Artigo de António Abreu na «Capital»

«Lisboa, cidade de Abril»

O 25 de Abril foi uma revolução. De âmbito nacional, portanto. Mas isso não é contraditório com que, também por óbvias razões, se tenham aqui, ou muito perto, registado os principais, mais dramáticos e decisivos momentos: Largo do Carmo, Rua do Arsenal, Terreiro do Paço e Tejo, estações de rádio e televisão, aeroporto, PIDE/DGS, Pontinha e Cova da Moura, Caxias.

Na sequência destes acontecimentos, a população pôs-se em marcha. Acompanharam-na técnicos, nomeadamente ligados à habitação, para procurarem um novo estatuto e realização prática de direitos até aí negados.

As autarquias, prolongamentos e mandatários, sem meios de intervenção , do aparelho de Estado fascista, foram de imediato saneadas e substituídas por órgãos eleitos pele população, as comissões administrativas, cujos 260 membros foram empossados legalmente até final de Novembro. Estas comissões começaram a procurar recursos de intervenção, em conjunto com cooperativas de habitação e mais de 125 comissões de moradores, dando, por exemplo, contributo importante ao processo SAAL(Serviço de Apoio Ambulatório Local), que marcou a diferença, nos bairros sociais. Surgiram as brigadas de apoio local (BAL) essencialmente constituídas por técnicos que apoiaram as outras estruturas na aquisição de terrenos, elaboração de projectos e lançamento de empreitadas. Apesar das dificuldades criadas a partir da Câmara e do Governo a partir do final de 1975, este período ficou assinalado pela quantidade e qualidade das intervenções e pela capacidade de realização das populações organizadas.

Desse período registamos, em primeiro lugar, o reconhecimento na prática do direito à população das barracas a serem realojadas nos próprios locais, o que, de forma sistemática só viria a acontecer mais tarde.

Os governos provisórios tomaram importantes medidas positivas. E em Lisboa avançaram, na dinâmica que já referimos, os arruamentos e pavimentações, o saneamento, os balneários, a iluminação pública, as obras em habitação degradada, as condições de escolas e de transportes públicos, a prática desportiva.

Até ao início da década de oitenta, e com legislação urbanística em geral inexistente, foi publicado pela primeira vez oficialmente o PDM (à data designado por Plano Geral de Urbanização (PGU). Verificou-se alguma paralisia no licenciamento e apareceram novas urbanizações na base de loteamentos.

Na década seguinte prolongou-se a ausência de legislação urbanística geral com o consequente abandono e desrespeito do PGU, reinou o casuísmo e continuaram as urbanizações por loteamentos clandestinos. Por pressão da opinião pública e de moradores iniciou-se a pedonalização de ruas e criaram-se os primeiros gabinetes para bairros históricos. Mas os arruamentos e infra-estruturas acentuavam a sua degradação e o número de barracas ia aumentando. No final da década aumentaram de forma condenável os licenciamentos com elevadas volumetrias, desrespeitando o PGU.

Entre 76 e 85 à movimentação popular, apoiada nas estruturas já referidas, corresponderam diferenciadas atitudes das forças políticas e, como reflexo, por exemplo, o PCP evoluiu de maiorias em 2 Freguesias , para 6, depois para 9 e finalmente para 12 com uma votação de cerca de 27 %. Superior à que então registava o PS.

Foi no final da década de 80 que esta situação e uma corrente de opinião muito generalizada que contou com a participação activa de muitos técnicos, incluindo técnicos municipais, criaram as condições para os principais partidos da oposição se entenderem e criarem uma coligação, vencedora em 89 e que dirigiu a Câmara até final de 2001.

Na década de 90 registou-se uma progressiva consolidação e preenchimento do tecido urbano, consolidaram-se novas centralidades, realizou-se a quase totalidade da rede viária fundamental, substituindo o modelo radial por um outro, radio-concêntrico, erradicaram-se praticamente as barracas, realojando os seus habitantes, progrediu-se na reabilitação dos bairros históricos, criando-se uma zona de intervenção com recursos diferenciados e com uma estrutura municipal própria ligada à população, executou-se o sistema principal de saneamento básico e registaram-se múltiplas intervenções de qualificação e requalificação do espaço público e construiu-se uma diversificada rede de equipamentos, nomeadamente nas periferias. Alargou-se muito a prática desportiva, o apoio social e a actividade cultural de origens municipais. A estrutura municipal adaptou-se à resolução de novas necessidades, aproximou-se das Juntas de Freguesia e da população. Durante os primeiros anos negociou-se para impedir construções licenciadas no final do último mandato da direita. O PDM, com todas as limitações que se lhe detectaram, permitiu uma outra atitude de maior respeito e disciplina urbanística dos empreendedores.

Resultado da iniciativa governamental ou de parcerias diversas, mas sempre com algum grau de acompanhamento por parte da autarquia, foi construída a Ponte Vasco da Gama, melhorada a Ponte 25 de Abril, desenvolveram-se redes de transportes com destaque para o Metro, requalificou-se a zona ribeirinha com destaque particular para a Expo. Publicou-se a Lei de Bases do Ordenamento do Território e decretos dela decorrentes sobre planeamento e licenciamento de obras.

Apesar de tudo isto, por erros próprios e por não satisfação de necessidades novas resultantes da elevação das expectativas e nível de exigências de diferentes camadas da população, a coligação de esquerda perdeu. Lisboa deu a maioria à tangente na Câmara à direita e manteve a maioria de esquerda na Assembleia Municipal.

A nova maioria já passou o meio do mandato e propôs-se romper com métodos e práticas anteriores.

É especialmente preocupante o que se passa com o planeamento e licenciamento e intervenções casuísticas que se prendem mais com a necessidade de deixar marcas pessoais do que agir em conformidade com necessidades reais. A construção em altura e a afectação dos sistemas de vistas, particularmente sobre o rio, também o são. Mas os fogos devolutos continuam. E o relatório de actividades do segundo ano deste mandato foi o que se viu...

Mas esta continua a ser a cidade de Abril. Há responsabilidades que estamos prontos a assumir e a partilhar no encontrar de uma alternativa. Lisboa não se conforma.

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