Intervenção de

Interpelação sobre saúde - Intervenção de Bernardino Soares na AR

Interpelação n.º 7/X, sobre saúde

Sr. Presidente,
Sr. Ministro da Saúde,

Dir-se-ia que, perante um relatório de Primavera, o Sr. Ministro desenvolve uma espécie de reacção alérgica, tipo febre dos fenos!

Melhor seria que aproveitasse o facto da maioria serem medicamentos sem receita médica, que supostamente estão mais baratos, e tomasse um anti-histamínico, provavelmente com algum efeito sedativo para poder moderar algumas afirmações que tem feito nos últimos tempos!

Sr. Ministro, sobre a questão de saber se os preços aumentaram ou não aumentaram, mesmo que reconheçamos que é muito difícil, com os dados que existem, tirar uma conclusão definitiva, a verdade é que aquilo que o Sr. Ministro peremptoriamente nega não comprova depois em sentido contrário, porque na
entrevista que deu — na tal entrevista que diz que está correcta, mas que foi mal lida pelo Deputado do Bloco de Esquerda —, negando a comprovação das afirmações do Observatório, dá toda a credibilidade a um estudo feito com os meios do seu gabinete. Diz: «Com os meios aqui do gabinete uma sondagem a várias farmácias, não sei exactamente quantas, da área de Lisboa, e perguntámos o preço, tendo concluído que havia uma média de 8,9% de descida». Bom, se isto é a credibilidade da sua informação, vou ali e já venho, Sr. Ministro!

No entanto, Sr. Ministro, o que é mais grave nesta questão é que o Governo, entidade responsável máxima pela saúde pública, e o Ministro da Saúde incentivam o mercado dos medicamentos sem receita médica! Não estou a pôr em causa a sua existência — não me dê essa resposta! Ele existe, deve existir, é legal e, muito bem, tem o seu papel.
Mas o Governo assume o objectivo de incentivar este mercado e assumiu-o no protocolo com a Apifarma, com a indústria farmacêutica, onde é dito, na cláusula 4.ª, aliena d) do n.º 1, que é uma das obrigações do Ministério promover o desenvolvimento do mercado dos medicamentos não sujeitos a receita médica.

E ainda recentemente, julgo que em Cascais, o Sr. Ministro da Saúde disse: «Gostaríamos que aumentasse o número de medicamentos não sujeitos a receita médica». E acrescentou: «O Governo não é um órgão técnico, mas tem como competência dar orientações».
Ora, Sr. Ministro, se os medicamentos sem receita médica só o são porque os critérios técnicos que se lhes aplicam permitem que o sejam, que orientações é que o Governo vai dar? Vai dizer «meus senhores, aligeirem os critérios que aplicam, porque nós comprometemo-nos com a indústria que este mercado tem de ser aumentado»? É esta a orientação que o Governo assume aqui que vai dar? 

É esta a orientação que um Ministro da Saúde, o responsável pela saúde pública no País, dá aos serviços do Ministério da Saúde para cumprir o que acordou com a indústria farmacêutica em matéria de mercado nesta matéria?

Finalmente, quero colocar-lhe uma última questão relativa ao protocolo com a Associação Nacional das Farmácias. Trata-se da questão dos medicamentos da SIDA, porque o Sr. Ministro, na mesma entrevista que há pouco aqui foi citada, diz coisas extraordinárias.

Primeiro, reconhece — e gostaria que quantificasse aqui, hoje — que vai ser paga à Associação Nacional das Farmácias uma contrapartida pela distribuição destes medicamentos nas farmácias. Gostaria de saber quanto é que vai ser pago, qual é o mecanismo de pagamento, porque isso é muito importante para avaliarmos o protocolo que foi assinado com a Associação Nacional das Farmácias.

