Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

O incumprimento das contrapartidas revela-se catastróficas para o estado português

Declaração política condenando o não cumprimento das contrapartidas da Lei de Programação Militar

Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados:
Na última década, o País fez um avultado investimento em equipamentos militares. Alguns de inestimável utilidade, como os helicópteros de busca e salvamento ou os navios de patrulha oceânica; outros de prioridade contestável e contestada, como os submarinos ou os blindados do Exército; outros de manifesta inutilidade, como os caças F16, que nunca saíram dos caixotes.
Seja como for, a Lei de Programação Militar, proposta e aprovada em 2003 pelo então ministro Paulo Portas, inscreveu um investimento de 5340 milhões de euros em equipamentos militares, verbas que, todos reconhecerão, ficavam muito, muito, acima das nossas possibilidades.
Os compromissos então assumidos na Lei de Programação Militar, alguns deles em contratos de leasing gravemente onerosos, como é o caso dos submarinos, representam uma fatura
muito pesada a pagar em duas décadas pelo povo português, ao ponto de, na situação de crise financeira em que nos encontramos, todas as verbas disponíveis da Lei de Programação Militar serem gastas no cumprimento dos compromissos financeiros então assumidos.
No entanto, o País teria muito a beneficiar com tais aquisições porque existiriam fantásticas contrapartidas para a economia nacional. As empresas multinacionais norte-americanas e europeias que nos forneceriam aviões, submarinos, helicópteros, viaturas blindadas e outros equipamentos obrigavam-se a prestar ao Estado português um conjunto de ações contratualmente determinadas — as contrapartidas — suscetíveis de produzir efeitos positivos relevantes na economia portuguesa, que contabilizados deveriam perfazer um montante não
inferior ao montante da aquisição. Um montante que o Presidente da Comissão de Contrapartidas de então, Pedro Brandão Rodrigues, qualificava, em reunião da Comissão de Defesa Nacional, como equivalente ao Quadro Comunitário de Apoio.
Pois bem, passados quase 10 anos, 3 governos e 3 comissões de contrapartidas, a diferença entre as contrapartidas prometidas e contratualizadas e as contrapartidas efetivamente realizadas é francamente desoladora, ou para ser mais claro, é catastrófica.
O último relatório elaborado pela extinta Comissão Permanente de Contrapartidas relativo a 2010 é muito elucidativo.
Se não vejamos.
Helicópteros EH-101: contrapartidas aprovadas em março de 2005 no montante de 403 milhões de euros.
Incluía 34 projetos, sendo que 20 nunca arrancaram. Até ao final de 2010, estavam cumpridas 29,8%, no montante de 100,5 milhões de euros. Em caso de incumprimento, as penalidades deveriam ter sido acionadas em setembro de 2011. Foram acionadas? Que se saiba, não! [Imagem 1]
Submarinos: contrapartidas no valor de 1210 milhões de euros. Contrato assinado em outubro de 2004 para um período de oito anos. Seis anos passados, 19 dos 39 projetos não tiveram qualquer movimento. O grau de cumprimento foi da ordem dos 31,5%, ou seja, 381 milhões de euros.
O processo complicou-se com graves diferendos na aplicação dos contratos, com crimes de burla qualificada e falsificação de documentos. Quadros da empresa alemã foram condenados por crimes de corrupção cometidos neste processo. Na Alemanha, já que em Portugal, nem corruptos, nem contrapartidas.
A empresa alemã recusa-se reiteradamente a cumprir as suas obrigações e a indemnização fixada contratualmente para o Estado português em caso de incumprimento é de 10% do valor
contratado. Como é evidente, o incumprimento compensa e outros crimes, até prova em contrário, também compensam. [Imagem 2]
Viaturas blindadas de rodas: contrato assinado em 2005, para um período de nove anos, no montante de 516 milhões de euros. Cumpridos: 11,4%, no montante de 58,8 milhões de euros.
O contrato com a empresa alemã Steyr, entretanto adquirida pela norte-americana General Dinamics, incluía o fabrico das viaturas em Portugal, no Barreiro, pela empresa Fabrequipa, e a transferência de tecnologia que permitisse a esta empresa nacional fabricar idênticas viaturas para outros mercados. Nada se concretizou e o diferendo instalou-se entre o consórcio e a empresa nacional, cuja viabilidade futura está seriamente comprometida por esse incumprimento. E o que faz entretanto o Governo? Que se saiba, nada!
