Interpelação nº 10/VII, do PEV, "sobre política geral de ambiente centrada
nas questões do ordenamento do Território e dos resíduos"
Intervenção de José Calçada na AR
Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados:
A aceitarmos como boa a afirmação de que os problemas ambientais devem ser perspectivados globalmente e resolvidos localmente, então também temos de aceitar que uma e outra destas duas componentes podem mútua e positivamente potenciar-se, ou, negativamente, anular-se.
As questões ambientais têm em pouca consideração as fronteiras políticas definidas pelos Estados, e uma fuga radioactiva numa central nuclear espanhola cujo sistema de arrefecimento depende das águas do Tejo - acabará provavelmente por nos afectar mais a nós do que aos espanhóis. O mesmo se pode dizer da gestão dos recursos hídricos nas bacias transnacionais ibéricas. Se estes dois exemplos nos aparecem como óbvia demonstração do carácter global destes problemas, outros há que, por menos óbvios e mais clandestinos, obrigam a um comportamento político firme e vigilante dos Estados e dos Governos em defesa, também aqui, da sua dignidade, da sua independência e do seu futuro, para além da da qualidade de vida dos seus cidadãos. É neste quadro que se inserem a exportação de resíduos perigosos para países ditos periféricos, tirando partido quer das frágeis estruturas de fiscalização que estes possuem, quer de uma interpretação abusiva e facilitadora do conceito de "livre circulação" no âmbito da União Europeia. Porque é da U.E. que se trata. Os casos da "Grunig", em Bragança, ou da "Metalimex", na Península de Setúbal, aí estão para provar que não é de fantasmas que falamos - mas de realidades que só uma forte vontade política pode e deve ultrapassar.
Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados:
A gestão dos resíduos sólidos urbanos, uma competência das autarquias, tem de ser encarada de uma forma cada vez mais responsável, face ao crescente aumento da sua produção e à cada vez maior necessidade da preservação da saúde pública e do meio ambiente.
A extensão a toda a população dos serviços de recolha e tratamento final dos resíduos produzidos deverá ser planeada e executada de modo sustentável.
O estudo dos problemas referentes aos resíduos sólidos urbanos, a nível municipal, intermunicipal e nacional, com soluções de remoção, de remoção selectiva, tratamento e destino final, estudadas e concretizadas, permitem atingir objectivos que salvaguardam a saúde pública e o meio ambiente, e reduções unitárias de custos, potenciando ainda uma maior colaboração das populações.
Complementarmente, deverão ser ampliados e optimizados os sistemas de recolhas selectivas já desencadeados em grande parte dos municípios portugueses, nomeadamente com a recolha selectiva de novos materiais, apesar das grandes dificuldades que se põem face à fraca capacidade da indústria transformadora em garantir a absorção destes produtos.
Não restam, pois, dúvidas que, para uma correcta gestão dos resíduos sólidos urbanos, terão de ser adoptadas soluções que estejam de acordo com os seguintes grandes princípios:
- Privilegiar a reciclagem/reutilização,nomeadamente ao nível da recolha selectiva, dando cumprimentoàs normas comunitárias no que se refere aos materiaisde embalagem;
- Minimizaçãoda ocupação de áreas com resíduos;
- Adopção detecnologias que proporcionem significativas reduçõesde volumes;
- Minimizaçãodos impactos ambientais;
- Optimizaçãoglobal de custos (recolha, transporte e tratamento/eliminação);
- Redução dosriscos para as populações.
De acordo com estes princípios, a qualquer solução integrada que possa vir a ser desenvolvida deverá corresponder um conjunto de procedimentos que criteriosamente permitam a valorização e a reciclagem, reduzindo as quantidades de resíduos para tratamento e eliminação, e minimizando as necessidades de áreas afectadas à deposição das fracções residuais finais.
Neste sentido, os municípios e o Ministério do Ambiente terão de desenvolver esforços no sentido de promover acções sectoriais visando a recolha e a utilização de certos materiais, nas quais terá de ser envolvido o sector empresarial.
A reciclagem, a reutilização e a redução de resíduos pressupõem políticas de ambiente coerentes, consensos sociais ao nível dos comportamentos, uma atitude de activo envolvimento das populações, da Administração Pública e dos industriais, consideráveis investimentos na criação de dispositivos de recolha selectiva, na criação de indústrias que, a jusante dos sistemas, façam a reciclagem desses resíduos e utilizem as matérias primas secundárias produzidas, na qualificação dos produtos e na criação dos mercados de produtos reciclados, bem como um forte esclarecimento e sensibilização de toda a sociedade. Mas, como é óbvio,a reciclagem, por si só, não resolve o problemado processamento dos resíduos sólidos. Ela teráde estar associada a um processo de tratamento para a parte nãoreciclável ou reutilizável.
O tratamento dos resíduos remanescentes e a eliminação das fracções produzidas deve ser feita tendo em conta as tecnologias disponíveis, minimizando os impactos ambientais negativos e os riscos para o ambiente e para a saúde das populações.
As tecnologias disponíveis, cada uma delas com as suas vantagens e desvantagens, deverão ser escolhidas, caso a caso, face às condições objectivas de cada um deles.
Para atingir tais objectivos, para além da educação ambiental dos cidadãos no sentido da mudança de mentalidades e, sobretudo, dos hábitos que lhe foram "vendidos" pela sociedade dito de consumo, a Administração Central não se pode demitir das suas responsabilidades, pois compete-lhe criar as condições necessárias ao desenvolvimento desses comportamentos e dessas atitudes, através da definição de políticas sustentáveis e integradoras de toda a actividade humana, com a corresponsabilização das autarquias, entidades económicas, universidades, associações cívicas, cidadãos, etc..
