Intervenção

Intervenção do Deputado<br />Interpelação ao Governo sobre a política

Senhor Presidente, Senhores Deputados, Esta é uma interpelação ao espelho. Se há domínio onde o PS e PSD confluem com intensidade é precisamente o domínio da política externa. Aí os vemos a baterem palmas juntos ao novo conceito estratégico da NATO, aos tratados de Maastricht e de Amesterdão, às novas funções da UEO, aos projectos de federalização da Europa em variados aspectos, às intervenções militares dos Estados Unidos e da NATO no Iraque, Bósnia e Kosovo. O PSD do dr. Barroso limita-se a vir aqui dirigir-se ao espelho e perguntar: "Espelho meu, espelho meu, há política mais bela e atlantista do que a minha?" O espelho, que, como é sabido da história, gosta de armar zaragata, responde de imediato: "Há, há, a do dr. Gama e a daquele senhor que já não se vê há uns anos por andar por aí a juntar pontos no Qualiflyer". Uma tal resposta tinha de provocar o tradicional agastamento do dr. Barroso, que aqui argumentou orgulhoso que era no seu delicado pesinho que melhor assentava o "Sebago" atlantista. Este é o folclore da questão, que tem a vantagem de dar direito a discursos de defesa da honra e interpelações à Mesa e a fotos suadas e esbracejantes. Um fartote daquilo que, por mera graça, chamam notícias. Para melhor explorar o espectáculo, o PSD resolveu centrar esta algazarra na questão do relacionamento com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e particularmente com Angola. Esta interpelação não passa assim de uma forma de prolongar nesta Assembleia e já fora de tempo um conjunto de polémicas partidárias cujo objectivo não é, nem quer ser, o de fortalecer e dar serenidade e eficiência a esse relacionamento entre Portugal e os PALOP’s, nem o de defender o interesse nacional, mas, pelo contrário, o de provocar tensões internas e externas por motivos variados, mas que redundam objectivamente em dificuldades nesse relacionamento. As acusações por duas ou três autoridades de Angola contra os drs. Mário Soares e João Soares já ocorreram há meses e continuam por provar. Os ofendidos - ou pelo menos um deles – decidiu apresentar queixa nos tribunais competentes. E esta Assembleia já aprovou sobre a matéria os votos que considerou adequados no tratamento da questão, na qual se cruzavam dois aspectos diferentes: o exercício do direito de expressar opiniões próprias, e as acusações de natureza pessoal e ofensiva. O PSD traz aqui este dossier para quê? Para o reabrir? Para escarafunchar a ferida? O relacionamento de Portugal com os PALOP’s é para o nosso país um domínio estratégico essencial da nossa política externa. As nossas relações externas têm sido excessivamente afuniladas. No domínio económico, por exemplo, são muitas as vozes que alertam para a excessiva dependência do nosso comércio externo com a Espanha. Não obviamente por cultivo de sentimentos anti-espanhóis que são desajustados e ridículos. Mas pela razão evidente de que a estratégia de Estado reclama que Portugal não fique dependente de um Estado que é várias vezes maior que Portugal e que tem o monopólio da nossa fronteira terrestre. Os países de língua portuguesa, de África, mas também o Brasil, além de Timor com ou sem língua oficial portuguesa, são uma oportunidade forte para a diversificação das nossas relações externas. O país, por responsabilidade da Ditadura de Salazar e Caetano, prolongou a guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné para além de todos os limites. Exauriu as capacidades nacionais nessa guerra injusta e opressora. A descolonização foi inevitavelmente contenciosa. Hoje esses países pagam uma pesada factura. Portugal deve ter com eles relações sólidas baseadas nos princípios de direito internacional que regem as relações de Estado a Estado. Alguns sonham em tornar estas relações como uma espécie de prolongamento do período colonial, um neo-colonialismo de fachada cooperante. Há mesmo quem veja Portugal a prolongar agora a função missionária como ela foi exercida há séculos, então