Na passada terça-feira, o Primeiro-Ministro entendeu por bem inserir no debate político parlamentar sobre a atitude do Governo face à guerra contra o Iraque a informação de que tinha rezado pela paz.
E, face a isso, nós entendemos por bem salientar que esse passo não foi nem apropriado nem de bom gosto, uma vez que, sendo irrelevante para o que estava em discussão, apareceu como uma óbvia tentativa de atenuar a imensa gravidade de uma orientação abertamente pró-guerra através de uma informação atinente a respeitáveis convicções religiosas do Primeiro-Ministro supostamente orientadas para a defesa da paz.
E, como foi o Primeiro-Ministro que resolveu dar esse passo insensato, compreenda-se então que sejamos nós a dar o passo de afirmar que o fraco resultado das alegadas preces pela paz de Durão Barroso certamente se ficam a dever não apenas ao conhecido risco de se invocar o santo nome de Deus em vão mas sobretudo ao facto de o Primeiro-Ministro não se ter lembrado de que, no seu Governo, quem tem boas, privilegiadas e proveitosas relações com Nossa Senhora é o Ministro Paulo Portas.
Na mesma altura, a propósito de umas coisas magnificas que as actas da Cimeira dos Açores hão-de revelar um dia sobre o papel de Portugal nesse conclave, o Primeiro-Ministro também entendeu por bem referir-se à «reconstrução» do Iraque.
Acontece porém que, tal como já havia acontecido no discurso de George W. Bush na Terceira e na própria declaração da Cimeira, o Primeiro-Ministro conseguiu falar da «reconstrução» do Iraque mas sem nunca falar daquilo que lhe é prévio e daquilo que a tornará necessária, ou seja, da terrível ofensiva de destruição que os EUA vão lançar sobre o Iraque e de que o Governo PSD-CDS/PP, para máxima vergonha nacional, ficará como cúmplice fardado de «valet de chambre».
Durão Barroso bem pode fugir como o diabo da cruz da palavra «destruição» mas isso não impedirá que em Portugal e no mundo, por cima de muitas fronteiras políticas, religiosas ou ideológicas, haja milhões de homens e mulheres que não aceitam como natural, legitima e inevitável essa premeditada fúria de destruição, atingindo escolas, hospitais, fábricas, sistemas de abastecimentos de água e de energia e matando milhares de seres humanos.
Sim, Durão Barroso bem pode refugiar-se atrás da benévola palavra «reconstrução» mas nem por isso, em Portugal e no mundo, milhões de pessoas deixarão de considerar um insulto a sagrados valores de civilização que, deliberadamente, se sopre primeiro um trágico vendaval de destruição para depois se gastar, num mundo tão carente e sofredor, qualquer coisa entre 20 e 122 mil milhões de contos (a pagar pelo petróleo iraquiano então já administrado pelos EUA pois claro!) a «reconstruir» o que, cruelmente, não se quis poupar ou conservar.
Por fim, lembre-se ainda que Durão Barroso, tão deslumbrado e entusiasmado quanto descuidado, se referiu também na Assembleia da República ao encosto de Portugal a «uma nova ordem que está a nascer».
E dizemos que o Primeiro-Ministro foi descuidado porque não se deu conta de que, como a comunidade internacional e as suas organizações, as nações e os povos não decidiram fazer nascer nenhuma «nova ordem internacional», então a «nova ordem» cujo nascimento reverentemente celebra é a «nova ordem» imposta na ponta das baionetas, no bico dos bombardeiros e dos mísseis dos EUA.
E se o Primeiro-Ministro está feliz com o nascimento desta «nova ordem» baseada no poder arbitrário, na arrogância imperial e nos interesses ilegítimos da única superpotência, - então felizmente que no mundo há milhões de cidadãos que têm nojo desta «nova ordem» afinal tão próxima, em alguns traços e fundamentos, de uma outra «nova ordem» prometida no final dos anos 30 do Século XX e que a Humanidade em boa hora derrotou.
E seguramente que, em Portugal, desfilando já amanhã, seremos muitíssimos a recusar a rendição perante esta «nova ordem» e a subordinação a uma dita «unidade nacional» fundada em factos consumados e numa política errada e injusta, mesmo que o apelo para tanto venha de onde não devia vir.