Intervenção de João Oliveira na Assembleia de República

Luta contra as formas graves de criminalidade

Procede à primeira alteração à Lei n.º 36/2003, de 23 de agosto, em cumprimento da Decisão n.º 2009/426/JAI do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao reforço da Eurojust e que altera a Decisão n.º 2002/187/JAI relativa à criação da Eurojust a fim de reforçar a luta contra as formas graves de criminalidade
(proposta de lei n.º 185/XII/3.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados,
Sr.ª Ministra da Justiça,
Tenho comigo a Decisão que fundamenta esta proposta de lei do Governo e a primeira pergunta que quero deixar à Sr.ª Ministra é a seguinte: onde é que, nesta Decisão, está prevista a obrigação de o Estado português alterar as regras de nomeação de um membro nacional para a Eurojust?
Queria, em particular, que a Sr.ª Ministra pudesse dar a resposta, confrontando-a com aquilo que é proposto no n.º 1 do artigo 2.º desta Decisão, que altera a Decisão anterior, quando se diz que a Eurojust é composta por um membro nacional destacado por cada Estado-membro, segundo o seu sistema jurídico, que deve ser procurador, juiz ou oficial de polícia com prerrogativas equivalentes.
Sr.ª Ministra, queria perceber porque é que esta Decisão implicava uma alteração às regras de nomeação do membro nacional.
Em segundo lugar, Sr.ª Ministra, queria perguntar-lhe o seguinte: é ou não verdade que foi proposta a renovação da comissão de serviço do atual membro nacional da Eurojust?
É ou não verdade que a Sr.ª Ministra recusou dar seguimento a essa renovação da comissão de serviço e, Sr.ª Ministra, gostava de perceber como é que, neste quadro, apresenta a esta Assembleia da República uma proposta de lei que reduz a capacidade de intervenção do Conselho Superior do Ministério Público?
Como é que a Sr.ª Ministra apresenta a esta Assembleia da República uma proposta de lei que deixa nas mãos do Governo a possibilidade de influenciar substantivamente a escolha do membro nacional proposto pelo Ministério Público?
E como pode esperar desta Assembleia da República que entendamos que isto nada tem a ver com essa circunstância da proposta de renovação da comissão de serviço que lhe foi apresentada e à qual a Sr.ª Ministra não deu seguimento?
Sr.ª Ministra — na intervenção que farei a seguir terei, não muito, mas algum tempo para explicar melhor a conceção do PCP sobre esta matéria —, estamos perante a circunstância de discutirmos um regime que é necessário salvaguardar no plano interno, sobretudo na decorrência das normas constitucionais previstas sobre esta matéria, a autonomia externa do Ministério Público. E é fundamental que para a indicação de um membro de uma autoridade judiciária possa ser o Ministério Público a influenciar substantivamente essa decisão.
Esta proposta de lei, Sr.ª Ministra, não é compatível com a autonomia externa do Ministério Público, nem com os limites, as barreiras constitucionais que sobre esta matéria estão previstos.
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
Em Portugal, a Sr.ª Ministra sabe bem que não podia ser um polícia a ser designado membro nacional da Eurojust. A Sr.ª Ministra sabe que essa é uma possibilidade que a Decisão-Quadro abre no quadro das possibilidades que cada sistema nacional permite. Em Portugal, não podia ser um polícia o membro nacional na Eurojust.
Sr.ª Ministra, o PCP entende que o combate à criminalidade transnacional e a cooperação judiciária internacional não implicam a transferência de competências, de responsabilidades e de esferas de soberania do Ministério Público para autoridades supranacionais.
Portanto, temos uma discordância de fundo com esta arquitetura europeia que é construída para o combate à criminalidade transnacional. É que ela não tinha de implicar que os Estados abdicassem de competências nacionais e de soberania nacional; a cooperação judiciária internacional fazia-se já muito antes da União Europeia e poder-se-ia continuar a fazer, sem que isso implicasse a alienação de soberania.
E, Sr.ª Ministra, esta proposta de lei e a intervenção da Sr.ª Ministra não seria estranha em França, mas, em Portugal, não é aceitável. E não seria estranha em França, porque, em França, o Ministério Público é dependente do poder executivo, mas, em Portugal, não. Em Portugal, há uma obrigação constitucional de respeito pela autonomia externa do Ministério Público. E, Sr.ª Ministra, esta proposta de lei não respeita essa liberdade e essa autonomia externa do Ministério Público.
A Sr.ª Ministra sabe que a autonomia do Ministério Público é uma imposição constitucional e uma garantia dos cidadãos, e é um reflexo do princípio da separação com interdependência de poderes.
A Sr.ª Ministra sabe que do que estamos a tratar hoje é da indicação de um membro nacional para uma autoridade judiciária internacional. E, respeitando a autonomia do Ministério Público, o Governo deve ter um papel meramente formal naquilo que é a indicação de um membro nacional para a Eurojust.
Sr.ª Ministra, a intervenção do Governo neste processo, como é proposto na proposta de lei, não é uma intervenção, é uma interferência. O afastamento do Conselho Superior do Ministério Público e o reforço dos poderes da Procuradoria-Geral da República é uma má opção, que não tem a ver com quem exerce as funções mas, sim, com o modelo e a arquitetura orgânica do Ministério Público.
Esta proposta de lei, naquilo que prevê de definição dos correspondentes nacionais na Eurojust é uma intromissão na autonomia do Ministério Público e é um condicionamento da liberdade de organização interna.
E, Sr.ª Ministra, esta proposta de lei, tal qual está, não tem rigorosamente nada a ver com as obrigações de cumprimento da Decisão-Quadro. Ela é o aproveitamento da Decisão-Quadro para ir a matérias que não tinham a ver com a Decisão e matérias que dificilmente conseguem ser explicadas sem atender àquela que é uma questão de fundo (e não é um mexerico ou uma questão lateral): a decisão do Governo de não dar seguimento a uma proposta do Conselho Superior do Ministério Público para renovar uma comissão de serviço do membro nacional da Eurojust é um problema, Sr.ª Ministra, que traduz tudo aquilo que entendemos negativo, que é a interferência do Governo naquilo que deveria ser uma responsabilidade exclusiva do Ministério Público.

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