Com um programa próprio que agora se divulga, o PCP inicia aqui, com esta Sessão Cultural, as Comemorações do Centenário do nascimento de José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, sob o lema “Escritor Universal, intelectual de Abril, militante comunista”.
Queria, em primeiro lugar, expressar a nossa gratidão aos cantores, actores e músicos, a todos os artistas e técnicos que através da sua arte trouxeram até nós fragmentos da obra de José Saramago e nos presentearam com o aprazível momento cultural a que acabámos de assistir.
Ao assinalar o centenário de José Saramago, o PCP pretende contribuir para a divulgação e para o debate em torno da obra literária de um dos maiores escritores da língua portuguesa e um dos mais destacados intelectuais do Portugal de Abril, bem como contribuir para dar a conhecer o seu papel na luta contra o fascismo, em defesa de Abril e o militante comunista que foi até ao fim da sua vida.
Sim, de hoje até Dezembro de 2022, celebraremos o escritor de uma vasta e singular obra de valor universal, a sua inteligência criadora, esse inventor de um inovador ritmo oral na escrita, que não se limitou a narrar para os que liam, mas para participar activamente na narração, desenvolvendo a história a todos aqueles que a fazendo não a escrevem.
Uma escrita e toda uma obra onde está presente o seu penetrante olhar sensível e arguto e profundamente humano sobre os “males do mundo”, que dificilmente se encontra noutros autores contemporâneos com a profundidade de análise de José Saramago.
Celebraremos esse escritor que nasceu em Azinhaga (Golegã) em 16 de Novembro de 1922, de uma família de gente pobre e que cedo vai para Lisboa. Que antes de ser editor, tradutor e jornalista, foi metalúrgico, desenhador e administrativo.
Sim, até ao final do ano que há-de vir, celebraremos o intelectual de Abril que foi Saramago que, muito jovem, iniciou a sua actividade antifascista, participando nas actividades da Resistência à ditadura, tendo sido apoiante e participante activo na candidatura de Norton de Matos e presente em muitas das actividades nos anos seguintes. O intelectual que fez crítica literária na Seara Nova, traduz Tolstoi, Hegel, Baudelaire. Que dirige o Suplemento Cultural do Diário de Lisboa e será Director-adjunto do Diário de Notícias. O intelectual que deu um inestimável contributo para a afirmação da literatura portuguesa no mundo e para o reconhecimento do português como língua de referência importante na cultura mundial. Que percorreu o planeta, levando a outros povos e outras gentes a sua reflexão sobre a situação no mundo. O intelectual e escritor que falando dos seus livros disse um dia: “Creio que nada ou quase nada que fiz depois do 25 de Abril, poderia ter sido feito antes”, palavras que confirmam que a sua obra é também ela, uma conquista de Abril.
Sim, celebraremos o militante comunista que em nenhuma circunstância escondeu ou iludiu essa sua condição de membro do PCP. Condição que com orgulho patenteava. Vimo-lo a afirmar após o anúncio do Prémio Nobel: “Eu hoje com o prémio posso dizer que, para ganhar o prémio, não precisei de deixar de ser comunista”.
Não, nunca escondeu a sua militância comunista e a sua notável e reconhecida obra, expressão de um sensível e humano olhar sobre os problemas do homem e da humanidade, seria outra, temos isso por convicção, sem a visão do mundo que resultava dessa sua condição. Dizemo-lo sem que isso signifique a apologia de uma inexistente estética partidária, mas tão só para afirmar que, sem a visão que brota dessa condição, a massa humana de muitos dos seus livros não se moveria com o mesmo fulgor e não se sentiria em muitos deles o caleidoscópio de situações, condições e sentimentos que o incessante movimento da história transporta impelido pela acção dos homens, essa realidade onde habita o penoso, o trágico, o exaltante, o contraditório, o luminoso e o sombrio e que descreveu com a mestria dos nossos melhores.
Saramago veio ao Partido num tempo em que se aprofundava a crise geral do regime fascista. É já como militante comunista que nos anos sessenta desenvolve uma intensa actividade no quadro das actividades da Oposição Democrática e no quadro da CDE nos períodos das farsas “eleitorais” da ditadura, em 1969 e 73.
Depois do 25 de Abril integra a organização dos escritores do Sector Intelectual de Lisboa e faz parte da Direcção do Sector de Artes e Letras e estará em importantes e diversificadas acções no movimento operário e popular no decorrer do processo revolucionário.
Este é um tempo cheio de intervenção e acção do homem de letras e militante comunista na luta em defesa da Revolução e dos seus valores e conquistas, rasgando com a sua palavra e o seu saber os novos horizontes da elevação cívica e cultural que a Revolução de Abril proporcionava e empenhado na defesa do projecto político do seu Partido.
A par da continuação de uma intensa actividade de criação literária, travou importantes combates políticos e eleitorais, integrou a lista da Coligação “Por Lisboa”, sendo eleito Presidente da Assembleia Municipal e como candidato da CDU, indicado pelo PCP participou em todas as eleições para o Parlamento Europeu, entre 1987 e 2009.
