Nestes últimos dias e em jeito de balanço de mais um ano que está a chegar ao fim, o Primeiro-ministro José Sócrates veio dizer-nos que 2006 vai terminar melhor do que começou.
Não disse José Sócrates para quem é que 2006 foi melhor, mas seguramente não foi para quem vive dos rendimentos do trabalho ou de uma reforma, tal como não foi melhor para a generalidade da economia portuguesa, para os principais sectores produtivos nacionais, para a agricultura, para as pescas e para a indústria, para a generalidade das micro, pequenas e médias empresas.
Ainda hoje, aqui em Moreira de Cónegos, mais uma vez tivemos oportunidade de o constatar na visita à centenária CUCA e nos contactos que tivemos com trabalhadores que nos continuam a dar conta das dificuldades existentes neste concelho, com as empresas encerradas e os crescentes problemas que outras enfrentam.
Se José Sócrates estava a pensar no grande capital económico e financeiro quando disse, no Jantar de Natal dos deputados do PS, que o ano de 2006 termina melhor do que começou, acertou porque é verdade. Se estava a pensar nos grandes senhores do dinheiro e nos grandes interesses especulativos, sem dúvida que 2006 terminou ainda melhor do que começou. Não foi apenas mais um ano de bons lucros, mas mais um “ano dourado” de fabulosos e grandes lucros, sempre em crescendo, para um punhado de privilegiados.
Mais um óptimo ano para o capital especulativo e para os grandes negócios nos sectores de mercado protegido que são hoje monopólio de uma pequena minoria que concentra e centraliza nas suas mãos cada vez mais riqueza à custa da generalidade dos portugueses e da economia nacional.
Dizia José Sócrates, ao mesmo tempo que elogiava o seu Ministro do Emprego e da Solidariedade pela sua política de suposta preocupação social, que nesta época natalícia se tornou numa espécie de enfeite governamental para iludir a brutal ofensiva que vem desenvolvendo contra os trabalhadores e os seus direitos, que o país vai no bom caminho, na “direcção certa”.
E a prová-lo, dizia, aí estão as boas expectativas de crescimento do Banco de Portugal para o presente ano e o indicador do clima económico do Instituto Nacional de Estatística que anuncia que a confiança dos portugueses tem subido e vai continuar alta.
Ideias que repetiu na sua mensagem de Natal, juntamente com as habituais preocupações da época natalícia, com a pobreza, as desigualdades sociais e o declarado apego aos princípios da solidariedade social.
Este enorme esforço de propaganda de José Sócrates e do governo do PS para nos convencer que o país vai bem, não tem, porém, correspondência na realidade, como não têm conformidade com a realidade as suas preocupações com o combate às desigualdades sociais e à pobreza.
É por isso que o caminho que Portugal segue não é o do progresso para o seu povo, mas o da regressão, como está bem claro no Relatório das Nações Unidas de 2006 sobra o índice de desenvolvimento humano, com Portugal a recuar para níveis de desenvolvimento de 1999.
Não admira, por isso, que se continuem a aprofundar as desigualdades sociais e as situações de pobreza e de exclusão social. Situação que se agudiza com os elevados níveis de desemprego, com a crescente precarização das relações de trabalho que coloca Portugal no topo dos países da União Europeia com maiores taxas de trabalho precário e em contínuo agravamento que neste último ano significou um aumento de 14% dos trabalhadores contratados a prazo. Mas também com o aprofundamento das assimetrias regionais, agravadas com o processo de desindustrialização dos últimos anos e com o declínio da agricultura familiar.
A acrescentar a esta realidade Portugal apresenta o mais cavado fosso de desigualdades sociais, como se pode verificar pela análise do critério dos 20% mais ricos e os 20% mais pobres. É no nosso país que o fosso social entre estas duas realidades sociais é maior e em contínuo crescimento nos últimos anos. Não é por acaso que tendo em conta apenas os primeiros anos deste século, as desigualdades de rendimento entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres tenham aumentado, de 6,4% vezes para 7,2 vezes, confirmando o papel da política de direita no agravamento das desigualdades e na promoção da concentração da riqueza.
Realidade confirmada de forma bem evidente também pela distribuição do rendimento nacional entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres. Em Portugal os 10% mais ricos dispõem de 29,8% do rendimento nacional, enquanto que os outros, os 10% mais pobres, apenas dispõem de 2% do rendimento nacional.