Diz, depois, que há fraude em relação a esta matéria — o que não nego que possa existir — e que a solução é fazer um registo dos pacientes. Portanto, o Governo propõe fazer um registo dos pacientes com
SIDA e entregá-lo à Associação Nacional das Farmácias.
.
Para um Governo que diz que não cede aos interesses instalados, quando os factos mais visíveis da sua política do medicamento é um acordo com a indústria farmacêutica, em que capitula perante os seus interesses, e um outro, com a Associação Nacional das Farmácias, em que acontece exactamente o mesmo,
se isto não é ceder aos interesses instalados, não sei o que será não ceder.

(…)

Sr. Presidente,
Sr. Ministro da Saúde,

Queria pedir-lhe para não fazer (como já fez várias vezes) a deturpação do que outros dizem em favor do seu ponto de vista.

Com efeito, eu não disse que o Relatório do Observatório não tinha credibilidade, disse, sim, que o próprio Observatório refere que os dados são escassos. Mas o que é extraordinário é que um Ministro que nega peremptoriamente o que foi afirmado pelo Relatório do Observatório tenha como base para essa negação uns telefonemas ou umas perguntas feitas pelo seu gabinete numas farmácias de Lisboa, que não
se sabe bem quantas são. Foi essa a base de credibilidade que o Sr. Ministro apresentou para contestar o que diz que não tem credibilidade. Portanto, não deturpe o que os outros dizem.

Quanto ao protocolo com a Apifarma, gostaria de saber se ele está em vigor. Não tivemos mais notícia alguma desse documento tão amplamente divulgado e que, de repente, submergiu. Ficámos, assim, sem saber se ele está em vigor, se só está em vigor na parte ambulatória, quantas empresas já aderiram, que percentagem do mercado está abrangida e tudo o mais que foi anunciado e propagandeado pelo
Governo e que, entretanto, desapareceu do mapa…

Quanto aos mitos ideológicos a que o Sr. Ministro se referiu — a despropósito —, em relação à questão dos medicamentos para a SIDA nas farmácias privadas, a partir de agora, devo dizer que o problema não é esse. Ou seja, não se trata de um problema de mitos ideológicos mas, sim, da protecção de dados e da reserva da vida privada, Sr. Ministro, porque sediar os doentes com SIDA numa listagem e entregá-la a uma rede de farmácias privadas tem, evidentemente, riscos e problemas graves de protecção de dados.

Portanto, para o Sr. Ministro, a protecção dos dados destas pessoas, o não serem listadas, o não estar nas mãos de uma rede de empresas privadas a listagem da sua doença é um problema de mitos ideológicos.

Fica assim qualificada a sua preocupação com esta questão.

O Sr. Ministro não respondeu quanto vai pagar à Associação Nacional das Farmácias para distribuir estes medicamentos, e esse dado é muito importante. Não vale a pena dizer apenas que está em causa o conforto dos doentes, o conforto dos utentes, por que se fosse esse o seu objectivo podia ter criado condições para que nos centros de saúde, que têm uma rede razoavelmente dispersa, se fizesse essa distribuição em condições de segurança e em condições de controle por parte da administração pública da saúde.

Mas não foi isso que fez! O Governo optou por entregar esse serviço às farmácias privadas e agora não quer dizer em quanto é que ainda vai remunerar as farmácias privadas por o prestarem.

Também podia explicar, Sr. Ministro, o significado do que está escrito no protocolo com a ANF, isto é, o facto de passar a haver meios auxiliares de diagnóstico e de terapêutica nas farmácias. O que é que isto significa? Que meios são estes que vão ser autorizados pelo Governo nas farmácias?

Para finalizar, queria fazer-lhe duas perguntas que têm a ver com questões profissionais.

Uma delas prende-se com o Processo de Bolonha e a sua aplicação ao ensino e à formação em enfermagem.

Sabemos que a sua aplicação estrita, tal como está a ser tratada pelo Governo, pelo Ministério do Ensino Superior, significa uma desgraduação do ensino da enfermagem, retrocedendo num percurso de aumento de qualidade e de qualificação que tem sido seguido nestes últimos anos, questão que é muito preocupante.