Saramago, pelo que de novo a sua escrita transporta, pelos conteúdos que habilmente criticam e questionam “o estado do mundo” e as grandes questões da humanidade, não é autor de fácil abordagem, como nos dizem aqueles ensaístas de renome, nacionais e estrangeiros, que meteram ombros ao desbravar dos códigos da sua escrita. Assim será, porque a sua obra está ligada ao mais fundo pulsar do que em nós é humano e complexo como tudo o que é inovador e raro.
É um contar de outra maneira da história, impregnada de profundo humanismo que está presente em Saramago e que se reconhece nesse romance épico, que é o Levantado do Chão.
Esse épico que diz as lutas, os sofrimentos, a fome, a coragem do povo do Alentejo perante a usura e a violência assassina dos latifundiários e do fascismo, que se ergueu a pulso desse chão de planuras e de sonhos, de sol e de lonjura, a mais bela conquista de Abril – a Reforma Agrária.
Em Levantado do Chão, Saramago, para além de denunciar o lado mais sinistro do fascismo, transporta para a literatura, num tempo de lutas pela dignidade dos trabalhadores rurais, uma escrita a um tempo belíssima e envolvente, combativa, assente na realidade e inquiridora.
Realidade hoje em acelerada mutação, a solicitar não apenas novos questionamentos, mas, essencialmente, respostas colectivas nossas e desses novos homens e mulheres levantados de um chão de miséria e humilhação que, atravessando fronteiras longínquas, povoam em rotação as Odemiras do presente e as largas e crescentes parcelas da terra alentejana que o Alqueva rega. Essas terras agora transformadas num «activo financeiro», concentradas na mão de grupos da alta finança internacional – os novos senhores de muita terra -, que antes era seara e hoje olival e amendoal intensivos, onde a exploração capitalista agrária, amiúde se articula com redes mafiosas e de tráfico humano e trazem de volta sucedâneos de Praças de Jorna.
A obra romanesca de José Saramago, a que podemos considerar dentro de um universo temático que inventaria e reflecte a singularidade histórica e cultural das gentes que desde o século XII, habitam este rectângulo ibérico, a qual na diversidade temporal que a obra de Saramago abarca, inclui títulos tão diversos como Manual de Pintura e Caligrafia, Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra e História do Cerco de Lisboa e nesse perturbador romance que é A Caverna, no qual o pensamento progressista, a justiça e o social se expõem com clara evidência e mais tarde num dos seus brilhantes títulos : A Viagem do Elefante.
É em A Caverna que nos confronta com os problemas reais de mundo e tão actuais, da chamada revolução tecnológica digital e da robótica e do anunciado «fim do trabalho». Um livro sobre “os que já não são necessários ao mundo”, dos que estão sujeitos às opções dos exclusivos interesses do capitalismo dominante, onde o próprio direito ao trabalho se anula. Um libelo contra a segregação e a transformação do homem numa espécie de robot, secundário e descartável, ser transformado em “prisioneiro do sistema”. Desse sistema que hoje coloca o inumano algoritmo, esse novo prodígio da inteligência artificial que o capital concebe e programa em seu exclusivo proveito, a comandar e dirigir os novos proletários das plataformas digitais, aguardando algures, à espera de serem escolhidos para trabalhar umas parcas horas e despidos de direitos.
Desse sistema que alimenta um sinistro projecto de atomização do homem, que o quer ver enclausurado na realidade virtual, separado do outro, matando espaços de encontro, de sociabilidade e do trabalho.
Esse homem que em Saramago tem a coragem de dizer não e de se determinar a sair da Caverna que o sistema lhe reserva.
A sua obra, a que reflecte o País que somos de forma inquiridora, que o analisa de modo crítico e dialéctico, pela qual perpassam os temores e as qualidades do humano que nos habita, mas também as safadezas, a mesquinhez, a miséria, a ganância, o obscurantismo, a dignidade, a solidariedade, os afectos, a abjecção, quer essa análise se debruce sobre o histórico ou o contemporâneo. De facto, nada do que é humano é estranho ao processo criativo de José Saramago.
Os textos de Saramago, sobretudo esse claro gesto de afirmação das suas origens, que transpôs para As Pequenas Memórias, na sua singularidade configuram os métodos de abordagem que o marxismo permitiu, numa perspectiva lúcida sobre uma certa realidade portuguesa, que o leva a afirmar, no seu Último Caderno de Lanzarote o que Marx e Engels escreveram em A Sagrada Família e que eram para si as mais iluminadoras e para sempre novas de todo o materialismo histórico: «Se o homem é formado pelas circunstâncias, então será preciso formar as circunstâncias humanamente».
“Está aqui tudo”, chegou-o a afirmar Saramago, questionado e a propósito de um debate sobre o tema “Ser comunista hoje”. Só um “estado de espírito comunista” pode ter presentes, como regra de pensamento e de conduta estas palavras. Em todas as circunstâncias.
