Senhor Presidente,Senhores membros do Governo,Senhores Deputados,A Proposta de Lei de que hoje nos ocupamos pretende rever a lei da televisão que aqui debatemos há oito anos, e que, na sequência da revisão constitucional de 1989, abriu um novo ciclo da televisão em Portugal. Nestes oito anos, o panorama da televisão alterou-se profundamente, para o bem e para o mal. Aumentou a quantidade da programação disponível, não apenas através da duplicação de operadores por via hertziana terrestre, mas também por via de novas possibilidades de difusão por satélite e por cabo. Introduziram-se novas dinâmicas sobretudo ao nível da informação, com uma maior atenção de todas as televisões ao tratamento de fenómenos da vida social e à cobertura directa de acontecimentos do mais diverso tipo. No entanto, tal como se esperava, e como o PCP alertou no debate de há oito anos, o novo quadro televisivo não deixou de se confrontar, e de nos confrontar, com novos e graves problemas. As dificuldades esperadas da escassez do mercado publicitário face à duplicação de operadores e a concorrência comercial que se introduziu, geraram fenómenos negativos de contra-programação e uma programação essencialmente dirigida à captação de audiências a qualquer preço, muitas vezes com sacrifício de valores inerentes à dignidade humana. Como era esperado, a abertura da televisão a operadores privados não se traduziu em qualquer democratização do acesso à actividade televisiva. Conduziu apenas a novos posicionamentos dos grupos económicos no xadrez das participações no sector da comunicação social. O processo de concentração dos meios de comunicação social que desde meados da década de oitenta se vinha a acentuar entre nós, conheceu novos desenvolvimentos com o alargamento da posição dominante dos principais grupos, associados a colossos mundiais da comunicação, a actividades multimédia.
Tudo isto num quadro em que o sector público de televisão não conseguiu encontrar o seu lugar próprio, afogado numa situação de instabilidade de quadros, de finanças e de meios, ditada sobretudo por políticas apostadas em viabilizar os operadores privados à custa da degradação das condições de prestação de um serviço público, injustamente erigido por muitos em bode expiatório dos problemas da televisão em Portugal.Não é possível ignorar que aqueles que hoje exigem a liquidação da RTP são os mesmos que, no Governo, se encarregaram de a desmantelar, desprestigiar e degradar, pondo em causa as condições de prestação do serviço público de televisão. Ninguém pode ignorar o alto preço que a concessionária do serviço público foi obrigada a pagar para viabilizar a configuração do actual panorama televisivo. Desde logo ao ser esbulhada de todo o vasto património que constituía, até à criação da TDP, a sua rede própria de transmissão e difusão de sinal televisivo, hoje integrada na Portugal Telecom, e por cuja utilização a RTP paga, sem que se perceba com que critério, muito mais que qualquer outro operador. Isto para além de ter perdido a taxa de televisão, que constituía, como se sabe, uma fonte de receita do serviço público.
Ninguém ignora que a implantação dos novos operadores no mercado publicitário não se deveu apenas a conhecidas tácticas de dumping, mas também a uma política deliberada, decidida já pelo actual Governo, de abdicar voluntariamente de uma fatia do mercado publicitário, como forma de subsidiar indirectamente os operadores privados. Ninguém ignora que os Governos, tanto o anterior como o actual, têm fechado os olhos perante as mais grosseiras violações das regras aplicáveis à inserção de publicidade nas televisões, que manifestam em muitas situações o mais completo desrespeito para com os espectadores.
Ninguém ignora que os operadores têm beneficiado de uma situação de quase total desregulação da actividade de televisão e de um inadmissível laxismo da parte do poder político, que tem pactuado com violações grosseiras das leis do país, como nos célebres casos da não transmissão de tempos de antena eleitorais ou da divulgação de sondagens no próprio dia das eleições.
Senhor Presidente, Senhores Deputados,Na exposição de motivos da Proposta de Lei, o Governo fundamenta em razões tecnológicas a necessidade de alterar de novo o quadro legal da televisão em Portugal. Afirma-se que, com a evolução tecnológica do sector foi ultrapassada a limitação constituída pela exiguidade do espectro radioeléctrico, deixando de fazer sentido as restrições vigentes ao exercício da actividade de televisão.
Esta evolução tecnológica é um facto indiscutível. Mas mal andará o legislador, se considerar que as opções numa matéria como esta podem ser remetidas exclusivamente para as circunstâncias ditadas pela evolução tecnológica.
Não é assim. A questão da necessidade de licenciamento, do nosso ponto de vista, não decorre exclusivamente do problema da limitação do espectro radioeléctrico. Não visa dar resposta a questões tecnológicas mas de conteúdos. Um canal generalista difundido por cabo não pode deixar de dar garantias de cumprimento das obrigações legais dos canais generalistas, em termos legalmente previstos.
As regras de acesso à actividade de televisão não podem ser as mesmas que regulam a venda de um qualquer electrodoméstico. A televisão é uma indústria de conteúdos. Os frigoríficos congelam alimentos, mas as televisões informam cidadãos, trabalham consciências, impõem gostos e valores e determinam comportamentos sociais.
Quem está na corrida ao aproveitamento das novas possibilidades tecnológicas ao nível da televisão não são os cidadãos comuns. São mais uma vez os grandes grupos multimédia, apostados em conquistar mais poder económico e mais influência social destinada a consolidar esse mesmo poder.
É neste quadro, senhor Presidente e senhores Deputados, que hoje mais do que nunca, importa consolidar o serviço público de televisão e contrariar os propósitos dos que se lhe opõem. Secundando aliás, a conclusão extraída pela Comissão de Reflexão sobre o Futuro da Televisão de que "no contexto da previsível diversificação de canais, caberá ao serviço público de televisão uma responsabilidade acrescida no desempenho das suas missões".
