Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral

Marcha pela Saúde em Odivelas

 

«Marcha pela Saúde»
Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP

A Marcha pela Saúde que acabámos de realizar e que juntou centenas de pessoas aqui no concelho de Odivelas é bem a expressão do descontentamento que reina em Portugal quanto ao estado da saúde. As concentrações e manifestações que se têm realizado de Norte a Sul do país, atingindo uma participação e uma determinação muito significativas, são o resultado não apenas do descontentamento que existe, mas da crescente consciencialização de que o que está em causa já não é apenas o acesso a um determinado serviço público de saúde, mas o próprio direito à saúde.

Hoje, passados quase três anos desde que o actual Governo PS tomou posse, podemos afirmar que se há sector da vida nacional que se destaca, quer pela sua importância na vida dos portugueses, quer pela insatisfação que lhe cria devido às condições cada vez mais difíceis de acesso, esse sector é sem dúvida o da saúde.

 

O direito à saúde e a consagração constitucional do Serviço Nacional de Saúde no ano de 1979 como instrumento para a realização deste direito é, desde então, uma “espinha atravessada na garganta” daqueles que olham para a saúde, não como um direito, mas como um negócio. Dizem que o Estado deve apenas abandonar a sua função prestadora mantendo a sua função reguladora, mas principalmente manter-se como financiador do sistema de saúde. Outros dizem “menos Estado, melhor Estado”, partindo da tese não demonstrada de que os privados fazem sempre melhor que o público. Uns e outros defendem o abandono do Estado das suas responsabilidades constitucionais, abrindo desta forma caminho ao investimento privado, mas com uma condição: é que o Estado se transforme no principal cliente dessas unidades privadas. Estão assim criadas as condições para que uma parte significativa dos muitos milhões de euros que o SNS movimenta (mais de 14 mil milhões em 2006), passem a integrar a estrutura de lucros dos grandes grupos privados que intervêm neste sector.

Quando confrontado com esta realidade e as suas próprias responsabilidades na situação que está criada no país, o Primeiro Ministro responde acusando-nos de imobilistas, de defendermos que tudo fique como está, de estarmos contra um conjunto de ditas “reformas” que, segundo ele, são essenciais para a modernização dos serviços e para garantir a sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde. Nada mais falso. Aliás, quem o ouve dirá que estamos perante um acérrimo defensor do SNS que se desenvolve no quadro do serviço público e que seja universal, geral e tendencialmente gratuito, tal como está inscrito na Constituição da República Portuguesa. Neste, como em outros aspectos da acção governativa, a cara não condiz com a careta.

A realidade o que mostra, é um país desde há muito, mas particularmente nestes últimos três anos, confrontado com um ataque sistemático ao SNS como parte de uma estratégia mais vasta de encerrar serviços públicos e entregar aos privados uma área que há muito está referenciada pelos grandes grupos económicos e financeiros como um negócio e não um direito. Por mais que procure esconder, o actual governo ficará de forma inequívoca associado ao período mais negro da ofensiva contra o SNS e simultâneamente ao período em que se avançou mais na privatização de serviços e no licenciamento de unidades privadas.

É neste processo de abandono do Estado e das suas responsabilidades em matéria de saúde e de privatização em curso, que encontramos os eixos centrais da política de saúde do Governo PS. Nesta matéria como noutras, o Governo PS segue claramente a cartilha neoliberal da UE, cuja concretização é extensiva a outros países nos mesmos moldes.

Como justificação para o rumo que está a ser seguido, dizem-nos que o país não tem recursos inesgotáveis e por isso não pode suportar no futuro custos que tendencialmente crescerão nos próximos anos, ficando o Estado impedido de garantir o acesso a todos os portugueses aos cuidados de saúde independentemente das suas condições económicas e sociais.

O que não dizem, é que uma análise rigorosa às contas do SNS, conduz-nos a uma conclusão inquestionável – as despesas do SNS crescem mais na medida em que aumenta a promiscuidade entre o público e o privado e que a parte mais significativa dos aumentos com os custos com o SNS está na contratação de serviços ao exterior.

 

O que não dizem aos portugueses é que esta política economicista de contenção do investimento na saúde, tem como consequência o aumento dos custos para as famílias, em grande medida devido às taxas moderadoras, à perda de qualidade dos serviços prestados, menos medicina preventiva e mais medicina curativa, com custos bastante superiores. A saúde não só sofre o impacto do desenvolvimento económico como é condição indispensável  para o crescimento e desenvolvimento económico.

A ofensiva contra o SNS e o crescimento das injustiças e das desigualdades piorando o estado de saúde da população são um obstáculo ao desenvolvimento.

Numa operação de cosmética o Governo procura transmitir a ideia de que agora vai ser diferente. Não nos iludamos. Pode mudar o estilo mas o conteúdo, esse, mantém-se intacto. Não há nenhuma decisão de recuar na política de encerramentos de serviços, mas tão só concretizar de acordo com um novo calendário. A resolução do problema central que está colocado na saúde – a falta de profissionais (médicos, enfermeiros e outros técnicos) nos cuidados de saúde primários e em algumas especialidades – continua a não ser objecto de um plano de emergência e de medidas de fundo, que procure solucionar o problema no curto e no médio prazo, nomeadamente o fim dos números clausus que continuam a funcionar como uma autêntica barreira administrativa no acesso às Faculdades de Medicina.

Mais de 700.000 portugueses continuam a não ter médico de família, mais de 35.000 aqui no concelho de Odivelas. Apenas dois centros de saúde em Portugal têm enfermeiro de família, para uma necessidade, de acordo com os rácios da Organização Mundial de Saúde, de mais de 12.000. Só aqui no concelho faltam mais de 70.

Mais de 220.000 portugueses continuam em lista de espera para uma cirurgia, apesar dos vários programas lançados com o objectivo de resolver este flagelo.

Também na política do medicamento, ao contrário do que foi sendo afirmado, os portugueses continuam a pagar mais, quer pela política de descomparticipação, quer pelo aumento dos preços dos medicamentos e das margens de comercialização, particularmente na indústria. Se compararmos 2005 com 2006, de acordo com as estatísticas do medicamento, verificamos que a despesa pública passou de 68,3% do custo total com medicamentos, para 66,7%, enquanto a despesa das famílias passou de 31,7 % para 33,3%, mais cerca de 40 milhões de euros. 

Neste quadro faz todo o sentido continuar a luta em defesa do SNS. É mesmo um imperativo nacional assegurar o direito à saúde, não deixando que a luta se esgote na resolução, ou não, do problema imediato. É importante a luta contra o encerramento deste ou daquele serviço, pela construção do novo centro de saúde, pelo alargamento do número de utentes com médico de família, mas tudo isto será insuficiente se o Estado não garantir um SNS, universal, geral e gratuito, realizado no quadro do serviço público.

 

 

O PCP, no âmbito da sua actividade política geral e no quadro da Assembleia da República, não deixará de intervir para obrigar o Governo, não apenas a reconhecer a sua política errática em matéria de saúde e a assumir as responsabilidades que tem nas consequências dessa política, mas também avançando propostas responsáveis que integrem as aspirações e preocupações dos portugueses.

A participação dos membros do PCP em organizações e movimentos de massas, respeitando e defendendo a autonomia, o carácter unitário e a vida democrática dessas organizações e movimentos, tem um papel determinante na elevação da consciência sobre os problemas da área da saúde e ainda na mobilização para a participação na luta que também é por melhores condições de vida e de trabalho.