Projecto de Resolução N.º 1086/XII/3.ª

Medidas imediatas que garantam o reforço da capacidade de resposta na área da toxicodependência e alcoolismo

Medidas imediatas que garantam o reforço da capacidade de resposta na área da toxicodependência e alcoolismo

I
A aprovação da Lei da descriminalização do consumo de drogas (como foi comummente designada) trouxe uma alteração qualitativa na abordagem do problema da toxicodependência e do toxicodependente, materializada numa perspetiva humanitária, tratando a toxicodependência como doença. A construção de uma estratégia que integra as diferentes vertentes de intervenção (dissuasão, prevenção, redução de riscos e minimização de danos, tratamento e reinserção) no combate à toxicodependência e ao alcoolismo, associada às alterações ao nível da legislação, possibilitou a coerência da resposta nesta matéria.
Após mais de uma década da aprovação desta lei, os problemas associados à toxicodependência deixaram de estar na ordem do dia, tendo-se verificado uma evolução positiva, destacando-se a redução da incidência do VIH/SIDA nos toxicodependentes, a redução do consumo endovenoso e a redução dos consumos junto das populações mais jovens.
Esta realidade colocou Portugal como um caso de estudo no âmbito das políticas de combate à toxicodependência a nível mundial.
Entretanto, o atual Governo, sem qualquer justificação e/ou fundamentação técnico -científica, decidiu destruir a estratégia nacional adotada por via da implosão e fragmentação do Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência (SPTT) e de uma nova integração dos diferentes vetores de intervenção, criando uma estrutura - o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD) - que determina as orientações gerais de intervenção, e transferindo toda a intervenção no terreno para as Administrações Regionais de Saúde (ARS).Manifestámos de imediato a nossa oposição a essa solução, por não corresponder às necessidades das pessoas que consomem drogas ou com consumos abusivos de álcool e por estarmos perante uma medida que pretende desmantelar as políticas de combate à toxicodependência e ao alcoolismo. Alertámos, face aos diversos constrangimentos (meios humanos e financeiros) impostos nas ARS, para a eventualidade do desvio de funções das equipas da área da toxicodependência e alcoolismo para suprirem outras necessidades de prestação de cuidados de saúde e para a perda de autonomia das unidades de tratamento.
Mais recentemente, o Governo PSD/CDS-PP dá um novo passo no sentido do desmantelamento das políticas públicas nesta área ao determinar a integração dos Centros de Repostas Integradas (CRI) nos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) e das Unidades de Desabituação e das Unidades de Alcoolismo nas Unidades Hospitalares. Foi criado um grupo de trabalho na área da saúde mental, que tem, entre outros os objetivos, de confirmar esta integração.
Esta integração é uma verdadeira contra reforma, que conduz à perda de autonomia dos CRI e das Unidades de Desabituação e das Unidades de Alcoolismo, para além de ser uma decisão contraditória com a recente criação de Divisões para a Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências nas ARS, com um quadro de competências atribuídas especificas no acompanhamento da área da toxicodependência e alcoologia, ao invés de estas competências estarem dispersas por vários serviços.
Mas, esta integração pode ainda traduzir-se na redução da capacidade de resposta na vertente da redução de riscos e minimização de danos, no tratamento e reinserção, com os profissionais de saúde deixando de se dedicar exclusivamente às pessoas com problemas com drogas e com álcool. Teme-se assim que as respostas fiquem comprometidas.
II
O relatório anual sobre a “A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências” referente ao ano de 2012, da responsabilidade do SICAD, dá a conhecer a evolução do número de utentes em tratamento no ano, a evolução dos novos utentes e os utentes readmitidos. A seguinte tabela evidencia a evolução de 2008 a 2012 na rede pública.
Utentes em tratamento no ano Novos utentes Utentes readmitidos
2008 33733 3109 1260
2009 33106 2359 1296
2010 31248 1514 2568
2011 29781 1715 2376
2012 29062 2001 4012

Podemos verificar uma tendência de diminuição do número de utentes em tratamento no ano de 2012 nas unidades públicas de tratamento. Entretanto os dados demonstram também que no ano de 2012, em que se registou menos utentes em tratamento, foi exatamente quando houve mais utentes readmitidos, atingindo mais de 4 mil utentes. E de 2011 para 2012 o número de utentes readmitidos aumentou 68%.
Dos dados disponíveis nos relatórios não é possível concluir se a diminuição do número de utentes em tratamento no ano de 2012 se deve a constrangimentos à entrada no sistema, nomeadamente à existência de listas de espera para primeiras consultas nas diversas Unidades, informação que seria importante recolher e analisar, uma vez que são recorrentes as queixas de cidadãos que não conseguem aceder a cuidados.
O relatório aponta também alguns dados preocupantes no que diz respeito ao aumento de recaídas por substância.
Utentes Readmitidos 2010 2011 2012
Heroína 1631 1518 2487
Cocaína 115 132 215