É essa regra que não envelhece que contínua a enformar e dar sentido aos combates que, hoje, os seus camaradas organizados no seu Partido continuam a travar, visando transformar a realidade humanamente.
É essa tarefa que temos em mãos quando lutando por profundas transformações das estruturas económicas e sociais, pela nossa libertação colectiva da submissão aos interesses do grande capital e aos seus instrumentos de domínio ideológico, cultural e político.
Quando lutamos pela realização da sociedade nova, liberta da exploração do homem pelo homem – o socialismo - onde cabem também as múltiplas causas que dão sentido aos combates de agora.
As causas que resultam da defesa dos valores básicos elementares como a igualdade de direitos, a generosidade, a fraternidade, a justiça social e a solidariedade humana, que nos apela à obrigação de permanecer sempre atentos a todas as grandes desigualdades, injustiças e discriminações sociais, e lutar e organizar a luta para lhes pôr termo.
Essa luta necessária para mudar as circunstâncias, mudar a realidade de um mundo injusto e desigual para nos tornarmos mais humanos.
A arte narrativa de Saramago transporta esse prodígio de semear ideias e de lhes dar corpo e forma, em processos narrativos que percorrem um discurso claríssimo de introspecção e lucidez, misturando-o com os referentes históricos, trágicos e visionários da sua concepção humanista do mundo.
Em o Manual de Pintura e Caligrafia inaugura a reflexão de Saramago sobre o nosso tempo.
Em Memorial do Convento, José Saramago trará de novo para a ribalta ficcional protagonistas populares Baltazar e Blimunda que trazem para o centro do romance “a voz do povo”, os seus sentimentos e anseios, em que o Povo, apesar dos medos aos poderes régios e à Inquisição, consegue ter voz própria e afirmativa.
Ou ainda descrevendo, céptico, a usura e a abjecção que o humano também transporta em obras como Ensaio sobre a Cegueira, ou Ensaio sobre a Lucidez. Com estas obras Saramago atinge, pela sua prodigiosa arte narrativa, pelo humanismo da sua visão do mundo, o patamar mais largo da literatura universal, como a crítica literária contemporânea o realça e nos mostra.
Sabemos quanto vasta é a obra de José Saramago e quanto fica por dizer.
Foi este homem, cujo centenário celebramos, que aquando do banquete realizado em Estocolmo, comemorativo do Nobel da Literatura, não se coibiu de afirmar: «[…] A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante. Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia».
Esse poder que tem contado com a conivência daqueles que no ensaio de José Saramago “A verdade e a ilusão democrática” e tão válido na realidade do mundo que aí está: «Efectivamente, dizer hoje “governo socialista”, ou “social-democrata”, ou “democrata-cristão”, ou “conservador”, ou “liberal” e chamar-lhe “poder”, é como uma operação de cosmética, é pretender nomear algo que não se encontra onde se nos quer fazer crer, mas sim em outro e inalcançável lugar - o do poder económico -, esses cujos contornos podemos perceber em filigrana por detrás das tramas e das malhas institucionais».
Uma realidade que neste retângulo mais ocidental da jangada se tornou norma décadas a fio, expressa nesse rotativismo de pura alternância sem alternativa entre PS e PSD com o CDS à ilharga, ora com um, ora com outro, numa governação onde apenas o secundário mudava para manter o essencial intocável, servindo os senhores do dinheiro e do mando.
É para assegurar esse mesmo essencial que querem eternizar para fazer prevalecer o domínio e os interesses do grande capital sobre a vida do País e do povo, que o poder político da governação de hoje que se diz socialista e de esquerda, usando e abusando da mesma cosmética rotuladora, auto-intitulando-se a si e à sua política do que não são, resistem a qualquer mudança que rompa com tais interesses.
Uma evidência que nos diz quanto trabalho tem este Partido em mãos para afirmar e dar urgência à construção da alternativa que não seja expressão dos que vivem da agiotagem e da exploração, mas expressão dos interesses dos trabalhadores, do povo e País.
Alternativa que reclama, para lhe dar vida, a presença e o fortalecimento deste Partido que é o de Saramago, é nosso e de todos os trabalhadores.
Garanti-lo continua a ser a tarefa central dos dias de hoje!
Saramago foi um escritor que veio do povo trabalhador, a quem amou e foi fiel.
Um homem comprometido com os explorados, injustiçados e humilhados da terra, que assumiu valores éticos e um ideal político do qual não abdicou até ao fim da sua vida!
Termino, dizendo o mesmo que dissemos quando de Saramago nos despedimos pela última vez.
Podia ter sido só um escritor maior da literatura portuguesa. Foi mais do que isso. Foi um homem que acreditou nos homens, mesmo quando os questionava, que deu expressão concreta à afirmação de Bento de Jesus Caraça da aquisição da cultura como um factor de conquista da liberdade.
José Saramago sabia que a sua obra e a sua luta seriam sempre algo inacabado. Mas que valia a pena. E valeu, por isso o celebramos e celebraremos!