Declaração política, corroborando a preocupação manifestada pelo ex-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Almirante Mendes Cabeçadas, em carta enviada ao Ministro da Defesa, dando conta do descontentamento e mal-estar que algumas medidas do Governo têm causado no meio militar, e criticando a posição assumida pela Governadora Civil de Lisboa perante a eventualidade de que teria lugar uma manifestação de militares
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
A poucos dias de cessar funções como Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), o Almirante Mendes Cabeçadas enviou ao Ministro da Defesa Nacional uma carta, expressando o sentir das chefias militares quanto à situação vivida nas Forças Armadas Portuguesas, cujo conteúdo chegou ao conhecimento da opinião pública através da comunicação social.
Nessa carta, o Almirante CEMGFA deu conta de uma profunda preocupação das chefias militares quanto à situação de descontentamento e mal-estar que as medidas tomadas pelo actual Governo, de ataque frontal ao estatuto da condição militar, têm vindo a causar nas fileiras militares.
Questões como o agravamento do regime de descontos para os subsistemas de saúde, a não contagem do tempo de serviço para efeitos de progressão nas carreiras, o congelamento de todos os suplementos remuneratórios, as interpretações gravosas da Caixa Geral de Aposentações quanto às condições de aposentação e quanto ao cálculo das pensões de reforma dos militares, entre outras medidas violadoras da Lei de Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar, estão a gerar, segundo os chefes militares, um clima de «perturbação», de «insatisfação» e de «frustração» nas Forças Armadas.
Importa assinalar que mais do que a emissão de uma opinião, cuja legitimidade nem oferece discussão, a carta do Almirante CEMGFA dá conta de factos e traduz uma realidade objectiva. E importa sublinhar que as situações relatadas estão muito longe de estar resolvidas ou em vias de resolução, não obstante algumas medidas que o Governo, pressionado pelos acontecimentos, se viu obrigado a tomar para pôr termo a situações manifestamente insustentáveis.
Mas um outro facto da maior relevância, e que importa acima de tudo salientar, é que as razões de descontentamento a que aludiu o Almirante CEMFA coincidem largamente com as razões que têm sido invocadas pelas associações representativas dos militares e que têm estado na base das expressões de protesto que têm sido levadas a cabo, sob diversas formas, pelos cidadãos que prestam ou prestaram serviço nas Forças Armadas.
Protestos tanto mais justificados porquanto às situações descritas se somam muitas outras razões de insatisfação, devido a problemas de há muito diagnosticados e nunca resolvidos e devido ao incumprimento reiterado pelo poder político de diplomas legais em vigor relativos à situação dos militares.
Um recente documento elaborado por uma comissão representativas das associações de militares dá conta de 42 diplomas legislativos que não são cumpridos na sua plenitude, havendo casos de diplomas, como o que estabelece um complemento de pensão, que ficam integralmente por cumprir.
Apesar da reconhecida gravidade da situação descrita e da injustiça das medidas lesivas do seu estatuto, os militares portugueses têm cumprido, integral e exemplarmente, os deveres que assumiram para com o País. Os militares portugueses, nos mais diversos teatros de operações a que são chamados, têm dado o melhor de si para prestigiar a instituição que servem. Apesar de os militares terem razões de queixa de sobra dos governos, os governos não têm razões de queixa dos militares.
No entanto, tratam-nos como se tivessem.
Os militares que, através das suas associações representativas ou no exercício dos seus direitos enquanto dirigentes associativos, tomaram posições públicas, que, pelo seu conteúdo, pouco diferem das preocupações manifestadas pelo Almirante CEMGFA, foram vilipendiados em público, pelo Governo, com a acusação absurda e infundada de que os seus protestos punham em causa a coesão e a disciplina das Forças Armadas, quando é hoje mais do que evidente que, se alguma coisa pode pôr em causa a coesão e a disciplina das Forças Armadas, não são os protestos dos militares, mas as medidas tomadas pelo Governo contra eles.