com a religião católica erigida em religião do Estado coloniador, agora com a cartilha do modelo ocidental de organização política como cartilha do Estado neo-colonizador. Só que as relações Estado a Estado não são relações de julgamento partidário nem de direcção política dos assuntos internos. E não sejamos ingénuos, nós, onde outras potências, deste lado e do outro do Atlântico, espreitam com ansiedade os diversos conflitos para ocuparem espaço, influência e domínio político e económico. Somos falantes da mesma língua, somos povos com raízes históricas que se cruzam, conhecemo-nos bem, mas não somos insubstituíveis. Não somos uma grande potência de carteira bem recheada. Temos de saber defender os nossos interesses, pelo valor do nosso empenhamento, e pelo respeito com que devemos lidar com esses Estados. Aqui, o PS está a falhar. O PS encontrou na questão angolana um terreno de confronto interno. No PS coabitam fidelidades contraditórias, que podem ser geridas por algum tempo em aparente acalmia. Mas que retornam à superfície, quando isso é útil, por razões de estratégia internacional, ou mais vulgarmente, por razões de debate interno dentro do PS. É por isso que o PS mostra não ter as condições de estabilidade e coerência capazes de assegurarem um relacionamento adequado no plano do direito internacional com o Estado de Angola. Não está em causa o livre direito de expressão, individual ou colectivo, em todos os domínios. Nem está em causa que pelos mecanismos adequados da Carta das Nações Unidas e de outros documentos de direitos internacional subscritos por Portugal e por Angola, o país não possa referir-se às questões angolanas na exacta medida em que elas sejam da competência aceite dessas organizações. Seja qual for o domínio: político, militar, económico, ou de direitos humanos. O que está em causa no PS é a existência de duas políticas que se vão exprimindo contraditoriamente nos órgãos de soberania, ao sabor de pressões da conjuntura. Não é o PS no seu debate interno ou nas suas diferenças de opinião, é a expressão no Estado dessas contradições que mostra que o PS não consegue articular uma posição de Estado coerente com a defesa dos interesses nacionais na cooperação e relacionamento com Angola. O que para o PS é pelos vistos impossível, é possível para a comunidade internacional, representada ao seu mais alto nível executivo, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. As posições que como Partido defendemos como política de Estado para a questão angolana são as posições que decorrem dos sucessivos Relatórios e Resoluções da ONU, novamente reafirmados na semana passada, no dia 18 de Abril, pela Resolução 1295 (2000) adoptada pelo Conselho de Segurança. Aí se diz mais uma vez que a " causa primária da presente crise em Angola é a recusa da Unita, sob a liderança do sr. Jonas Savimbi, em cumprir as suas obrigações decorrentes dos "Acordos de Paz" de 1992, do Acordo de Lusaka de 1994 e das pertinentes Resoluções do Conselho de Segurança. Aí se reitera mais uma vez a intimação à UNITA para que cumpra imediatamente e sem condições as suas obrigações, especialmente a desmilitarização das suas forças e a completa cooperação na imediata e incondicional extensão da Administração do Estado a todo o território de Angola". Pode ser-se mais claro? Estas apreciações são partilhadas na sua total extensão pela Organização da Unidade Africana (OUA), pela sua Comunidade de Desenvolvimento dos Países do Sul de África (SADC), pela reunião dos países Não Alinhados realizadas em Washington em 23 de Setembro de 1999 e em Cartagena em 7 de Abril passado. Não esteve nessas organizações só apoio às apreciações, mas também a todas e cada uma das medidas que o Conselho de Segurança tomou, quanto à proibição de comércio de armas com a UNITA, de fornecimentos de petróleo à Unita, de controlo de tráfico de diamantes considerado pela ONU como a principal fonte de financiamento da UNITA, de controlo de fluxos financeiros, de limitação das representações externas da