Intervenção de

Lei da paridade - Intervenção de Odete Santos na Assembleia da República

Lei da paridade: estabelece que as listas para a
Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias
locais são compostas de modo a assegurar a representação mínima de 33%
de cada um dos sexos

 

Sr. Presidente, Srs. Deputados:

Na verdade, o preâmbulo do projecto de lei do Partido Socialista
contém alguns dados que não estão correctos, não são honestos
politicamente, na medida em que, em vez de indicar o número de mulheres
que elegeu de facto, directamente, vem dizer-nos que, agora, tem mais
de 75% das mulheres parlamentares. Pudera! Depois de tantos homens
terem ido para o Governo, finalmente conseguiram entrar umas mulheres
que até tinham ficado nas listas em lugares não elegíveis.

Inicialmente, a percentagem de mulheres incluídas nas
vossas listas era boa, não tinham necessidade de fazer esta triste
figura!

Acresce que, no referido preâmbulo, não se indica a percentagem de
mulheres no Governo e, havendo dados oficiais sobre a participação das
mulheres nas autarquias locais, também se calam — já veremos porquê.

Os tempos vão, aliás, provando que as cosméticas, em política,
esborratam cada vez com mais frequência por mais que se apure a
maquilhagem.

O debate sobre quotas de mulheres, eufemisticamente «paridade», tem
sido sempre, em toda a parte, uma operação de cosmética. A nível
mundial, mas também a nível nacional. Aqui e hoje, com uma
especificidade: o PS deseja subverter o sistema eleitoral que temos à
medida das suas conveniências eleitoralistas — círculos uninominais,
executivos camarários monocolores — e, entretanto, procede à anestesia
que vai permitir as tatuagens.

Não surpreende, por isso, que tenha sido eliminada, por proposta e
votação do Partido Socialista, a alínea das conclusões do relatório,
por mim elaborado na 1.ª Comissão, de onde constava que os sistemas de
representação proporcional eram os que permitiam um maior número de
mulheres eleitas.

Mas a afirmação que exarei nas conclusões está fundamentada no
relatório propriamente dito, onde pode ler-se que, segundo um estudo (e
há mais) de um instituto de pesquisa canadiano, enquanto os sistemas
eleitorais maioritários permitiram, no mundo inteiro, a eleição de 11%
de mulheres, os sistemas de representação proporcional fizeram ascender
aos parlamentos 20% de pessoas do sexo feminino. Mas isto não é
relevante para o Partido Socialista.

A anestesia, no entanto, vai começar a perder efeito.

A ideia da paridade é também uma cosmética por outros motivos. É
uma cosmética na acepção em que é usada por Lampedusa: «É preciso que
alguma coisa mude para que tudo fique na mesma», para que continuem as
desigualdades, nomeadamente em relação às mulheres, os baixos salários,
designadamente das mulheres, a precarização do trabalho, sobretudo das
mulheres, a degradação dos cuidados de saúde, todavia mais evidenciados
no tocante às mulheres.

As adversativas não chegam para vincar que os direitos humanos das
mulheres são direitos dos seres humanos, também dos homens, e que
nenhuma paridade resolverá, para todos os desiguais, este problema.

Ficará tudo na mesma, apesar da insinuação e afirmação de um
especial olhar feminino (e permitam-me um sorriso) que é inexistente —
vão falar com a Condoleeza Rice… —, porque não há um corpo homogéneo
feminino.

Ficará tudo na mesma porque a paridade não quer a alteração do
modelo político neocapitalista do famigerado neoliberalismo e, antes,
se insere na aparência de igualdade forjada em sábios discursos e
proclamações.

É assim que não espanta que, no passado dia 8 de Março, as
direcções do FMI e do Banco Mundial — imaginem! — tenham vindo
proclamar, numa expressão de suprema hipocrisia, a importância da
chamada igualdade de «género» — também uma nova palavra! — e tenham
vindo falar da urgência em dar poder às mulheres para debelar a
pobreza. Isto quando é certo que por toda a parte onde chegam as suas
receitas de privatizações, de baixos salários, de baixas pensões de
reforma, de abdicação de direitos sociais, aumenta a pobreza das
mulheres, regridem os direitos das mulheres!

Mas a paridade fica-lhes tão bem!… Porque a paridade é isto mesmo:
a aceitação de um modelo de poder exercido por uma minoria de homens,
pertencendo às elites política, económica e intelectual, que confiscou,
em seu proveito, os princípios universais de liberdade, igualdade e
fraternidade.

No primeiro debate sobre estas questões dizia-se, numa intervenção
do Partido Socialista: «Este debate é sobre poder, sobre quem o exerce
e sobre as regras de acesso,…», não se dizia que era um debate sobre
democracia.

Mas porque o poder foi confiscado ao povo e está cada vez mais
distanciado do povo e da generalidade das mulheres, é um debate que
mostra que paridade nada tem a ver com democracia. Se assim fosse, o
Ruanda seria o país mais democrático do mundo, porque está em primeiro
lugar no ranking dos países, quanto ao número de mulheres parlamentares, esta percentagem é maior do que nos países nórdicos.