[Imagem 3]
Aquisição de torpedos: valor das contrapartidas, 46,5 milhões de euros pelo período de nove anos. Dos nove projetos apenas avançaram três. Os outros seis não avançaram, nem têm perspetivas de avançar.
Esperava-se uma definição no 1.º semestre de 2011. Até hoje, que se saiba, nada! [Imagem 4]
Modernização dos F16: contrapartidas no valor de 174,9 milhões de euros, assumidas em fevereiro de 2006. Foi o único contrato integralmente cumprido, com grande benefício para as OGMA — Indústria Aeronáutica de Portugal. [Imagem 5]
Aviões C-295: contrapartidas no valor de 460 milhões de euros, contrato assinado em 2006 para um período de sete anos. O grau de cumprimento é de 0,9%, no montante de 4,1 milhões de euros. Esperava-se uma evolução para o 1.º semestre de 2011. Terá acontecido alguma coisa? Que se saiba, nada! [Imagem 6]
Modernização dos aviões P3 Orion: contrato assinado em setembro de 2007, no montante de 99,7 milhões de euros. Cumpridos 29,9%, no montante de 29,8 milhões de euros. [Imagem 7]
Aquisição de targeting pods para os F16: contrato assinado em novembro de 2008, no valor de 32 milhões de euros. Cumprimento até hoje: zero! [Imagem 8]
Resumindo e concluindo: de contrapartidas no valor global de 3021 milhões de euros, foram cumpridos contratos no valor de 799 milhões, o que corresponde a 26,4% do contratado [Imagem 9]
As empresas que nos venderam centenas de milhões de euros de equipamentos militares, que os portugueses estão a pagar com os sacrifícios que sabemos, lesaram o Estado português em mais de 2200 milhões de euros de promessas contratualmente assumidas, que não cumpriram. O Estado português celebrou contratos que não salvaguardam minimamente a sua posição e tem-se revelado incapaz de fazer cumprir os contratos que assinou.
O atual Governo resolveu o problema de uma forma radical: extinguiu a Comissão Permanente de Contrapartidas e passou a gestão das contrapartidas do Ministério da Defesa para o Ministério da Economia; o Ministro da Economia, questionado sobre as contrapartidas, nem sequer sabe do que se trata; e o Ministro Paulo Portas, responsável pela maior parte destes contratos, passeia a diplomacia económica pelo mundo em voos tão altos que já nem consegue ver os problemas de quem vive cá em baixo!
Sr. Presidente, concluo dizendo que não é suportável que o nosso País esteja a ser lesado em mais de 2000 milhões de euros e que o Governo manifeste perante este escândalo a mais absoluta indiferença.
O Governo tem de explicar ao País o que está a fazer, e o que tenciona fazer, para recuperar as contrapartidas que nos foram prometidas e para acionar os incumpridores. E os portugueses não podem deixar de tirar ilações acerca dos governos e dos governantes que, por ação e por omissão, conduziram a esta situação inconcebível.
O que exigimos de imediato é que, extinta que foi a Comissão Permanente de Contrapartidas, o Governo informe esta Assembleia, com rigor, acerca da situação atual e das diligências que estão a ser feitas para garantir o seu cumprimento. É o mínimo que se exige desde já, em nome da mais elementar decência e de um mínimo de respeito para com os portugueses!
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Fernando Serrasqueiro,
Muito obrigado pela sua questão.
O Sr. Deputado referiu dois aspetos que gostaria de abordar.
O primeiro prende-se com o que foi e tem sido o carácter sigiloso desta matéria. Inclusivamente, há contratos de contrapartidas que têm cláusulas sigilosas — isso é assumido até nos relatórios das comissões de contrapartidas —, o que é, no mínimo, discutível.
Ora, isso faz com que muitos dos contratos estejam verdadeiramente armadilhados. Ou seja, quando se assina um contrato de contrapartidas relativamente a um equipamento como os submarinos, em que o Estado português assume que, em caso de incumprimento, a penalidade é de 10% do montante contratado, obviamente o incumprimento compensa e, portanto, o consórcio não está nada preocupado em ser acionado pelo Estado português, porque lhe fica muito mais barato.
Em suma, os contratos foram tremendamente lesivos para o Estado português!
O segundo aspeto prende-se com a situação que se criou, absolutamente insólita, em relação à última Comissão Permanente de Contrapartidas, presidida pelo Sr. Embaixador Pedro Catarino. É preciso dizer que o Sr. Embaixador Pedro Catarino fez um esforço meritório para tentar recuperar algumas situações face ao estado calamitoso em que se encontravam, tendo conseguido alguma recuperação, embora tenha ficado muito aquém do que era desejável. Mas o que aconteceu foi que o Sr. Presidente da República nomeou o Sr. Embaixador Pedro Catarino para Representante da República nos Açores, e não é isso que está em causa,
mas, sim, o facto de não ter sido encontrada qualquer solução para a sua substituição na Comissão Permanente de Contrapartidas.