Às desigualdades na distribuição dos rendimentos para quem vive do seu trabalho ou da sua pensão soma-se a crescente fragilização de importantes instrumentos de redistribuição do rendimento nacional, abrindo cada vez mais lacunas no sistema público de segurança social, na degradação dos sistemas públicos que deviam garantir os direitos fundamentais, como direito à saúde e à educação.
Com o governo do PS de José Sócrates, novos e mais graves passos foram dados neste ano de 2006 e novos se preparam para 2007 contra as funções sociais do Estado e os serviços públicos.
O ano de 2006 ficará marcado não por novos avanços no plano do sistema de protecção social, mas por novas e mais graves mutilações nos direitos dos trabalhadores e do povo com a aprovação da sua nova Lei de Bases da Segurança Social.
Nova Lei que se traduzirá num violento ataque às reformas e às pensões, ao subsídio de desemprego e à generalidade das prestações sociais do sistema de segurança social.
Nova Lei que corta nas reformas para forçar ao aumento da idade da reforma ou o aumento das contribuições dos trabalhadores.
E, como se não bastasse, o governo decide agravar a carga fiscal aos reformados, já não apenas para os mais ricos como diziam o ano passado, mas a todos aqueles que tiverem uma reforma acima dos 485 euros.
Neste Natal, José Sócrates veio mais uma vez acenar com o complemento de reforma para os idosos, como a grande medida que atesta a suas preocupações sociais e sua vontade de combater a pobreza. Medida que nos dois anos que quase leva de governo se restringe a abranger 18 mil idosos dos potenciais um milhão e cem mil reformados com pensões mínimas.
Na realidade, ao contrário das expectativas criadas com o anunciado complemento solidário de 300 euros para os idosos com mais de 65 anos e sem outros rendimentos, o que temos visto é a criação de um mar de dificuldades na sua concretização com a imposição para o calculo do complemento do idoso também do rendimento dos filhos, independentemente do idoso viver ou não autonomamente e independente dos seus familiares.
Pode o governo dizer que a sua política é de preocupação de social e de combate à pobreza, mas o que é inquestionável é que as medidas que tomou vão todas no sentido contrário. Degradação do valor das reformas e pensões a prazo, aumento dos impostos no imediato. Diluição no tempo das medidas de combate à pobreza e restrição no seu acesso.
Na saúde a situação não é melhor. O ano de 2006 representa uma alteração qualitativa na ofensiva contra o Serviço Nacional de Saúde. Na realidade estamos perante uma das mais persistentes ofensivas contra os serviços públicos de saúde dos últimos anos e que vai ter um forte impacto no acesso das populações aos serviços de saúde.
Medidas como as contidas no Orçamento para o próximo ano de aumento generalizado das taxas moderadoras e introdução de novas nos internamentos e cirurgias.
Medidas como as que se anunciam, de encerramento de hospitais, de Serviços de Atendimento Permanente, de maternidades e de centros de saúde, às quais se soma a recente proposta de reestruturação das urgências hospitalares, sem que se tenha criado uma alternativa credível e que deixa mais de um milhão de portugueses a mais de 60 minutos de uma urgência polivalente.
Medidas para forçar o encaminhamento dos doentes para as clínicas privadas, tal como acontece quando, apesar dos pomposos programas anunciados, se mantem uma escandalosa lista de espera em cirurgia de 230 000 doentes.
Mas medidas também com o claro propósito de colocar os recursos públicos e o direito à saúde dos portugueses nas mãos do negócio privado e do lucro, como são as parcerias público/privadas para a construção de novos hospitais ou desenvolvimento das Unidades de Saúde Familiar privadas na área dos cuidados de saúde primários e a generalização do princípio, também na saúde, do utilizador/pagador.
A redução das comparticipações nos medicamentos é outra medida profundamente lesiva do direito à saúde dos sectores da população que se encontram mais empobrecidos e em dificuldades.
O conjunto de medidas anunciadas para o sistema de saúde, mostram que estamos perante toda uma operação de privatização dos serviços de saúde em larga escala e de transferência para populações dos custos da saúde.