Na nossa concepção, o serviço público de televisão não pode limitar-se a ser um serviço que o Estado pague à peça. O serviço público de televisão é, acima de tudo, um instrumento decisivo para os cidadãos. É, ou deve ser, um espaço livre das pressões das audiências e do domínio do poder económico, salvaguardada que seja a sua viabilidade, a sua estabilidade, e a sua democraticidade.
Não nos conformamos também, por isso, com uma concepção assente numa suposta vocação minoritária ou elitista do serviço público, de programação quase confidencial. Como já alguém disse, não há serviço público sem público. E não é inevitável que a conquista do público tenha de ser feita à custa da falta de qualidade, ou da exploração do sensacionalismo. Acreditamos, pelo contrário, que com o incentivo da produção nacional, e com a valorização do nosso património e dos novos valores artísticos, culturais e criativos, é possível ter uma boa televisão de serviço público, para o público e com público.
O serviço público de televisão não é um resquício do passado. É antes, uma exigência do futuro.
Senhor Presidente, Senhores Deputados,
A Proposta de Lei do Governo contém aspectos que consideramos positivos. Saliento quatro desses aspectos:
Em primeiro lugar, a adopção de algumas normas destinadas a dar alguma transparência à titularidade de participações sociais em operadores de televisão.
Segundo, a regulação da aquisição de direitos exclusivos que incidam sobre a transmissão de acontecimentos que sejam objecto de interesse generalizado do público, por forma a permitir a transmissão por outros operadores caso os titulares dos direitos exclusivos não emitam em regime aberto ou não assegurem a cobertura nacional, bem como a permitir, em qualquer caso a recolha de extractos informativos desses acontecimentos por parte de todos os operadores.
Terceiro, o estabelecimento de quotas mínimas de transmissão de produções televisivas nacionais e em língua portuguesa, bem como a adopção de medidas de incentivo à produção nacional.
Quarto, a consagração de medidas de salvaguarda do património audiovisual, quer através da obrigatoriedade da concessionária do serviço público conservar e actualizar os arquivos audiovisuais e facultar o seu acesso, quer através da obrigatoriedade de todos os operadores organizarem os respectivos arquivos audiovisuais.
No entanto, estes aspectos positivos não nos fazem esquecer outros tantos motivos de preocupação face ao conteúdo de outros aspectos importantes da Proposta de Lei. Saliento também alguns.
Desde logo, a eliminação de quaisquer limitações à participação no capital social dos operadores de televisão. Não só são eliminadas todas as restrições à penetração do capital estrangeiro nas televisões nacionais, como são também eliminadas as restrições actualmente existentes à participação múltipla ou cruzada em vários operadores por parte de uma mesma entidade. Se a Proposta de Lei for aprovada como está, ficarão escancaradas as portas para uma maior concentração da televisão nas mãos de uns poucos grupos económicos, com verão assim acrescidos os seus poderes de controlo social, com todas as consequências nefastas que para aí decorrem para o funcionamento da democracia e para o direito à informação.
Uma segunda questão preocupante diz respeito ao enorme acréscimo de poderes que a Proposta de Lei confere à Alta Autoridade para a Comunicação Social. Não que seja negativo conferir mais poderes a órgãos de regulação independentes. Mas precisamente, porque a Alta Autoridade para a Comunicação Social, com a composição que resultou da última revisão constitucional (que não alterou substancialmente a situação que vinha de trás), não reúne as garantias de independência necessárias para o exercício isento dos amplos poderes que lhe são atribuídos. Mais: A Proposta de Lei, ao assumir a solução abstrusa de fazer depender o licenciamento de canais de televisão de deliberação da Alta Autoridade sob proposta do Governo, revela com nitidez o propósito de transformar aquela entidade num instrumento de prossecução da política governamental.Também se afiguram preocupantes algumas das opções fundamentais em matéria de serviço público. Desde logo, o facto de não se prever explicitamente a existência de dois canais generalistas de serviço público de âmbito nacional. Depois, por se pretender impor na lei a decisão já tomada pelo Governo de limitar a publicidade no serviço público como forma de subsídio indirecto aos operadores privados. E ainda, por se prever na Proposta de Lei a dedução à indemnização compensatória, dos excedentes que ocorram em resultado da actividade da empresa concessionária na exploração ou participação noutros canais. Péssimo incentivo este ao reequipamento e à modernização do serviço público. Assim como não podemos compreender a solução constante da Proposta de Lei de criar um direito dos actuais operadores à renovação automática do respectivo licenciamento. Não vemos razões para afastar a regra em vigor, segundo a qual, cessando a vigência de um licenciamento se abre novo concurso público. Finalmente, pensamos que deve ser alterado um conjunto de disposições constantes da proposta de Lei que visam flexibilizar as exigências na aplicação de normas legais, designadamente as que se referem às quotas mínimas de transmissão de produção nacional, ao ponto de ser a própria lei a criar as condições propícias ao seu próprio incumprimento. Em conclusão, senhor Presidente e senhores Deputados, entendemos ser indispensável que, na especialidade, sejam alterados os aspectos que consideramos mais negativos da presente Proposta de Lei. Do resultado da discussão na especialidade dependerá, evidentemente, o nosso posicionamento em votação final global. Estamos assim inteiramente disponíveis, e empenhados, para participar neste processo legislativo e contribuir para que dele resulte não apenas mais televisão, mas sobretudo melhor televisão.
Disse.