Sr.ª Presidente,
Antes de fazer a apresentação do projecto de lei do PCP, gostaria de interpelar a Mesa, como forma de poupar a Câmara a uma defesa da honra, que, creio, apesar de tudo, poderia ter lugar, em face do que o Sr. Ministro disse a nosso respeito.
E é uma interpelação, Sr.ª Presidente, pelo seguinte: o Sr. Ministro, a propósito de um aparte feito por mim próprio, referiu o facto de o PCP não ter formulado qualquer per-gunta. Ora, eu desejava esclarecer a Câmara de que teria todo o gosto em ter pedido um esclarecimento se não se desse o caso de, apesar de o PCP ter apresentado há 16 meses um projecto de lei sobre esta matéria e de ter feito todos os esforços, em Conferência de Líderes, para que fosse agendado, apenas dispormos de 9 minutos para o apresentar, sendo ele ainda mais extenso do que a proposta do Governo.
Só por estas circunstâncias nos vimos impossibilitados de formular uma pergunta ao Sr. Ministro que bem gostaríamos de ter feito. Talvez o possamos fazer no decorrer do debate, se a maioria não esgotar o extenso tempo de que dispõe e nos quiser ceder algum…!
(...)
Sr.ª Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados:
O papel que a Assembleia da República é chamada a desempenhar neste processo legislativo não é digno das suas funções constitucionais, pois vai limitar-se a sancionar um acordo celebrado há alguns meses entre o Governo e um dos partidos da oposição — no caso, o Partido Socialista — quanto à reorganização dos serviços de informações. O processo legislativo ainda está no início, mas o resultado, mais vírgula ou menos vírgula, já está previamente combinado.
E um partido como o PCP, que responsavelmente reflectiu sobre esta matéria, conside-rando a sua relevância nacional e democrática, e que há 16 meses apresentou um projecto de lei, propon-do uma reformulação profunda do Sistema de Informações da República, dispõe hoje apenas de 9 minu-tos para apresentar o seu projecto de lei e defender as suas posições numa matéria tão importante e com-plexa.
Esta situação em nada dignifica a Assembleia da República e o debate parlamentar e põe em causa direitos fundamentais da oposição.
O facto de haver uma parte da oposição que prefere entender-se com o Governo à porta fechada não pode fazer esquecer que há outra oposição, na qual o PCP se inclui, que entende que o deba-te sobre os serviços de informações da República deve ser um debate democrático, aberto, transparente e que não aceita ser excluída de participar nesse debate.
O funcionamento dos serviços integrados no Sistema de Informações da República Portuguesa tem suscitado frequentes controvérsias, quer por suspeitas de actuações ilegais, quer por fugas de informações relativas a relatórios confidenciais, quer relacionadas com a debilidade e a ineficácia da fiscalização democrática da actuação dos serviços, que tem passado por longas fases de total paralisia e que, mesmo nos períodos em que existiu Conselho de Fiscalização, se remeteu a uma total irrelevância.
Notícias de que várias personalidades da vida política portuguesa teriam sido investigadas pelo SIEDM e de que movimentos sociais de protesto contra a política do Governo teriam sido objecto de vigilância do SIS; provas nunca refutadas de que um antigo espião sul-africano, perseguido por vários crimes cometidos no tempo do apartheid, foi contratado pelo SIS, permanecendo ilegalmente em Portu-gal com a sua cumplicidade; notícias de que altos funcionários da CIA se teriam deslocado a Portugal para ensinar os agentes dos serviços de informações portugueses a fazer escutas, intrusões ou interrogató-rios, ou de que se desenvolveriam no SIEDM processos de «assalto ao poder», são suspeitas, imputações ou acusações que em nada prestigiam os serviços de informações portugueses e que põem gravemente em causa as suas credibilidade e idoneidade democráticas, tanto mais quanto algumas dessas acusações nun-ca foram cabalmente esclarecidas e nunca mereceram qualquer atenção por parte dos Conselhos de Fiscalização que existiram.