Com os mais baixos salários dos países da zona Euro, com o mais baixo salário mínimo, com as mais baixas reformas, as elevadas taxas de abandono e insucesso escolar e os baixos níveis comparativos de protecção social, a pobreza em Portugal alarga-se a novas camadas da população, em resultado, entre outros, do crescimento do desemprego de longa duração, do trabalho precário e sem direitos, da exploração desenfreada da mão-de-obra e da desvalorização dos rendimentos do trabalho e das pensões e que são as causas maiores do crescimento da pobreza e da exclusão.
Pobreza e exclusão que parecem ser agora a grande preocupação daqueles que no passado e no presente têm defendido as políticas que produzem essa pobreza e essa exclusão – as políticas de direita assentes na redução do papel do Estado na concretização das suas funções sociais, na dinamização do investimento e na subalternização das políticas de emprego a que se juntam as políticas de privatização, liberalização e crescente desregulamentação da economia e das relações e condições de trabalho.
Políticas que o governo do PS quer aprofundar com a abertura de mais uma frente no seu programa de contra-reformas, visando agora o mercado de trabalho e a liquidação dos direitos laborais dos trabalhadores com o anúncio do estudo da introdução da “flexigurança” nas relações de trabalho.
Querem, com tal solução e em clara articulação com as pretensões do grande capital nacional e europeu, a liberalização dos despedimentos e a flexibilização dos horários e da organização do trabalho, a troco, dizem, de uma melhor protecção social, nomeadamente de um melhor subsídio de desemprego.
Há pouco o governo acabou de alterar para pior a lei actual do subsídio desemprego, particularmente retirando direitos aos jovens, mas agora vai estudar e não tardará a garantir mais e melhor protecção social, se os trabalhadores aceitarem ser despedidos e trabalharem sem horários.
Na sua acção governativa, o governo do PS, até agora, passou o seu tempo a cortar nos direitos de quem trabalha, mas agora está de braços abertos para encontrar formas de compensar os trabalhadores com o melhoramento do sistema de protecção social desde que estes se disponibilizem a aceitar a total precarização do mercado de trabalho.
Até aqui o Estado e a Segurança Social não tinham dinheiro para garantir a sustentabilidade futura do sistema de protecção social e das reformas, mas agora tudo se pode resolver. O patronato despede e a segurança social paga.
São os mesmos que fazem o mal que vêm depois lamentar o aprofundamento das desigualdades e da pobreza. Sacralizam o mercado, que deve funcionar em roda livre, para os tubarões se saciarem sem contemplações e periodicamente, em particular no Natal, vêm mostrar a sua pública preocupação pelas situações de pobreza.
Do Presidente da República, do seu séquito de empresários do “Compromisso Portugal” até ao Governo, aí os temos a anunciar o fim pobreza se ela for uma preocupação de toda a sociedade e se os pobres, claro está, estiverem dispostos a assimilar as doutrinas do “capitalismo inclusivo”, a nova “coqueluche” do capitalismo neoliberal de combate à pobreza e à exclusão.
A hipocrisia e o faz de conta do combate às desigualdades e à pobreza é tal que são os mesmos, os grandes banqueiros e os grandes empresários do “Compromisso Portugal”, os João Rendeiros, os Jardins Gonçalves, os Melos, mais os Carrapatosos e outros que tais, os mesmos que há dois ou três meses defendiam a liberalização dos despedimentos, a privatização da segurança social, a redução das funções sociais do Estado, na saúde e na educação e a diminuição dos impostos para os ricos que agora vestem a roupagem da “nova filantropia” do capitalismo inclusivo e, ao chamamento do Presidente da República, apresentam-se com a sua Associação de Empresários pela Inclusão Social para, finalmente, pôr fim à pobreza e à exclusão. Como? Dedicando eles próprios umas horas de aulas extracurriculares de empreendedorismo a todos os potenciais excluídos, alunos do 9º ano escolar.
Sobre as verdadeiras causas da pobreza e das verdadeiras soluções para lhe por fim nem uma palavra. Ficam-se pelas lições de filosofia do empreendedorismo, essa espécie de curso intensivo de ideologia liberal que vai ensinar todos os pobres e excluídos a fugir à exclusão, tornando-se empresários.
Mas o faz de conta do combate à pobreza e às desigualdades sociais está também bem patente nos programas do Governo, nomeadamente nos Planos Nacionais para a Inclusão que, desde 2001, vêm sendo postos em prática pelos governos destes anos e que não só não vão ao encontro dos problemas e ao ataque às causas da pobreza das populações, como a sua execução, naquilo que é positivo, fica sempre muito aquém dos objectivos proclamados.
