo tempo, muitas vezes, acentua o anticomunismo, assomando já por aí ideias de criminalização da ideologia comunista e dos comunistas. As duas coisas são, vezes de mais, «faces da mesma moeda».

Os que prosseguem estes objectivos aproveitam, aliás bem, algumas tendências actuais, felizmente minoritárias, de desvalorização do papel dos comunistas na luta antifascista, não percebendo que essa desvalorização é, ao mesmo tempo, uma ajuda a um «branqueamento do fascismo».

Concluindo, Sr. Presidente, o tema que a petição nos propõe não é um tema do passado, mas, sim, um tema do presente e determinante para o que vier a ser o futuro da nossa sociedade. É um tema que, depois desta petição, deve merecer desta Assembleia uma tomada de posição concreta, desejavelmente consensual, para a qual nos manifestamos empenhados e disponíveis para que se construa um quadro institucional e concreto que combata o «branqueamento do fascismo» e valorize a luta antifascista em Portugal.

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