A outra questão tem a ver com a situação de precariedade que existe no Ministério da Saúde, com a vulgarização dos contratos de três meses, mais três meses, seguidos de dois dias de interrupção para voltar ao mesmo para muitos profissionais, e com os efeitos da decisão do Governo de cessar todos os vínculos
de recibos verdes, de tarefa ou outros com os profissionais que hoje estão no Serviço Nacional de Saúde.

Pergunto o que é que isto significa para o funcionamento desses serviços de saúde.

(…)

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:

«Todo o poder político exige resultados, mas quase sempre regateia os meios. A Administração é sempre acusada de ineficiente, de inerte, de excessivamente formal, de entravar o desenvolvimento do País. O princípio da igualdade de oportunidades nas admissões é meramente formal, pois proliferam os recibos verdes e o trabalho
à tarefa, onde a igualdade de oportunidades é posta entre parêntesis».

O que acabei de dizer não são palavras minhas, mas, sim, de um certo Prof. António Correia de Campos, escritas em 1997, e que qualificam bem a radiografia feita em relação à Administração Pública e à responsabilidade do poder político, dos governos, pelo estado em que ela está.

Bem seria que pelo menos estas palavras que acabei de citar fossem lidas no Conselho de Ministros, para que outros membros do Governo ouvissem estas razões.

Mas o problema é que, depois, vendo a política do Governo, verificamos que a solução para esta radiografia é errada, porque sabemos que os objectivos da política do Governo são os de, em primeiro lugar, pôr o dinheiro público ao serviço dos interesses privados.

Já nessa altura — honra lhe seja feita — o Sr. Ministro dizia que «existe a percepção generalizada de que o modelo de mercado mal iniciou a sua pervasão da Administração Pública e que muitos e novos exemplos se podem desenvolver de desintervenção do Estado». Foram estas as palavras do Sr. Ministro, que agora aplica enquanto membro do Governo.

Sabemos que o objectivo da política do Governo é também o de restringir o âmbito dos serviços públicos e de saúde, transferindo a prestação para os privados.

Sabemos que a sua política tem sido, por exemplo na área do medicamento, a de transferir cada vez mais custos para os utentes, o mesmo se passando, como está a preparar o Governo, em matéria de serviços de saúde e de pagamentos diferenciados.

Nessa altura, no mesmo documento, dizia também o actual Ministro da Saúde que «a fixação de preços para serviços prestados no sector público, para além dos naturais remoques dos privilegiados da gratuitidade, não comporta qualquer razão para que certos serviços, cuja utilização não se traduz em externalidade, não possam ser pelo menos comparticipados pelos que deles retiram uma utilidade individual.» Aí está o
ataque à gratuitidade, que consta da Constituição, mas que o Sr. Ministro não aceita para a sua política.

Finalmente, temos uma política que degrada a formação e o estatuto dos vínculos dos profissionais com uma precarização absoluta dos profissionais de saúde nas unidades de saúde nos últimos tempos, que é absolutamente perniciosa para o estado da saúde em Portugal.

Penso que o ponto mais importante deste debate — e com isto termino, Sr. Presidente — foi quando o Sr. Ministro da Saúde invocou na sua intervenção, ele próprio, o apoio do Sr. Primeiro-Ministro à sua política e à política de saúde deste ministério.

Bem sabemos que quando os titulares das pastas começam a sentir necessidade de invocar o apoio do Sr. Primeiro-Ministro, que, sabemos, teve de ter um papel importante no acordo celebrado com a ANF, assessorado pelo Sr. Ministro da Saúde, as coisas, provavelmente, já não estão a correr tão bem.

Mas certamente, tal como aconteceu em debates de interpelações que tiveram lugar nas últimas semanas, o Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares, digno representante do núcleo político do Governo, vai também hoje dar o apoio desse mesmo núcleo nesta interpelação ao Ministério da Saúde.

 

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