Sr. Presidente, Srs. Deputados: A água é essencial e insubstituível à vida. A vida humana, a produção de alimentos, a grande maioria dos sectores produtivos estão inevitavelmente dependentes da existência e disponibilidade desse líquido que parece ser tão abundante. Mas a água doce em estado líquido é finita e vulnerável, a sua ocorrência varia no tempo e de forma irregular pelas várias regiões. No nosso clima mediterrânico, as variações sazonais são acentuadas. Há, periodicamente, cheias e secas. Dependendo das substâncias dissolvidas e dos processos químicos e biológicos que nela se desenvol-vem, a água pode ser fonte de vida e riqueza ou veículo de doenças, insanidade ou catástrofe. Apenas 0,009% (menos de uma parte em dez mil) correm nos rios e lagos, 0,001% na atmosfera e cerca de uma parte num milhão está presente na biosfera. No entanto, a maior parte da água utilizável oculta-se onde antes o homem não tinha capacidade de chegar: no subsolo. As águas subterrâ-neas constituem 1,05% de todos os recursos hídricos do planeta e são hoje uma reserva inestimável, mas também ameaçada. O desenvolvimento das técnicas de prospecção e captação de águas subterrâneas tem vindo a permitir a exploração das águas que se encontram centenas de metros abaixo do nível do solo. A capacidade de extracção avançou muito mais rapidamente que as práticas de protecção. Vários sistemas aquíferos portugueses estão, por isso, sob ameaça de sobrexploração ou de inquinamento. É, portanto, urgente proteger as águas subterrâneas como recursos hídricos essenciais e estratégicos do País. Ora, no actual quadro, de forte exploração desenfreada dos recursos naturais e de agravada e crescente poluição sob todas as suas formas, torna-se radicalmente necessária uma visão estratégica sobre a água. Proteger a qualidade das águas para consumo humano, mas também em todas as suas funções sociais e ecológicas é central, imperioso e vital. E é tão importante, neste esforço de protecção, que sejam tidas em conta as águas subterrâneas como as águas superficiais e marinhas. A poluição das águas, sejam elas superficiais ou subterrâneas, não constitui situação cujas consequên-cias possam ser circunscritas a um rio, lago ou albufeira, nem mesmo a uma bacia hidrográfica. A água é um fluxo contínuo, não é estática nem compartimentada. Também em fluxo é utilizada a água. E é menos importante quanta é usada que as condições em que é devolvida e que efeitos essa devolução vai provo-car. A captação não pode ser, portanto, a única fase que merece atenção. A rejeição das águas é tão impor-tante quanto a sua captação. É, no entanto, muito mais difícil de controlar, porque se uma única variável facilmente mensurável, o caudal, pode caracterizar a captação, a qualidade física, química e microbiológica da rejeição é muito mais complexa de controlar. Mas importa proteger a qualidade das águas exactamente porque elas são essenciais à vida, à qualida-de de vida e a um vasto conjunto de processos produtivos, dos quais também depende o bem-estar das populações, assim como a todos os seres vivos que nos rodeiam, incluindo aqueles de que nos alimenta-mos. É essa a principal razão que deve servir de chamada de atenção para guiar as opções estratégicas em torno da gestão dos recursos hídricos nacionais: a necessidade incontornável da disponibilidade de água própria para consumo humano. O Estado tem de reconhecer a importância essencial da água, da sua gestão e distribuição e tem, como tal, de garantir o cumprimento deste carácter público. Um recurso tão vital como é a água — o mais vital — não pode sair da esfera da gestão pública nem estar sujeito a outros mecanismos ou lógicas que não sejam os do interesse público, os do direito à vida. A água é uma necessidade e um direito, e é dever fundamental do Estado protegê-la e garantir as suas funções essenciais. A sujeição da gestão e distribuição dos recursos hídricos a lógicas mercantis subverte por completo o seu carácter de «condomínio» dos portugueses, da habitação e produção em todo o território português. O interesse do lucro conduz à sobreexploração e degradação de curto prazo e à exclusão, ameaça as condi-ções de vida, as condições sanitárias e o sistema produtivo, hipotecando o futuro. O Estado deve ser a peça fundamental no garante do acesso à água, sem excepções, para todos os cidadãos. Esta é a questão central que se coloca ao discutir o futuro deste recurso tão escasso. A gestão pública e o controlo público, popular e institucional, são a garantia de que a água é utilizada no próprio inte-resse colectivo, ao invés de ser transformada em mais uma mercadoria sujeita às regras do mercado e do lucro. Srs. Deputados, a questão que se nos coloca hoje não pode, pois, ser analisada à luz de uma qualquer opção meramente partidária e deve, antes, ser profundamente ponderada face à responsabilidade da deci-são e à importância da estratégia que será adoptada. Para o Partido Comunista Português é tão importante garantir o carácter público do recurso propriamen-te dito como o da sua gestão e distribuição, pois de pouco importa que seja público um aquífero que se encontra a 400 m de profundidade se for privada a estrutura que procede à sua exploração, distribuição e gestão. O simples facto de existir aqui um intermediário privado na gestão do recurso significa a extracção de lucro na distribuição e gestão da água. Assim, o Partido Comunista Português apresenta um projecto de lei da água que julga ir ao encontro das reais necessidades do bem a que nos referimos. Não é um corpo estático ou estanque nem compartimen-tado. A lei deve estar o mais possível adaptada a estas características, tendo em conta a ligação entre os aquíferos subterrâneos, rios, mares, lagos, albufeiras e águas atmosféricas. O PCP apresenta um projecto de