O PCP entende que esta situação não se pode manter. Os serviços de informações não podem conti-nuar a ser motivo de frequente suspeita quanto à sua utilização abusiva por parte dos governos e quanto à ilegalidade das suas actuações, pelo que constitui um imperativo nacional encontrar os mecanismos legais que impeçam a instrumentalização político-partidária dos serviços e que equacionem em termos eficazes a sua fiscalização democrática.
Assim, o PCP propõe uma alteração institucional profunda do Sistema de Informações da República Portuguesa em três domínios essenciais.
Em primeiro lugar, enquadrando institucionalmente o Sistema de Informações, de forma a assegurar uma relação dos serviços com o Presidente da República mais conforme com a importância deste órgão de soberania, tendo sobretudo em consideração o seu papel de Comandante Supremo das Forças Armadas e as suas responsabilidades na representação externa da República. Os serviços de informações não são instrumentos exclusivos do governo mas do Estado, pelo que se impõe, sem prejuízo das competências governamentais de direcção e superintendência sobre esses serviços, um reequilíbrio institucional que credibilize a actividade do sistema, em conformidade com o regime democrático e no respeito pelos direi-tos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Em segundo lugar, no domínio da fiscalização dos serviços, reforçando as competências do Conselho de Fiscalização e as suas garantias de independência e reforçando as possibilidades de fiscalização directa dos serviços por parte da Assembleia da República.
Em terceiro lugar, clarificando alguns aspectos do regime do Sistema de Informações da República Portuguesa de modo a assegurar uma maior confiança quanto à conformidade constitucional da sua actua-ção.
A proposta apresentada pelo Governo conta com a frontal oposição do PCP quanto a alguns aspectos essenciais.
Desde logo, pela total governamentalização dos serviços que continua a consagrar e que, do nosso ponto de vista, não é conforme com os princípios constitucionais. Os serviços de informações não podem continuar a ser os serviços de informação do governo da República, com total marginalização dos demais órgãos de soberania.
Também pela manifesta ausência de mecanismos credíveis de fiscalização democráti-ca. A proposta de lei aponta claramente para a continuação da situação absurda em que temos vivido: nos últimos 10 anos, apenas existiu Conselho de Fiscalização durante quatro anos e dois meses, e quando existiu limitou-se à emissão de pareceres anuais meramente formais, indiciadores de uma total ausência de fiscalização real sobre o funcionamento dos serviços.
Estamos há 8 meses sem Conselho de Fiscalização e, mais uma vez, o adiamento — hoje decidido pela maioria — da eleição dos membros do Conselho de Fiscalização pela Assembleia da República, apesar de ter sido apresentada uma lista por vários partidos da oposição, é indiciador da von-tade política da maioria de continuar com este impasse que tem vindo a inviabilizar qualquer tipo de fiscalização democrática dos serviços de informações!
Por último, e fundamentalmente, porque a proposta de lei dá passos significativos no sentido de uma maior concentração dos serviços que pode traduzir-se, na prática, num verdadeiro proces-so de fusão.
É certo que o Governo, supostamente em nome das negociações com o PS, desistiu de consagrar for-malmente a fusão do SIS e do SIEDM. Mas, bem vistas as coisas, as tutelas diferenciadas sobre o SIS e o SIEDM serão substituídas pela tutela directa do primeiro-ministro, que será exercida por um secretário-geral da sua confiança, equiparado a membro do governo. Não se trata, como bem se vê, de uma coorde-nação a nível superior mas de uma tutela conjunta, o que suscita sérias perplexidades e preocupações.
Nos termos da Lei-Quadro do Sistema de Informações da República, o SIS tem como missão a produ-ção de informações que contribuam para a salvaguarda da segurança interna e a prevenção da sabotagem, do terrorismo, da espionagem e a prática de actos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de direito constitucionalmente estabelecido.
Por seu lado, o SIEDM tem a missão de produzir informações que contribuam para a salvaguarda da independência nacional, dos interesses nacionais, da segurança externa do Estado português, para o cum-primento das missões das Forças Armadas e para a segurança militar.