Unita incluindo suspensão e cancelamento de vistos. A Resolução nº 1295 (2000) tem por base o Relatório do Painel de Peritos sobre as Violações das Sanções do Conselho de Segurança contra a Unita. Esse relatório é um fundamentado estudo sobre a rede de cumplicidades que vem permitindo à UNITA manter a sua máquina de guerra e através dela persistir no incumprimento das suas obrigações. Há uma longa lista de países, incluindo Portugal, que são referenciados nesse relatório. Basta ver o à-vontade e descaramento com que os representantes da UNITA actuam em Portugal para que ninguém, aqui ou no Governo, possa fazer de contas que ignora que em Portugal não são feitas cumprir as resoluções do Conselho de Segurança sobre representações e viagens de representantes da UNITA. Em muitos países, o relatório citado foi imediatamente analisado e tomadas as medidas adequadas, mesmo sem esperar pela Resolução do Conselho de Segurança. Foram designadamente nomeadas comissões governamentais com esse objectivo. A Bélgica, expressamente visada no capítulo referente ao tráfico de diamantes, fez de imediato deslocar a Angola um alto representante do Estado, e tomar uma série de medidas concretas, que a Resolução da ONU de 18 de Abril assinala e louva. E Portugal? A Resolução do Conselho de Segurança estimula os Estados à adopção de medidas concretas, quanto a tráfego aéreo, proibição dos fornecimentos de armas, reforço dos mecanismos policiais de controlo dos tráficos ilícitos. Em geral, para além de exortar os Estados ao cumprimento e não violação das suas resoluções, o Conselho de Segurança institui um mecanismo de monitorização, composto por uma equipa de cinco peritos, para procederem à verificação pelo período de seis meses, com apresentação de um relatório em 18 de Outubro de 2000, considerando desde já a possibilidade de nessa data adoptar novas medidas contra a UNITA. E Portugal? O PCP pediu em meados de Março a presença do Governo na Comissão de Negócios Estrangeiros para análise do Relatório (e agora da Resolução) e informação das medidas adoptadas. Esse é o caminho a que Portugal está vinculado. Por exemplo. No ponto 135 do Relatório há uma referência concreta a Portugal quanto à existência de um escritório da UNITA em Lisboa. Que fez o Governo quanto a isso? No ponto 147, descrevem-se os estratagemas usados pela UNITA para manter a sua representação em Portugal. Que fez o Governo quanto a isso? Da nossa parte, não temos hesitações no apoio às Resoluções da ONU. Não confundimos as responsabilidades da Guerra com as questões da política interna de Angola, que aos angolanos dizem respeito. Salazar achava que a ONU estava errada e que ele, colonialista e ditador, é que era o iluminado da verdade. Achava que tinha de converter os angolanos à portugalidade e aos valores cristãos e ocidentais. Eram assim os tempos da ditadura. Vamos a ver, se de vez, enterramos os tiques colonialistas e todos os seus resquícios, que ainda povoam muitas mentes. A cooperação com os PALOP’s pode e deve ser reforçada em múltiplios domínios, e Portugal tem de ser capaz de ir muito mais longe do que foi até hoje, particularmente no apoio ao desenvolvimento, na educação, nos programas sociais, na promoção da língua comum. Mas, de parte a parte, a cooperação faz-se na base do acordo, sem preconceitos, sem pretensões hegemonistas, sem tiques retaliatórios. A cooperação desenvolve-se e cresce na base do respeito mútuo, da solidariedade, da conjugação de interesses. Desta tribuna, na ocasião deste debate, saudamos os Estados e os povos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e S. Tomé e Princípe, e sendo o debate centrado particularmente na relação com a República de Angola, manifestamos o nosso empenhamento no respeito das Resoluções do Conselho de Segurança, para que finalmente a paz, que todos desejamos, mas antes de todos os angolanos, seja finalmente alcançada, e com a paz, a prosperidade, a justiça, a democracia em todas as suas dimensões.

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