Planos que são meros paliativos no combate à pobreza. É por isso que ela permanece e se agrava na sociedade portuguesa, como é o caso da pobreza infantil, que nestes últimos anos tornou a sofrer um novo agravamento.
Portugal apresenta na faixa etária das crianças e jovens com menos de 18 anos uma taxa de pobreza superior à média dos 25 países da OCDE, com mais de 320 mil crianças e jovens nesta situação e que corresponde a 15,6% da população nestas idades, enquanto na Dinamarca e Finlândia essas percentagens não excedem, respectivamente, 2,4% e 3,4%.
São as crianças e os jovens que continuam a ser o elo mais fraco das situações de pobreza e das políticas que estão na origem da progressiva degradação da situação social e laboral no nosso país e as que apresentam um mais elevado nível de risco, juntamente com os idosos.
Embora as situações de risco tenham causas sociais diversas, uma parte significativa deste agravamento da situação das crianças e jovens é o resultado do aumento do desemprego, dos baixos salários e do ciclo de pobreza e de exclusão social que atingem milhares de famílias, que as impedem de poder assumir as suas responsabilidades na protecção das suas crianças e jovens e de promoverem a sua segurança, educação, saúde e desenvolvimento integral.
Esta preocupante realidade e dimensão dos problemas exige o urgente reforço da intervenção por parte do Estado que não pode continuar a demitir-se das suas responsabilidades na promoção dos direitos das crianças e dos jovens.
Não há soluções que resolvam a contradição das actuais políticas neoliberais de desvalorização do trabalho e dos salários, do aumento do desemprego e da precariedade que produzem e aqueles que as instituições e os Programas ditos de inclusão podem recuperar com a sua acção e intervenção.
Agir sobre as causas da pobreza e na promoção de melhores condições de vida e de trabalho das famílias só é possível com uma nova política que promova outro modelo de desenvolvimento económico e social e ponha travão ao esbulho de lucros fabulosos com a mercantilização dos serviços públicos e das empresas públicas crescentemente privatizadas, que poderiam e deveriam servir para financiar as funções do Estado, os sectores públicos de saúde, segurança social e do ensino.
E, se é necessário garantir mais apoios e lançar novos programas e planos de apoio de combate à pobreza e de apoio às crianças e jovens que ajudem a inverter a actual tendência, não há êxito duradouro nesse combate à diminuição dos factores de risco nas crianças e jovens sem uma política que promova o emprego e o trabalho com direitos, a formação profissional, uma mais justa repartição do rendimento nacional, o direito à habitação e o fortalecimento dos sistemas de segurança social, saúde e ensino, como factores decisivos no combate às injustiças sociais e à pobreza, na promoção da igualdade de direitos e de oportunidades.
Não há solução na inversão da grave situação que se apresenta sem um forte investimento social, de forma a criar estruturas que permitam respostas integradas às crianças e famílias, nomeadamente com uma aposta forte numa Rede Pública de apoio à primeira infância e à infância com equipamentos de qualidade e a preços acessíveis para as famílias das camadas trabalhadoras e que seja planeada de acordo com as necessidades de cada região do País.
Tal como também não há solução sem garantir a generalização da Rede Pública pré-escolar, que inclua a ocupação dos tempos livres, a par do desenvolvimento de uma efectiva acção social escolar capaz de garantir às crianças do ensino obrigatório, designadamente de um suplemento alimentar completo, transportes escolares e quando necessário assistência médica escolar.
Não há solução para a inversão desta situação sem forte investimento público com mais iniciativas e com mais meios de combate ao abandono e insucesso escolar e o alargamento do modelo de recrutamento e selecção de jovens para o Ensino Profissional para evitar situações de exclusão social dos jovens.
Medidas que efectivamente valorizem também os instrumentos específicos de intervenção junto de grupos sociais de risco ou em situações de pobreza, dotando-os de meios financeiros e técnicos que permitam uma intervenção mais eficaz no diagnóstico precoce de situações de pobreza e adequadas soluções preventivas.
O que não pode persistir é o prosseguimento do caminho, há muito iniciado, de crescente desresponsabilização do Estado para o remeterem a uma função assistencialista e caritativa dirigida apenas à pobreza mais extrema.