lei que garante o carácter público e a integridade do domínio público hídrico, bem como da sua gestão e distribuição. O PCP apresenta um projecto de lei que vai ao encontro das verdadeiras características físicas do recur-so em causa e que as concilia com soluções legislativas para o cumprimento da Directiva-Quadro da Água da União Europeia, mas essencialmente concilia também essas propriedades com a importância ambiental, sanitária, económica e política da água. O projecto de lei do PCP é o único hoje presente para discussão que integra o sistema de licenciamento num só processo, garantido a responsabilização do utilizador para com o percurso que dará à água por si captada e tendo em conta o princípio do poluidor-pagador. Garante-se, assim, o controlo público e democrático de todas as utilizações deste recurso, do princípio ao fim da sua utilização. As licen-ças são atribuídas para captação e rejeição em licença única, numa fórmula inovadora que responsabiliza o utilizador e introduz mecanismos de controlo não só da poluição pontual como da difusa. O projecto que hoje apresenta o PCP é também o único que garante o controlo democrático da gestão e administração da água enquanto recurso comum de importância estratégica. É o único projecto que garante a soberania do interesse público, protegendo os direitos de cada cidadão e respeitando o interesse privado. É o único que impede a privatização da água, da sua administração, gestão e distribuição. É, por outro lado, o único que garante também o carácter público das infra-estruturas hídri-cas, impedindo a sua privatização ou concessão a privados que podem colocar em causa a sua utilização para o bem do interesse público. É, finalmente, o único que responsabiliza, de facto, o Estado pela protec-ção da água, limitando-lhe, em simultâneo, a arbitrariedade e responsabilizando ainda os utilizadores. Além do já referido, não podemos deixar de registar que o projecto de lei do PCP é também aquele que melhor transpõe os princípios da informação e participação dos cidadãos na delineação da política de ges-tão da água, nomeadamente através da criação de uma estrutura independente com forte pendor represen-tativo — a Alta Autoridade para a Água —, onde terão lugar representantes do poder local autárquico e dos governos regionais, entre outros. Ora, dizer que o projecto de lei do PCP é o único que contempla este conjunto de aspectos é o mesmo que afirmar que, em rigor, os outros documentos que discutimos são essencialmente contrários à protecção das funções essenciais da água. São regras comerciais destinadas à privatização da água em todo o seu percurso. Resta saber por que existe tanta pressa e pressão para que esta lei, tão importante, seja rapidamente implementada. Será para bem dos utilizadores da água, ou seja, das populações? Ou será para possibilitar rapidamente a corrida ao lucro e a venda do interesse de todos? Quem ficará a ganhar? Os partidos de direita e o Governo apresentam — e, no caso do Governo, pela calada — projectos que mais não fazem senão estabelecer as normas para a alienação da gestão do domínio púbico hídrico. Perde o povo português! Propõem-nos que a concessão das explorações e distribuição da água possa ser adjudi-cada por despacho ministerial. A água que circula em Portugal passa a ser apenas mais uma mercadoria. Está à venda, para quem a quiser comprar e tiver dinheiro para tal! Poderão os proponentes dos documentos louvar a sua dimensão técnica. O que não podem fazer é utili-zá-la como pretexto para privatizar os recursos hídricos, a sua exploração, gestão e distribuição. Não podem dizer que transpor a Directiva é impor o princípio do utilizador-pagador (que não é, sequer, mencio-nado nesse diploma). Poderão hoje tentar esgrimir argumentos, utilizando as pequenas diferenças de por-menor que existem entre os projectos de lei do PSD e do CDS e a proposta de lei do Governo. Mas não poderão contrariar as orientações políticas de cada documento, pois são exactamente iguais. Assim se comprova, até nesta matéria, a típica consonância entre o PS, o Governo e o PSD, que tanto tem vindo a contribuir para a alternância inconsequente do poder e para a recorrente desilusão da popula-ção. Nem mesmo na matéria da água, em que o PS teria uma excelente oportunidade para mostrar que, afinal, ainda lhe resta um pouco de consciência de esquerda, este partido opta por se colocar do lado dos portugueses. Opta, ao invés, por se colocar do lado da dinâmica do mercado, seja ela ou não positiva para a população portuguesa. O Partido Comunista Português apresenta um projecto de lei inovador e adequado à resolução dos pro-blemas actuais. Mas não o considera um projecto acabado ou um projecto fechado. Esta matéria tem impli-cações demasiado profundas e importantes para se limitar a uma sala, mesmo que esta albergue o Plená-rio da Assembleia da República. Este não é um assunto que possa ser tratado com leviandade e à parte dos cidadãos e instituições. É necessária a maior e mais ampla discussão e preparação, envolvendo as instituições, as autarquias e os mais diversos agentes da sociedade portuguesa, desde os bombeiros às associações de utentes, passando pelos especialistas científicos em matéria de água, os agricultores, as associações de defesa do ambiente, os criadores de gado, os sindicatos e os diversos ramos da indústria utilizadora da água. O Governo não teve, infelizmente, este entendimento e apresenta-nos uma proposta que mal tivemos oportunidade de debater como consideramos necessário. Esta não é uma matéria que possa ser discutida, votada e aprovada num espaço de uma ou duas semanas. O Governo deveria ter toda a noção disso. E o PCP continuará a lutar por um processo aberto e participado que produza uma lei da água que sirva os portugueses e garanta o futuro.