Se antes de ser conhecida a carta do Almirante CEMGFA as medidas de carácter repressivo que têm sido tomadas contra os militares que manifestam o seu descontentamento, tendo como alvo prioritário os seus dirigentes associativos, já não faziam sentido, agora passaram a ser, pura e simplesmente, do reino do absurdo.
Senão vejamos: A Governadora Civil de Lisboa, perante a suspeita de que haveria uma manifestação de militares de que nunca ninguém lhe deu conta, informou as associações de militares que a manifestação que eles não tinham convocado não estava autorizada por não ter sido convocada com 48 horas de antecedência.
Para além do ridículo desta atitude, que fica com quem a cometeu e com quem a mandou cometer, é preciso que alguém diga à Sr.ª Governadora Civil de Lisboa que o direito de manifestação é um direito fundamental, que decorre directamente da Constituição e cujo respeito deve ser observado por todas as entidades, públicas ou privadas, e que nenhuma lei deste País confere aos governadores civis, ou seja a que entidade administrativa for, o direito de proibir manifestações.
Entretanto, o Vice-Presidente da Associação Nacional de Sargentos foi punido disciplinarmente por declarações públicas feitas em Maio, na qualidade de dirigente associativo, ou seja, por mero delito de opinião cometido em nome da associação de que é dirigente. E foi punido, nem mais nem menos, com uma medida privativa da liberdade aplicada por via administrativa.
Mas, pior do que isso: apesar de a sua libertação ter sido determinada por um tribunal, na sequência de um recurso judicial interposto pelo cidadão punido, essa ordem não foi cumprida pelas autoridades militares.
E aqui estamos perante uma ofensa grave ao funcionamento do Estado de Direito.
A Constituição da República, no seu artigo 27.º, sob a epígrafe «Direito à liberdade e à segurança», dispõe que ninguém pode ser, total ou parcialmente, privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. Uma das excepções a este princípio é a prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente - sublinho, com garantia de recurso para o tribunal competente.
Quando o tribunal competente se pronuncia e manda cessar a aplicação de uma medida administrativa privativa da liberdade, essa decisão não pode deixar de ser cumprida, sob pena de ser posto em causa um princípio basilar do Estado de Direito, que é o respeito pelas decisões dos tribunais.
E perante um facto com esta gravidade, o Ministro da Defesa Nacional não pode dizer, como disse, que não tinha nada a dizer. Quando o Ministro da Defesa Nacional se refugia no silêncio, perante uma situação destas, perde toda e qualquer autoridade enquanto governante para exigir o cumprimento da lei seja a quem for.
O Ministro da Defesa Nacional, com base em interpretações retorcidas da lei, pronuncia-se publicamente contra a possibilidade da participação dos militares em manifestações e acha que eles devem ser punidos por fazerem declarações públicas em defesa dos seus direitos - sobre isso, o Sr. Ministro não hesita em pronunciar-se. Mas quando um militar é preso por decisão administrativa, quando um tribunal competente o manda libertar e quando essa decisão não é cumprida por quem tem o dever indeclinável de a cumprir, o Sr. Ministro acha que não tem de se pronunciar, apesar de tudo se passar sob a sua tutela.
Estranha concepção do exercício de funções governativas.
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Num Estado de Direito democrático, o respeito pela lei e pelas decisões dos tribunais é exigível a todos. Não há, nem pode haver, excepções. Não é aceitável, nem em relação aos militares, nem em relação a qualquer categoria de cidadãos, que as leis sejam aplicadas quando são contra si mas que já não sejam aplicadas quando estão a seu favor. É precisamente isso o que está a acontecer em relação aos militares. Dois pesos e duas medidas: quando a lei retira direitos, cumpre-se; quando a lei confere direitos, não se cumpre.
Isto não é aceitável. E este órgão de soberania, que têm a competência constitucional de vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis, não pode ficar calado como ficou o Ministro da Defesa Nacional.
Pela nossa parte, não nos calamos e não nos calaremos!
(...)
Sr. Presidente,
Agradeço ao Sr. Deputado Henrique de Freitas as questões colocadas e ao Sr. Deputado Marques Júnior os comentários proferidos.