As readmissões de utentes por consumo de heroína são muito mais expressivas do que de utentes por consumo de cocaína, embora tenha aumentado em ambas. Verifica-se que em 2012 houve um aumento de 969 utentes readmitidos por consumo de heroína em relação a 2011, o que corresponde a um aumento de 64%.
Os utentes readmitidos por consumo de heroína representam 62% do total de readmissões. Esta realidade é ainda mais inquietante, considerando as crescentes dificuldades impostas aos portugueses, quando sabemos que o consumo de heroína está associado à necessidade de aliviar o sofrimento.
Crescem as preocupações relativas ao fenómeno da toxicodependência no país. O contexto económico e social é propício ao recrudescimento do consumo de drogas, devido ao desemprego, à redução de apoios sociais, ao aumento da pobreza ou ao aumento das desigualdades e da exclusão social. As pessoas que consomem ou consumiram drogas estão muito mais vulneráveis.
O próprio relatório anual de 2012 alerta para algumas tendências preocupantes, devido ao aumento de consumos de drogas na população feminina e nos jovens.
No que respeita aos jovens, os estudos e dados disponíveis apontam para um aumento do consumo de canábis em 2011. O quadro seguinte mostra a evolução do consumo de canábis na população escolar entre os 13 e os 18 anos (ECATD).
População Escolar
ECATD Idade 2003 (%) 2007(%) 2011(%)
13 2,3 2,3 2,3
14 6,5 4,8 5,6
15 11,0 8,3 10,1
16 17,3 14,1 19,1
17 23,6 19,6 24,4
18 29,1 26,1 29,7

Ao nível de mortalidade associada à toxicodependência há uma tendência decrescente de 2008 para 2011, mas em 2012 verificou-se um ligeiro crescimento. Em 2008 morreram 94 pessoas, em 2009 morreram 56, em 2010 morreram 52 pessoas, em 2011 morreram 19 pessoas e em 2012 morreram 29 pessoas.
Embora o Governo insista em não reconhecer, os dados tornados públicos dão indícios de uma reversão no fenómeno da toxicodependência no país.

III
Perante a atual situação em que se vive no país, o Governo em vez de tomar medidas para reforçar a capacidade de resposta das unidades públicas, adota medidas que conduzem a mais constrangimentos e limitações. Exemplos disso são, as alterações na estrutura organizacional dos serviços públicos na área da toxicodependência e alcoolismo ou a persistência de um financiamento desadequado face às necessidades e exigências.
Nos últimos anos assistiu-se ao fim de muitas equipas de rua, à redução de profissionais de saúde e até o programa de troca de seringas, essencial para evitar o contágio de doenças infeciosas, deixou de ser realizado nas farmácias.
A substituição do programa de troca de seringas nas farmácias pelos centros de saúde foi desastrosa. Em 2013, ano em que supostamente as seringas seriam trocadas nos centros de saúde, pura e simplesmente não funcionou – foram trocadas somente 3% do total de seringas. O número de seringas trocadas num ano nos centros de saúde em 2013 foi inferior ao número médio de seringas trocadas num mês nas farmácias em 2012 Em 2013, verificou-se uma redução global do número de seringas trocadas em 12,5%, o que corresponde a menos cerca de 135.700 seringas.