Entretanto, o Governo anunciou a extinção dessa Comissão e o Sr. Ministro da Economia, numa reunião da Comissão de Economia e Obras Públicas — uma reunião que foi relativamente tempestuosa —, quando perguntado sobre as contrapartidas, primeiro, nem respondeu e depois, alertado para o facto de não ter respondido, deu uma resposta que não foi resposta. Disse: «Ah, as contrapartidas… Pois, pois… Não sei, mas vou ver o que se passa.»
Ora bem, estamos a falar de mais de 2000 milhões de euros em que o Estado português foi lesado e o Ministro da Economia nem sabe o que se passa?!
Então, o que é que o Sr. Ministro sabe?
Sr. Presidente, continuarei a falar sobre esta questão na resposta a outras perguntas que surgirão, seguramente.
(…)
Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Carina Oliveira,
Admito que a Sr.ª Deputada perceba mais deste assunto do que o Sr. Ministro da Economia, mas, mesmo assim, está muito mal informada. O Sr. Ministro é que não sabe nada, efetivamente; aliás, perante a comissão parlamentar, confessou a sua absoluta ignorância sobre esta matéria.
A Sr.ª Deputada perguntou por que razão não olho para a bancada que está aqui ao lado, a bancada do PS. Mas eu olho para todas as bancadas que estão ao meu lado, e até começo pela bancada que se situa mais à direita do Hemiciclo, a do CDS, porque, na verdade, estes contratos foram negociados, não todos, mas os de maior vulto, no tempo do governo do PSD/CDS.
O Ministro da Defesa Nacional era o Dr. Paulo Portas e o primeiro Presidente da Comissão Permanente de Contrapartidas era um dirigente do CDS, o ex-Deputado Pedro Brandão Rodrigues, que nos disse que as contrapartidas eram de um montante equivalente a um Quadro Comunitário de Apoio. Nunca me esqueço desta sua afirmação, feita na Comissão de Defesa Nacional, ao anunciar o que viria de positivo para a indústria nacional e para a economia nacional com todas estas contrapartidas. Mas, quando se faz esse anúncio escondendo que, em caso de incumprimento, a penalidade é de 10%, efetivamente, está a esconder-se o essencial!
Do nosso ponto vista, houve uma deficiente gestão de todo este processo, até pelas próprias comissões de contrapartidas que se sucederam. Por exemplo, as comissões de contrapartidas funcionavam com negócios ruinosos para o Estado ao recorrerem a grandes escritórios de advogados que cobravam ao Estado português os seus serviços ao minuto, dando prejuízo à própria Comissão Permanente de Contrapartidas.
Evidentemente, cometeram-se as maiores barbaridades neste processo!
Quero dizer às três bancadas que se situam à minha direita, às bancadas do PS, do PSD e do CDS, que não há inocentes. Há gravíssimas responsabilidades que todos têm de assumir nesta matéria e na grave lesão para o Estado português que todo este processo tem representado!
Sr. Presidente, peço desculpa por abusar de alguns segundos, mas há um ponto muito relevante da pergunta da Sr. Deputada Carina Oliveira a que não respondi.
Sr. Presidente, refiro-me à questão da Direção-Geral das Atividades Económicas.
Diz a Sr.ª Deputada que acabou a Comissão Permanente das Contrapartidas, mas as competências dessa Comissão foram atribuídas à Direção-Geral das Atividades Económicas. Sr.ª Deputada, gostaria que me encontrasse a lei orgânica da Direção-Geral das Atividades Económicas que estabelece as suas atribuições. É que a lei não saiu e esse é que é o problema! Portanto, neste momento, essas atribuições estão no limbo.
Ninguém é responsável por coisa nenhuma!
(…)
Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Catarina Martins,
Tem razão na questão que coloca, porque, efetivamente, o que é que tem acontecido em todos estes processos é que as empresas comprometeram-se — aliás, a escolha das empresas para fornecer estes equipamentos dispendiosíssimos às Forças Armadas portuguesas foi feita com base nas contrapartidas que ofereciam, o que terá sido determinante para a escolha —, mas, depois, essas empresas, na primeira «curva da estrada», arranjavam um diferendo com as empresas portuguesas que supostamente seriam as beneficiárias das contrapartidas.