O Sr. Deputado Henrique de Freitas começou a sua intervenção dizendo que eu era saudoso - não sei de quê. Julgo que o Sr. Deputado é que é saudoso da «brigada do reumático», porque a concepção de Forças Armadas que aqui defende é mais parecida com isso do que com umas Forças Armadas dignas de um regime democrático, como julgo que são as nossas. Aqui incluo as chefias militares e os militares que servem nas Forças Armadas, que penso serem dignos de um regime democrático.
Aliás, passando já para um dos comentários do Sr. Deputado Marques Júnior, entendo que o Sr. Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas tem uma legitimidade indiscutível para se pronunciar junto do Governo, como fez de forma adequada - o facto de a carta ter sido tornada pública não foi da sua autoria, segundo esclareceu. O facto de o conteúdo das suas preocupações ter vindo para a opinião pública não faz com que ele fique equiparado a uma associação de militares que se manifesta em defesa dos seus direitos.
Creio que cada um terá o seu título de legitimidade. As associações têm a legitimidade que a lei e a Constituição lhes conferem para actuarem da forma que consideram adequada - e muito bem - e o mesmo fazem as chefias militares. Cada um tem o seu título de legitimidade próprio, que é diferente, mas ambos legítimos.
Porém, entendo que, pelo conteúdo que expressou, a carta do Sr. Almirante CEMGFA ao Sr. Ministro da Defesa Nacional vem, afinal, implicitamente, vem dar razão aos militares quando manifestam a sua indignação por diversas formas.
Há uma questão que o Sr. Deputado Henrique de Freitas coloca e que não faz sentido. Ou seja, diz que as associações dos militares só podem pronunciar-se pela via hierárquica. Ó Sr. Deputado, não é isso que está na lei! Para isso não valia a pena aprovar uma lei sobre o associativismo militar. Essa quase parece a posição da Sr.ª Governadora Civil quando considera que pode proibir manifestações. Se as associações militares existem legalmente e não se podem pronunciar sobre os assuntos que dizem respeito aos militares, então para que servirão essas associações?!
Há uma questão que considero muito grave e que tem a ver com a aplicação das medidas privativas de liberdade. A Constituição e a lei portuguesa prevêem as medidas privativas de liberdade em situações muito excepcionais, mesmo para os criminosos. Isto é, não é qualquer crime que implica a aplicação de uma pena privativa da liberdade. É preciso ser um crime grave. Ora, se assim é do ponto de vista da política criminal, por maioria de razão o será do ponto de vista disciplinar. Não faz qualquer sentido que se possa admitir que, por delito de opinião - repito, por delito de opinião, porque é o que está em causa; a punição foi aplicada ao Vice-Presidente da Associação Nacional de Sargentos por se ter pronunciado publicamente nos termos em que o fez e por a hierarquia ter considerado que não estava correcto -, possa ser aplicada uma medida privativa de liberdade. Isto é absolutamente desproporcionado!
Mais ainda quando é um tribunal que o afirma.
Tenho o maior respeito pelas Forças Armadas, como sabem, mas elas inserem-se dentro da legalidade democrática. Portanto, não se pode, sem mais nem menos, deixar de cumprir uma decisão judicial que tem que ver com a liberdade de um cidadão em concreto que se viu privado de um dos mais fundamentais direitos humanos.
Portanto, esse é um objecto de discussão, mesmo do ponto de vista legislativo, se quiserem, já que o Sr. Deputado Marques Júnior apelou a uma reflexão. Creio que as questões para cuja reflexão apelou merecem essa reflexão, mas esta também merece. Estamos a falar da proporcionalidade da aplicação de medidas privativas de liberdade em sede disciplinar. Se é aceitável que existam, elas têm de ser aplicadas de forma proporcionada e o Estado de direito democrático tem de ter mecanismos eficazes para evitar que haja abusos na aplicação de medidas dessa natureza. Essa é a questão essencial que aqui queríamos trazer.