Deixando para outra ocasião o devido comentário a esse súbito e espectacular êxito da “sociedade civil” portuguesa que foi a constituição, suportada em poucos dias por dezenas de milhar de cidadãos, da “Associação dos Tios Pobres Sem Ricos Sobrinhos”, consintam-nos os leitores ainda duas breves notas sobre a guerra contra o Iraque.
A primeira destina-se a suprir generosamente uma lamentável lacuna nas coberturas informativas e nos comentários à guerra e que se traduz no facto de, com toda a gente ocupada ou a justificar a guerra de agressão ou a combatê-la ou ainda mais simplesmente a descrever (sempre pobremente em comparação com a pavorosa realidade) as suas destruições e sofrimentos, não houve ninguém que perdesse um minuto que fosse a pensar nas insónias, angústias e inquietações em que, ao longo destas semanas deve ter mergulhado a família real saudita.
Na verdade, o caso não é para menos, quando se é uma ditadura e uma monarquia feudal sem a mais pequeno verniz de democracia e se figura persistentemente nos relatórios da Amnistia Internacional por repelentes crimes contra os direitos humanos e, ao mesmo tempo, se vê um país vizinho ser agredido e ocupado pelos EUA com um similar “fundamento”.
Pior ainda quando, como é o caso, essa agressão e ocupação aparece justificada e integrada na doutrina da Casa Branca num plano global de “democratização” dos países da região .
E, como se tudo isto não bastasse, ainda por cima os “media” resolveram fazer voo picado sobre o fausto dos palácios de Saddam e sobre a sua aplicação dos recursos financeiros do petróleo do seu país, o que, mais cedo que tarde, só fará lembrar o fausto dos palácios de Arábia Saudita, a mão baixa sobre os recursos do petróleo que lançam as cliques governantes daquele país e de outros emiratos e sultanatos e aquelas comitivas de suas altezas e trezentos cortesãos que periodicamente se deslocam pelas grandes estâncias mundiais de veraneio numa imbatível ostentação de luxo, riqueza e despudor.
A segunda nota destina-se, perdoe-se a imodéstia, a ver mais longe do que os dias que correm e, por essa via, a oferecer um suplemento de tranquilidade e impunidade a todos quantos têm desempenhado o penoso e desavergonhado papel de obedientes porta-vozes do império.
É que, quase tão certo com dois e dois serem quatro, com o passar do tempo o Iraque irá deixando de ser notícia, outros temas ou conflitos internacionais ocuparão o seu lugar nas manchetes dos jornais e no “prime time” das televisões (os EUA já estão a tratar disso, mesmo que seja ali ao lado do Iraque) e, salvo surpresas de maior, daqui por um ano falar-se-á tanto do Iraque como hoje, passado um ano, se fala do Afeganistão, ou como hoje, passados três anos, de fala do Kosovo.
E assim como quase ninguém se ocupa hoje a perguntar pela esplendorosa democracia que está em marcha ou se prepara no Afeganistão ou pela soberania jugoslava sobre o Kosovo reconhecida pela ONU, também daqui por algum tempo os agora exaltados propagandistas da “libertação” e “democratização” do Iraque (e de toda a região) já se terão esquecido disso e já estarão a escrever, a perorar e a debitar sentenças sobre outro assunto qualquer.
E não nos admiraria nada que, se por acaso ou talvez não, daqui por três ou quatro anos, uma vez já retiradas as tropas americanas do Iraque, um qualquer coronel ou general iraquiano ou um qualquer mullah fizer um golpe de Estado e instaurar uma qualquer ditadura ( por boas e ocidentais razões como se calcula) no Iraque, estamos certos de que não só George W. Bush ou Rumsfeld depressa explicarão que não podem estar todos os dias a deslocar centenas de milhar de soldados para o Golfo e que é preciso usar outros instrumentos de persuasão mas também que o assunto morrerá nos “media” ao fim de oito dias.
E é também contra cenários destes que fazem bem os que não tencionem prescindir da memória e da indignação face à profunda injustiça, à horrível devastação e ao bárbaro crime contra a civilização que esta agressão e ocupação representaram.