Portanto, com a desculpa de que a empresa portuguesa não estava em condições de receber a
contrapartida ou com outra desculpa qualquer, o facto é que as essas empresas não têm cumprido. Enquanto os portugueses pagam, como se costuma dizer, com «língua de palmo» os equipamentos que adquiriram, essas empresas não cumprem os seus compromissos para com o Estado português. E o que é que acontece?
Nada! Não acontece rigorosamente nada!
Sr.ª Deputada, de facto, no relatório da Comissão Permanente de Contrapartidas relativo a 2010, que citou, são referidos vários processos em que, designadamente no último semestre de 2011, deveriam ser assinadas cláusulas de responsabilização pelo incumprimento. Ora bem, não se sabe de nada?! O Governo extinguiu a Comissão Permanente de Contrapartidas e não fez nada. Nada! Não acionou sequer essas cláusulas, ou, se acionou, não disse nada a ninguém! Presumimos que o não tenha feito, porque se o Ministro da Economia e do Emprego não o sabe… A não ser que haja outro ministro qualquer que ande a fazer alguma coisa das
atribuições do Ministro da Economia e que este não saiba, mas, isso, o Governo é quem terá de esclarecer!
Sr.ª Deputada, quero dizer-lhe que vamos apresentar, por escrito, uma pergunta muito concreta ao Governo para que, processo a processo, tendo em conta aquilo que consta do relatório da Comissão Permanente de Contrapartidas de 2010, nos seja esclarecido, ponto por ponto, o que é que o Governo fez para acionar as garantias naqueles processos em que essas garantias se venceram e que deveriam ter sido acionadas nos últimos meses. O País e esta Assembleia têm não só o direito mas também o dever de querer saber o que é que foi ou não foi feito, nos últimos meses, relativamente a esta matéria.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Hélder Amaral,
Não percebi muito bem a sua pergunta, só percebi que estava muito atrapalhado. Isso percebi… Perguntas, não consegui vislumbrar nenhuma! Vamos lá ver o que consegui discernir da sua intervenção.
Disse que, afinal, isto não é assim tão mau porque, de facto, as OGMA beneficiaram com as
contrapartidas. É verdade. Eu disse-o!
O Sr. Deputado disse que eu quis lançar aqui poeira. Os dados que aqui referi foram, rigorosamente, os que constam do relatório de 2010 da Comissão Permanente das Contrapartidas, e não ocultei sequer o contrato que correu que bem, o contrato de
contrapartidas para o MLU dos F16. Eu disse-o! Porém, o facto de esse ter corrido bem, e congratulamo-nos todos com isso, não pode ocultar o facto de, praticamente, todos os outros terem corrido muito mal!
O Sr. Deputado disse que os processos ainda não terminaram. Bem, pelos vistos, para o Governo terminaram! Para nós, não, porque entendemos que esta questão não pode ficar assim e que o Estado português tem de continuar a acionar todos os mecanismos que façam com que estes consórcios cumpram as suas obrigações ou sejam responsabilizados por isso.
Não parece que seja essa a atitude do Governo quando extingue a Comissão Permanente de Contrapartidas e quando atribui estas competências a uma direção-geral que nem sequer se preocupa em aprovar a respetiva lei orgânica.
Sr. Deputado, não venha dizer que ninguém é responsável por isto. Foi o Estado português e, então, olhamos para o ar e ficamos a ver onde estará o Estado português!… Não, Sr. Deputado! O Estado português tem responsáveis, o Estado português tem tido governos e os governantes têm de assumir perante os portugueses as responsabilidades pelos seus atos e pelas suas omissões.
Apesar de muitos governantes e ex-governantes portugueses terem uma enorme impunidade mediática, como sabemos, não podem deixar de ser responsabilizados por aquilo que fizeram e fazem enquanto membros do Governo. Efetivamente, têm de responder perante os portugueses pelas suas ações, porque se comprometeram, porque se assumiram um cargo de responsabilidade à frente dos destinos do País não podem fugir às responsabilidades desse cargo e têm de aceitar ser responsabilizados por tudo aquilo que fizeram ou deixaram de fazer.
Este processo, Sr. Deputado, é um escândalo que não pode ficar ocultado.
Sobretudo quando muitos portugueses estão a ser submetidos, por este Governo, a pesadíssimos sacrifícios, não podem aceitar de ânimo leve que o Estado português deite pela borda fora mais 2000 milhões de euros e que ninguém assuma a responsabilidade por isso.

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