Artigo de Jorge Cordeiro

Incendiário

Mesmo sabendo que é no passar do tempo que feridas e mágoas tão fundas quanto as associadas ao incêndio florestal que assolou o centro do país que se encontrará a força que as sare, será, ainda assim, tempo de olhar para elas. Com o distanciamento insuficiente, ainda que o tempo passasse mais largo, sabemo-lo. Mas com a urgência que a dimensão da tragédia nos insta a assumir porque de tempo desperdiçado é já bastante. Com os holofotes mediáticos à procura de outras fontes que lhes garanta mais do que informação esclarecida audiências que hão-de bater aos pontos a concorrência. Mesmo que o resultado final seja aquele que se viu. Houvesse quem levasse à risca princípios deontológicos do jornalismo e sobrariam menos carteiras profissionais do que árvores por arder. As atenções estão agora viradas para outro lado. O errado, como muitos sabem, mas que serve para passar ao lado do que deveria ser tido, por experiência dolorosamente testada, como certo. Aí está a narrativa de reduzir o problema a incendiários acompanhada do enésimo agravamento da moldura penal.

Olhe-se para quem rega de combustível a floresta, por via da ausência de políticas de ordenamento e de investimento, e não só para quem está de fósforo na mão. Aí os temos, arautos da propriedade privada, a brandir o desleixo das gentes daquelas terras e a reclamar pela expropriação. Alguém já lhes perguntou se não terão dado conta de que nem cadastro florestal, que devia estar concluído em 2013, existe? Já alguém os interrogou por que razão os que deviam povoar esse Interior se viram obrigados a sair para fazer avançar o eucalipto ou porque se tenta sacudir o povo dos baldios para lá pôr pinheiros? Alguém já os questionou como querem que os que ainda ali estão, em níveis de subsistência, suportem os custos da limpeza quando sucessivos governos "permitem" às celuloses um preço de compra da madeira (que seria o retorno de rendimento) a 1/3 do preço da importada? Lá os vemos encolhendo os ombros escondidos por detrás das leis do mercado. Não, não é "a economia, estúpidos", são os interesses de classe associados aos grupos monopolistas. Já alguém os interpelou sobre o que têm em mente quanto ao destino dessas terras? A caminho de um banco de terras? Público? Ou na mão de fundos financeiros florestais e no bojo das celuloses?

Notável esta metamorfose: criaturas deslumbradas com as fileiras do papel e da celulose, rendidos à monocultura intensiva - do eucalipto e também do pinheiro -, entusiastas da entrega de milhões de euros de dinheiro público a grupos económicos - seja à Altri, Navigator ou Sonae - convertidos a devotos da socialização da terra! Aí os temos, os que iludem o que as políticas da União Europeia trazem de vulnerabilidades estruturais do interior e da floresta, a defender, por delírio é certo, um serviço europeu de Protecção Civil. Aí os temos, ainda, a propor estudar o que estudado está, a fingir que ignoram o que não quiseram fazer, a propor mais inquéritos agora de peritos "independentes" a pensar, presume-se, em especialistas e inquiridores vindos dos grupos económicos com interesses na floresta. Aí os temos, Cristas e Passos, a dizer coisas, protegidos pela falta de memória dos que não querem puxar por ela, como se agora tivessem chegado à terra escondendo que cortaram 150 milhões à floresta na reprogramação do QREN, que liberalizaram o plantio do eucalipto, que desmantelaram estruturas do Ministério da Agricultura, que cortaram a eito em tudo o que envolvia afectação de recursos ao ordenamento e à prevenção. Aí os temos calados, de Santana Lopes a Daniel Sanches, pais da parceria público-privada que, com a SLN e o BES, deram à luz esse monumento de eficácia que dá pelo nome de SIRESP. E aí os temos a ludibriar a opinião pública com a chamada reforma da floresta, esgrimida como bode expiatório ou varinha mágica, para fugir ao essencial. Não é por falta desta reforma florestal que estamos onde se vê. Tanto mais que com ela não se vai longe, não se dá resposta aos problemas cruciais, não rompe com os mesmos erros que nos trouxeram até aqui.

Querem respostas sérias? Desenterrem a Lei de Bases e a Estratégia Nacional para as Florestas aprovadas respectivamente em 1996 e 2006. Concretizem todas as medidas lá identificadas no calendário fixado. Invistam no ordenamento e na prevenção. Ponham a floresta e as populações à frente das imposições orçamentais da UE. Criem as centenas de equipas de sapadores em falta. Reponham o corpo dos guardas-florestais com os seus pontos e casas de apoio floresta dentro. Invistam na rede primária de faixas de gestão de combustível e faixas de segurança junto de infraestruturas. Assegurem preços da madeira que incentivem a gestão activa da floresta. E já agora, em vez de poupar umas décimas do défice, antecipem o dispositivo de protecção civil em pleno. Tivesse isto sido feito e teríamos sido, provavelmente, poupados à trágica dimensão do incêndio florestal iniciado em Pedrógão.

Publicado no Diário de Notícias de 30 de Junho de 2017