"Imperialismo divide para reinar"

Entrevista com Khaled Hadadeh,Secretário-Geral do Partido Comunista Libanês
Avante Edição N.º 1770, 01-11-2007

O Líbano atravessa uma das mais graves crises políticas da sua curta história. A razão fundamental é a falência do modelo de regime confessional do Estado, explicou ao Avante! Khaled Hadadeh, secretário-geral do Partido Comunista Libanês em entrevista concedida ao nosso jornal durante a última Festa do Avante!.
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O Líbano é governado por um regime político que podemos classificar como de repartição confessional do poder. Este tipo de sistema deixa o país vulnerável às ingerências exteriores, coloca-nos num estado de constante precariedade. Isto é, o Líbano tem de afastar a instabilidade sobre o seu próprio regime político de cada vez que há um novo conflito no Médio Oriente.
Quando há 15 anos, na sequência da guerra civil de 1982, foi firmado um acordo entre os EUA, a Arábia Saudita e a Síria, o Líbano viveu uma relativa pacificação.
Depois da invasão e ocupação norte-americana do Iraque, em 2003, toda a região voltou a um patamar de tensão extremamente elevado, e, obviamente, sendo o Líbano um regime precário, voltou a ser um dos países mais sensíveis às alterações verificadas.
O acordo entre a Síria e os EUA terminou, mas os norte-americanos mantêm o apoio às forças políticas confessionais, promovendo inclusivamente manifestações no país, as quais, é claro, veiculam os seus interesses políticos e geoestratégicos.

É nessa conjuntura instável e de guerra que se dá o assassinato do primeiro-ministro Rafic Hariri?

É precisamente nesse período que ocorre o atentado contra o então primeiro-ministro Rafic Hariri. O nosso partido, apesar das diferenças políticas profundas que mantinha com Hariri, condenou e condena esse tipo de acções criminosas.
Importa, no entanto, frisar que o atentado foi explorado pelos EUA, quer no interior, quer no exterior do Líbano. Usaram-no como instrumento para forçar a aplicação da resolução 1559 do Conselho de Segurança da ONU, onde se intimava as tropas sírias a abandonar o país.
Tal resolução foi particularmente perigosa porque internacionalizou novamente a vida política do Líbano, desviando as atenções sobre o Iraque.
As diferenças políticas e de projecto das várias forças e partidos existentes na sociedade libanesa passaram a estar na agenda internacional, primeiro passo para a ingerência estrangeira nas questões internas.

Então considera que o reacender do conflito libanês serviu sobretudo para desviar atenções sobre a resistência crescente no Iraque?

Quando no mundo e em todo o Médio Oriente aumentou a contestação aos EUA e à ocupação do Iraque, Washington usou Israel para fazer aplicar as decisões da ONU sobre o Líbano. Foi o que se passou em Julho de 2006.
Alguns políticos e os próprios jornalistas israelitas admitem que a decisão de atacar o Líbano, invadir e bombardear o país, não foi do governo de Ehud Olmert e das chefias militares israelitas, mas dos EUA.
A captura dos dois soldados no Sul do Líbano foi simplesmente uma oportunidade para desencadearem a guerra. Foi uma manobra que serviu para reabrir um conflito que pudesse ocultar – e em certa medida até pensavam poder justificar – o que se estava a passar no Iraque.

Movimentações de massas e unidade

Na sequência da guerra, registaram-se fortes movimentações de massas no Líbano. O parlamento esteve cercado durante meses. Quais eram as reivindicações?

Mesmo tendo existido tudo isso, não podemos esquecer que uma parte importante das comunidades de base confessional estiveram ao lado do governo. Digamos que no Líbano ocorreu um tipo particular de manifestações políticas de massas.
O cenário é este: de um lado temos a Aliança 14 de Março, as forças que suportam o governo, onde se incluem partidos confessionais das comunidades drusa e cristã, apoiados pelos EUA e pela Arábia Saudita.
Na Aliança 8 de Março temos o Hezbollah, os xiitas, e uma pequena parte da comunidade cristã.
Este é também um pouco a história dos conflitos em todo o Médio Oriente. Os EUA querem mascarar a luta entre israelitas e árabes em torno da causa palestiniana substituindo-a por um novo tipo de confrontação entre xiitas e sunitas, ou entre árabes e persas.

O objectivo claro do imperialismo é semear divisões e divergências não apenas para enfraquecerem as forças que se lhes podem opor no domínio da região, mas também para aniquilar a unidade dos povos árabes em torno da causa palestiniana.

Mas na contestação ao governo de Fouad Siniora convergiram diversas forças políticas, colocando a tónica na natureza de classe do regime libanês…

A burguesia libanesa utilizou sempre a divisão confessional para camuflar o verdadeiro conflito social, para ocultar o cerne da luta de classes. Mas é preciso não esquecer que essa diferença de crenças é uma poderosa base de clivagem.
Por exemplo, os operários sunitas estão convencidos de que o programa neoliberal do primeiro-ministro Fouad Siniora é bom para eles. Nesse contexto, é preciso fazer um esforço enorme para convencer um trabalhador sunita de que ele é como os demais trabalhadores, religião à parte.
No Líbano, cada comunidade de base confessional tem, resumidamente, uma táctica e um conjunto de estruturas. Todos têm escolas, imprensa e, claro está, o respectivo partido político.
A estrutura mais fraca de todas é mesmo a do Estado central.

Que trabalho faz então o Partido Comunista Libanês para promover a unidade entre os trabalhadores das várias comunidades?