Este debate mostra que se destina a criar a ilusão da igualdade
real, promovendo a reprodução de um modelo de poder que perpetua as
desigualdades e que promove a exclusão das mulheres e, também, da
generalidade dos homens. Promove a exclusão das mulheres da política,
acenando-lhes com a obrigação de conciliarem a actividade profissional
com a vida familiar através do trabalho a tempo parcial — que pena que
seja tão baixa a percentagem de mulheres portuguesas a trabalhar a
tempo parcial! — e afirmando, ainda, que a crise demográfica tem uma
responsável: a mulher.

Exigir a paridade dentro do actual quadro, dentro das regras e
códigos políticos e económicos que serviram e servem apenas uma minoria
de homens em todo o mundo, e também de algumas mulheres, é dar o aval
às diferenças sociais entre os dois sexos, é um convite à desistência
da luta pela igualdade, porque lá, no poder, há quem tenha a chamada
«especificidade feminina», há quem olhe por nós…

Exigir a paridade dentro do modelo intocável do sistema patriarcal
e neocapitalista é querer fazer crer que «as coitadinhas das mulheres»
só podem aceder à política através da sua natural inclusão num corpo
dito homogéneo, definido pela biologia, que terá adquirido, ela
própria, a biologia, o entorno social que criaram às mulheres.

É por isto mesmo que muitas mulheres se rebelam contra a paridade,
porque valorizam as extraordinárias conquistas das mulheres; porque se
recusam a ter entrada na política pela biologia; porque não querem ser
definidas como o ser humano que tem possibilidades de procriar e que,
por isso, terá limitações nos seus direitos; porque querem ser
consideradas como seres humanos, muitas delas com enorme património de
conhecimento adquirido. E este não é um conhecimento livresco.

Para se chegar ao governo não é preciso um curso especial. Nós, no
PCP, sempre valorizámos o importante trabalho político das mulheres.
Nós temos experiência no que se refere à importância da luta das
mulheres no tempo do fascismo.

Nós sabemos como o papel das mulheres dentro do PCP, no tempo do
fascismo, serviu para defender a coesão, a unidade do partido. E este
foi um trabalho importante.

Nós sabemos e sempre valorizámos a importância do trabalho político
das mulheres, que durante do fascismo fizeram greve por melhores
salários num arrojo extraordinário, como aconteceu numa fábrica em
Setúbal em que foram todas presas! Uma delas, não em Setúbal, mas todos
se lembrarão, morreu, lutando por um salário justo e por uma jornada de
trabalho digna!

Nós valorizámos a importância do trabalho político das mulheres,
mesmo depois do 25 de Abril! É a Maria Velho da Costa que diz: «Elas
fizeram greve de braços caídos! Elas gritaram em casa para ir ao
sindicato e à junta! Elas disseram à vizinha que era fascista! Elas
encheram as ruas de cravos!».

Nós valorizamos o papel das mulheres que, efectivamente, nos tempos
terríveis das políticas de direita, continuam a lutar na vida sindical
para que se mude, para bem do povo, para bem das mulheres, mas também
para bem de muitos homens!

Não é preciso, no nosso partido, qualquer exame de aptidão —
sossegue a Sr.ª Deputada que disse aqui isto hoje, não sei se no seu
partido é assim —, a única exigência que se faz, que é natural, é a
capacidade de luta, de entrega, é perfilhar ideias revolucionários, é
querer a ruptura com políticas de direita!

Nós sabemos do extraordinário esforço das mulheres que, depois do
puxa que puxa, do larga que larga da fábrica, que António Gedeão tão
bem relata, ainda têm tempo, apesar de tudo, para a vida política e
ainda se entregam de corpo e alma na luta pelo futuro, na luta pelo
progresso!

Daqui saúdo as mulheres portuguesas que, persistindo tenazmente na
aquisição dos conhecimentos, nos trazem resultados espectaculares nos
cursos do ensino superior, mas também no ensino secundário, e que as
estatísticas bem demonstram.

Mas daqui saúdo também as mulheres portuguesas vítimas do abandono
escolar (30,1%), dos baixos salários e da discriminação salarial
relativamente aos homens, nomeadamente na indústria e serviços!

Daqui saúdo as mulheres portuguesas desempregadas, que engrossam em 56% a taxa de desemprego!

Daqui saúdo as mulheres privadas do mais elementar direito do ser humano, o direito à liberdade de decidir!

Este não é apenas um debate sobre o poder, é um debate sobre as
medidas reclamadas pelo artigo 109.º da Constituição, que não se resume
às quotas, e não pode ser sequer visto serem inconstitucionais — basta
ler o Prof. Jorge Miranda —, porque há medidas, que constam de uma
proposta de resolução nossa, que são as tais…

Como eu dizia, há medidas que fundam a democracia social, económica
e cultural e que o PS não quis discutir aqui, hoje, porque há outro
modelo, o da incrementação progressiva.

O sexo, Sr. Presidente e Srs. Deputados, não é nenhuma ideologia, e
as ideologias continuam vivas, permitindo a arrumação de Eva com Adão,
ele também expulso do paraíso.

Por outras palavras, na proclamação da Marcha Mundial das Mulheres
contra a pobreza e a violência, a Marcha identifica o patriarcado como
sistema de opção das mulheres e o capitalismo como sistema de
exploração de uma imensa maioria de mulheres e de homens por uma
minoria.

Porque as mulheres há muito conquistaram o reconhecimento de que
são seres humanos, é justa a sua recusa de retorno à natureza. É este
também um dos sentidos do perene verso de Aragon, que exprime a
solidariedade entre homens e mulheres em luta: «A mulher é o futuro do
homem»!

 

 

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