São, como se pode constatar, funções claramente distintas. Uma fusão de ambos os serviços, impli-cando a recolha de informação conjunta em matéria de defesa nacional e de segurança interna, é tributária de uma lógica de fusão de missões entre forças militares e de segurança que, a nosso ver, a Constituição não permite.
É óbvio que a acção dos serviços de informações deve ser coordenada a nível superior, mas essa necessidade de coordenação não implica que tenha de haver uma fusão de serviços que têm lógicas e missões distintas, seja essa fusão explícita ou implícita, como é o caso, através da direcção única de ser-viços formalmente distintos.
Esta proposta de lei aponta, assim, para um caminho preocupante, sobretudo numa situação mundial como a que vivemos, em que, a pretexto da luta contra o terrorismo, começamos a assistir, em diversos países, à generalização de regimes de excepção de carácter securitário que entram em conflito directo com as liberdades públicas e com garantias dos cidadãos que constituem o património civilizacional das democracias.
Os serviços de informações devem servir para, em nome da Democracia, defender os cidadãos das ameaças à sua segurança mas não devem poder, em nome da segurança, ser uma ameaça para a própria Democracia. Aplausos do PCP.
(...)
Sr. Presidente, Uma segunda intervenção brevíssima para me referir a um problema, aqui tratado em diversas intervenções, que é o da fiscalização democrática.
Vários Srs. Deputados de vários partidos falaram da necessidade de fiscalização democrática. Ora, importa salientar a esse respeito que fiscalização democrática sobre os Serviços de Informações é coisa que manifestamente não tem havido.
Em 10 anos de existência legal do Conselho de Fiscalização, ele apenas existiu durante quatro anos e dois meses, isto é, em mais de metade do tempo, ao longo destes 10 anos, pura e simples-mente não houve Conselho de Fiscalização.
Aliás, isso acontece há oito meses e ainda hoje foi adiada mais uma vez a eleição dos membros do Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações. Ao contrário do que foi insinuado, não reivindi-camos a nossa participação no Conselho de Fiscalização, reivindicamos, sim, que os senhores elejam os vossos representantes e é isso que os senhores não fazem!
Têm o dever legal estrito de o fazer, sob pena de não haver qualquer fiscalização.
Sabemos que, mesmo quando funcionou, o Conselho de Fiscalização nada fiscalizou. Recebemos o último «parecer-chapa» desse Conselho, que diz não ter recebido qualquer informação da DIMIL sobre as suas informações. Depois, o Sr. Ministro de Estado e da Defesa Nacional veio à respectiva comissão parlamentar dizer em que data tinha sido enviada. Isto é, as Forças Armadas enviaram a informação e o Conselho de Fiscalização ou não a recebeu ou não a quis receber e fez um parecer a dizer que não tinha recebido. Ora, isto é o descrédito total da fiscalização. Inclusivamente, a pessoa que assinou esse «pare-cer-chapa» é a actual directora dos Serviços de Informações de Segurança, nomeada pelo XV Governo.
Ora, prezamos muito a credibilidade dos Serviços, mas é preciso dizer que, até à data, os Serviços não fizeram fosse o que fosse para se credibilizarem e que a maioria actual e também (temos de dizê-lo, porque é verdade) o Partido Socialista nada têm feito para que os Serviços possam ter credibi-lidade e se possam prestigiar aos olhos dos portugueses. E isso que reivindicamos.
Não fomos nós que inventámos a notícia sobre um espião sul-africano do tempo do apartheid que esteve em Portugal a colaborar com o SIS. Isto foi provado judicialmente e não está em segredo de justiça. Pura e simplesmente, o Conselho de Fiscalização não se pronunciou sobre suma ques-tão tão grave como essa.
Apelamos, Sr. Presidente e Srs. Deputados, a esta maioria alargada, que vai aprovar esta proposta de lei, que tenha em atenção a necessidade estrita de a Assembleia da República poder fiscalizar, efectiva e democraticamente, os Serviços de Informações, sendo para isso necessário que os senhores, no mínimo dos mínimos, elejam os membros do Conselho de Fiscalização.