A posição do PC Libanês é de oposição ao regime e ao governo, mas não temos exactamente a mesma postura que as forças confessionais. Temos uma posição independente delas.
Julgamos que a oposição necessita de um programa geral que vise a natureza do regime libanês e que tem que incluir três eixos fundamentais.
O eixo nacional, contra a ocupação e as agressões, sobretudo as israelitas; o eixo das reformas políticas, único caminho para a desconfessionalização do Estado, tornando-o laico e dotado de leis eleitorais verdadeiramente democráticas; e, por último, o social e económico, que é a defesa dos trabalhadores libaneses.
Nós, comunistas, única força que congrega militantes de todas as confissões e crenças, organizamos manifestações que exigem reformas políticas e contra o plano neoliberal aplicado por Siniora.

Quais são os problemas sociais mais sentidos no Líbano?

O desemprego, as centenas de milhares de cidadãos obrigados a emigrar porque não têm condições de vida dignas.
O Líbano tem cerca de quatro milhões de habitantes, mas os libaneses na diáspora são cerca de 15 milhões.
Além disso, o que mantém o Líbano são as ajudas financeiras de natureza política. O que chamamos de dinheiro político. São as ajudas da Arábia Saudita para os sunitas e a Aliança 14 de Março, e as reservas do Irão para os xiitas. Só isso torna possível a manutenção das estruturas num nível mínimo.
O turismo e a banca são os principais sectores económicos, mas cada vez empregam menos libaneses porque os trabalhadores imigrantes são muito mais baratos para o capital.

Resistir para vencer

O ataque israelita contra o Líbano deixou marcas profundas em todo o país, mas o povo ofereceu forte resistência. Como é que tal se processou?

Eles bombardearam todo o país. Casas, pontes, infra-estruturas, estradas, tudo, bombardearam tudo.
Nós, PC Libanês, temos 14 mártires dessa guerra, 14 militantes comunistas que resistiram às tropas israelitas apesar de não termos praticamente armas. Ou melhor, as que temos são muito velhas, são ainda do tempo da guerra civil de 1982.
Não obstante a falta de meios, nós, comunistas, apelámos e levámos à prática a resistência à invasão israelita, embora a esmagadora maioria dos grupos que a compunham estarem ligados a forças de natureza confessional, nomeadamente os xiitas.
Para nós, o fundamental era dar combate aos atacantes, muito embora, sublinho, tenhamos diferenças de fundo, ideológicas, por exemplo com o Hezbollah.
Sempre assim foi e isso nunca impediu os comunistas de afrontarem as sucessivos campanhas bélicas de Israel.
Então nesse contexto de guerra houve uma unidade entre as forças que se opunham à invasão?

Não podemos falar de uma aliança. O que houve foi a convergência, limitada, de forças na resistência ao agressor. O cenário muda completamente quando tratamos de questões políticas internas do Líbano.
Quer o Hezbollah quer as restantes forças políticas confessionais libanesas preferem manter o regime vigente, ao contrário do que nós pensamos.
Mesmo que a resistência a Israel volte a ter sucesso num futuro conflito, consideramos que não é possível alcançar uma vitória, alcançar a estabilidade política do nosso país sem que se efectuem profundas reformas democráticas.
Resistimos e vencemos, é certo, mas continuamos divididos quanto à natureza dessa vitória, e nesse quadro não é possível avançar.
Digamos que o povo construiu a sua própria resistência, substituindo o Estado. Desde os anos 60 que temos duas organizações de resistência ligadas ao Partido Comunista Libanês. Durante a ocupação israelita, em 1982, lançamos uma frente nacional de resistência e só depois surgiram outras forças similares, como o Hezbollah.
O Estado nunca se opôs a nenhuma acção invasora de Israel.

E o programa de ajuda militar norte-americano ao Líbano, como o encaram?

O povo libanês está permanentemente dividido e os EUA são contra o armamento do nosso exército, consideramos nós.
O apoio que dão não pode ser usado como bem queremos. Os norte-americanos colocam condições, como por exemplo, que o exército altere a sua conduta política no que diz respeito ao apoio à resistência contra Israel.
Eu não ponho de parte que os EUA tenham um plano de implementação de um exército sunita no Líbano que combata o Hezzbollah xiita. No fundo, dividem as forças importantes na resistência contra Israel e na defesa dos direitos do povo palestiniano.

Acha que a resolução da questão palestiniana é a chave da resolução dos problemas do Líbano?

Penso que a questão central no Médio Oriente é a existência de um Estado palestiniano, questão que não é de agora, tem muitas décadas e motivou diversos conflitos na região.
Porque razão ainda não foi possível estabelecer um Estado soberano para o povo palestiniano? Bem, desde sempre a questão central dos países imperialistas é a preservação de Israel como a maior potência militar na região, como um país capaz de impor, pela força ou pela ameaça, aos vizinhos as orientações políticas das potências capitalistas, as quais, para o Médio Oriente, estão directamente ligadas ao acesso ao petróleo.
É por isto que não se resolve a questão palestiniana.

A questão presidencial

Nas últimas semanas, um dos temas centrais da política libanesa tem sido a eleição do presidente da república. A questão volta a motivar uma acesa luta entre partidários do governo e oposição. O prazo termina a 25 de Novembro e se até lá não for possível alcançar um acordo quanto ao novo chefe de Estado, o Líbano pode voltar a mergulhar num conflito interno de consequências imprevisíveis.

Na entrevista ao Avante!, Khaled Hadadeh disse-nos, quase premonitoriamente, que a eleição do próximo presidente libanês está directamente relacionada com os interesses de Washington na região.
«Se aos EUA interessar uma acalmia no Médio Oriente, então pode ser que consigamos eleger um presidente, caso contrario, se der mais jeito inflamar o Médio Oriente, então perante tamanha vulnerabilidade do Líbano, pode até suceder termos dois governos e dois presidentes da república. E talvez mesmo uma guerra civil entre comunidades alinhadas em campos opostos», concluiu

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