A fixação de metas nacionais de produção de resíduos, suportadas pela introdução de tecnologias limpas, informação e incentivos para a redução, são essenciais para cumprir esses objectivos.
Podemos afirmar que a redução da produção, a reutilização, a reciclagem de materiais e a eliminação segura dos resíduos sobrantes são princípios fundamentais nos quais se deverá basear uma correcta gestão dos resíduos sólidos urbanos.
Relativamente aos resíduos industriais, com particular destaque para os tóxicos e perigosos, a sua gestão é da responsabilidade da Administração Central, a quem compete o desenvolvimento urgente de um sistema nacional devidamente dimensionado para todos os resíduos produzidos no País, independentemente das unidades industriais que os produzem e salvaguardando a saúde pública e o ambiente, de modo a terminar com a actual situação de quase total irresponsabilidade nesta matéria.
O tratamento ou eliminação de qualquer fracção destes resíduos localmente e à margem do sistema integrado nacional poderá conduzir a situações gravíssimas com consequências de tão alto risco que, rapidamente, se tornarão incontroláveis.
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados:
Deve merecer-nos uma referência particular o que no nosso País se passa com o Tratamento dos Resíduos Sólidos Hospitalares Contaminados (os RSHC do "calão" técnico). E aqui nem necessitamos de muita imaginação, bastando-nos o recurso a um documento recente, insuspeito e oficialíssimo: uma síntese das conclusões finais de um relatório elaborado pela Inspecção-Geral de Saúde sobre esta matéria. Tendo essa inspecção incidido sobre os Hospitais Distritais da Covilhã, Lagos, Portimão, Figueira da Foz, Carcavelos, Abrantes, Tomar, Tondela, Lamego, Viana do Castelo e Bragança, e ainda sobre o Curry Cabral, o de Santa Cruz, o Pediátrico de Celas e a Maternidade de Júlio Dinis - o dramatismo das conclusões impôs-se por si mesmo, e de tal modo que consegue ultrapassar o carácter quase sempre burocrático da linguagem típica destes relatórios. Nele se afirma que "a quase totalidade dos estabelecimentos hospitalares evidenciou (...) uma incorrecta triagem dos resíduos"; "a maior preocupação incidiu (...) na eliminação dos resíduos líquidos, e concretamente nos produzidos pelas máquinas de análise dos laboratórios de análises químicas (...), os quais eram vazados em pias de esgoto de sujos, mas também em bastantes casos em pias de limpos", e acrescenta-se que "se suscitam dúvidas quanto às consequências da entrada de tais resíduos na rede pública de saneamento sem tratamento prévio adequado, preocupação acrescida quando tais resíduos contêm elementos de elevada toxicidade". Mas o relatório não termina por aqui, e cito: "Os circuitos instituídos de limpos e sujos apresentaram-se deficientes na quase totalidade dos Hospitais, uma vez que, sobretudo em resultado de estruturas hospitalares antiquadas e saturadas, os circuitos não eram independentes"; "a maioria dos estabelecimentos hospitalares dispunha de central de incineração. Porém, os respectivos incineradores apresentavam-se em regra obsoletos, não permitindo atingir temperaturas na ordem dos 1000º C, concretamente para a incineração de resíduos citostáticos, conforme é normativamente exigido".
Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados:
Reconheço que esta leitura é comparável a uma novela de terror do Edgar Allan Poe - ou que, pelo menos, não é aconselhável a pessoas com estômagos mais sensíveis, exactamente aquelas mesmas que, como nos lembra Sophia de Mello Breynner, incapazes de matar uma galinha, no entanto se deliciam com o comê-la. Na verdade, em Portugal, o tratamento dos RSHC é ele próprio um problema de saúde pública quase tão grave como o do subsistema que está na sua origem. Kafka não faria melhor: tratamos a saúde dos portugueses com consequências tais que, a jusante, podemos matar o doente depois de o termos curado! O Governo aparece-nos com um Programa de Curto Prazo de Tratamento dos RSHC: o que se pode dizer é que, dada a gravidade da situação e o facto incontornável de o Governo estar em funções há quase 2 anos, estamos perante um programa que é um belo programa, que é um belo programa, que é um belo programa...
Os resultados da Cimeira da Terra recentemente realizada em Nova Iorque são verdadeiramente catastróficos. O "amigo americano", empenhado na globalização da economia e na mercantilização definitiva da humanidade, mostrou-se muito mais preocupado com a lógica do lucro hoje e amanhã do que com o desencadear de medidas sérias em relação ao futuro. A intervenção do Primeiro Ministro António Guterres na Cimeira confinou-se à mesma partitura, ou seja: de ecologista não-praticante. Valha-nos ao menos a coerência de, em casa, nunca haver escolhido o ambiente como alvo da sua "paixão"... Na lógica do lucro, o futuro pode sempre esperar. Especialmente o futuro daqueles que já hoje não têm condições para viverem com dignidade o presente. Também aqui, podemos invocar o nosso Almeida Garrett - que não era marxista, como sabem... --, quando ele se perguntava, e nos perguntava, "quantos pobres são necessários para fazer um rico". Vejam lá onde as questões ambientais nos trouxeram! Vejam lá onde, afinal, as questões ambientais sempre nos trazem!
Disse.