Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

"É inaceitável que as opções legislativas sobre direitos sejam submetidas a referendo"

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Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Sob a forma de um projeto de referendo, o que discutimos hoje é uma fraude.

Sob o ponto de vista democrático, esta proposta é de uma total deslealdade. Esta Assembleia aprovou na generalidade, há oito meses, uma iniciativa legislativa sobre a co-adoção. Em Comissão foram realizadas 17 audições sobre a matéria. Nunca ninguém propôs, sugeriu, ou sequer aludiu à hipótese de um referendo sobre a matéria. E foi só quando a Comissão deu por concluídos os seus trabalhos e se dispunha a remeter o processo para plenário para votação final global que o PSD suspendeu unilateralmente o processo legislativo a pretexto da apresentação de uma proposta de referendo.

Numa primeira fase era uma proposta envergonhada. Não era uma proposta do PSD, mas apenas de alguns deputados da JSD, beneficiários do estatuto de semi-inimputabilidade que os partidos da direita conferem às suas organizações de juventude. Mas afinal já não é. O PSD já não tem vergonha nenhuma.

Os proponentes sabem que a segunda pergunta que propõem é manifestamente ilegal. Pode propor-se um referendo sobre uma proposta legislativa que tenha sido apresentada, desde que não tenha sido definitivamente aprovada. Mas não se pode propor um referendo sobre uma proposta legislativa inexistente. Como bem se sabe, não há nenhum projeto em discussão sobre a adoção por casais de pessoas do mesmo sexo, pelo que a segunda pergunta não tem objeto. É ilegal, e os proponentes sabem isso muito bem.

Esta proposta é uma fraude porque foi intencionalmente feita para ser rejeitada pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização obrigatória. E quando isso acontecer, lá virão os senhores Deputados lamentar que o Tribunal Constitucional tenha rejeitado o referendo e que, por via disso, o processo legislativo tenha de continuar adiado.

Mas esta proposta tem outra originalidade bizarra. É que os proponentes não a agendaram nem a tencionavam agendar. Esta proposta foi apresentada em 22 de outubro. Mas quanto ao agendamento, o PSD fez-se esquecido. Suscitada a questão da sua discussão em Comissão, o PSD remeteu a discussão para plenário. Mas não mexeu uma palha para promover o agendamento. Teve de ser a oposição a fazê-lo.

Esta proposta tem pois, um primeiro objetivo: entravar a conclusão do processo legislativo da co-adoção. Custe o que custar. Mas tem um segundo objetivo, que é o de desviar as atenções da opinião pública, fazendo esquecer a tragédia social para que a política do Governo está a arrastar o país. Enquanto se discutir a realização de um suposto referendo sobre algo que não está em discussão, não se discute o desemprego, os cortes de salários e de pensões, a necessidade indeclinável de demitir este Governo e romper com esta política.

Esta proposta é uma manobra de diversão e nem merecia ser levada a sério. Mas ainda assim vamos tomá-la a sério, para dizer com toda a clareza que consideramos inaceitável que as opções legislativas sobre direitos de minorias sejam submetidas a referendo. Usar o referendo como meio de chicana política para que os Deputados eleitos não tenham que assumir a responsabilidade pelas suas decisões em matéria de direitos fundamentais é um expediente que só contribui para o descrédito da atividade política.

Não nos digam que querem referendar a co-adoção porque isso não constava do programa eleitoral do PSD, porque os cortes nos salários, os cortes nas pensões e o aumento dos impostos também não constavam do programa eleitoral do PSD.

Os senhores não têm coragem para assumir uma posição sobre a co-adoção, mas já não lhes falta a coragem para cortar salários e pensões de 600 euros mensais. Que estranhos critérios os vossos e que triste espetáculo que os senhores dão perante o país.

Disse.

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