A realidade demonstrou que os centros de saúde não estão vocacionados para assegurar o programa de troca de seringas, nem têm uma especial sensibilidade para o relacionamento com a população toxicodependente. O preconceito tem neste caso um peso real.
A CASO – Consumidores Associados Sobrevivem Organizados - percorreu os centros de saúde do Porto e alguns em Lisboa, para verificar como estava a funcionar o programa de troca de seringas. Dos centros de saúde visitados, incluindo os que tinham indicação que efetuavam troca de seringas, identificaram um número reduzido em que era possível efetivamente proceder à troca de seringas, tendo ainda constatado a falta de informação aos utentes, bem como o desconhecimento do programa pelos profissionais de saúde, com materiais mal acondicionados, entre outros problemas.
É evidente o falhanço da implementação do programa de troca de seringas nos centros de saúde.
A integração das respostas (prevenção, redução de riscos e minimização de danos, tratamento e reinserção) possibilitou o desenvolvimento de programas de respostas integradas (PRI) integrados no Programa Operacional de Respostas integradas (PORI). Estes programas assentavam na intervenção num determinado território considerado como prioritário, com base no diagnóstico e avaliação concreta sobre esse território e com uma intervenção específica face a esse diagnóstico. Não existem respostas formatadas, elas têm de corresponder sempre às necessidades concretas de cada caso.
O número de territórios prioritários para o desenvolvimento dos PRI nas vertentes de prevenção, redução de riscos e minimização de danos, tratamento e reinserção têm vindo a diminuir desde 2010. Em 2010 foram identificados 98 territórios prioritários com programas de respostas integradas, 99 em 2011, 71 em 2012 e 55 em 2013. Atualmente os territórios prioritários são 46. A redução dos territórios prioritários está associada ao desinvestimento público na área da toxicodependência. E certamente existirão muitos territórios não considerados prioritários, mas que deveriam ter uma intervenção constante.
A redução de equipas de rua constitui mais um elemento desta política de desinvestimento. As equipas de rua permitiam um contacto entre o toxicodependente e um técnico de saúde, e permitiam a criação de uma relação de confiança, que atendendo às características desta população é difícil de alcançar do modo clássico. A perda de muitas equipas de rua por falta de financiamento representa uma quebra no acompanhamento desta população e de confiança que dificilmente se voltará a reestabelecer.
A saída dos técnicos de saúde para a rua, onde estão os problemas, foi um enorme ganho, porque foram encaminhados muitos toxicodependentes para tratamento e muitos passaram também a integrar programas de redução de riscos e minimização de danos.
Para além da redução de estruturas, de projetos e de equipas de rua, o Governo pôs fim ao apoio às deslocações dos utentes em tratamento, para as consultas, introduzindo um novo obstáculo no acesso aos cuidados de saúde. Sem o apoio para as deslocações, muitos utentes já abandonaram e muitos mais poderão vir a abandonar os tratamentos, porque não têm condições económicas para suportar os custos dessas deslocações.
IV
O desinvestimento nas políticas de combate à toxicodependência na Grécia conduziu à redução de respostas nesta área e verificou-se um aumento brutal da incidência do VIH/SIDA nas pessoas com consumos de drogas por via endovenosa.
Esta situação deveria ser um exemplo do que não se deve fazer e ao mesmo tempo de alerta para a necessidade de reforçar os meios disponibilizados para o combate à toxicodependência e alcoolismo.
Perante a realidade com que o país se confronta, é urgente uma intervenção imediata. Esta deve ser a prioridade do Governo: reforçar os meios (ao nível financeiro e de recursos humanos) dos serviços públicos na área da toxicodependência e alcoolismo e as equipas de rua e programas de intervenção prioritária.
É o momento de investir para evitar o regresso de situações que ocorreram no passado.
É o momento de apostar verdadeiramente na prevenção, com ações específicas para o grupo a que se dirige, mas é o momento de garantir que as vertentes de tratamento, redução de riscos e minimização de danos e reinserção têm a capacidade de resposta adequada às exigências.
Neste quadro de respostas imediatas, a manutenção da autonomia das unidades públicas de tratamento constitui um elemento fundamental para assegurar uma maior capacidade de resposta.

Nestes termos, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projeto de
Resolução
A Assembleia da República recomenda ao Governo que:
a) Mantenha o atual estatuto de autonomia dos Centros de Respostas Integradas, das Unidades de Desabituação e das Unidades de Alcoologia, rejeitando a sua integração nos Agrupamentos de Centros de Saúde ou nas Unidades Hospitalares;
b) Mantenha as atuais equipas de profissionais de saúde que se dedicam exclusivamente à intervenção no âmbito do combate à toxicodependência e alcoolismo;
c) Faça um levantamento dos constrangimentos no acesso ao sistema de prestação de cuidados, nomeadamente de eventuais listas de espera, bem como das necessidades de profissionais de saúde nos Centros de Respostas Integradas, nas Unidades de Desabituação e nas Unidades de Alcoologia e proceda à contratação dos profissionais de saúde em falta, com vínculo à função pública;
d) Reforce a dotação financeira destinada às políticas de combate à toxicodependência e alcoolismo;
e) Proceda à reavaliação e ao redimensionamento dos territórios prioritários (circunscrevendo-os a zonas mais limitadas e alargando o número de territórios prioritários) de modo a assegurar uma intervenção de respostas integradas adequada às necessidades, atenta às características específicas de cada território;
f) Promova o alargamento das equipas de rua de forma a aproximar o acompanhamento aos toxicodependentes;
g) Reponha o apoio para as deslocações dos utentes às unidades públicas de tratamento na área da toxicodependência e alcoolismo;
h) Retome o programa de troca de seringas nas farmácias, garantindo uma taxa de cobertura a nível nacional e a proximidade aos toxicodependentes.

Assembleia da República, em 26 de junho de 2014

  • Assuntos e Sectores Sociais
  • Saúde
  • Assembleia da República