O crescente interesse por África do G8 e das suas principais potências regionais, os Estados Unidos e a União Europeia, faz parte de uma «nova vaga» da ofensiva imperialista de progressiva recolonização da periferia, como resposta à crise estrutural que o sistema capitalista atravessa a nível mundial. Faz parte da necessidade cada vez maior de obtenção de matérias-primas por parte das grandes potências imperialistas e do grande capital multinacional, das quais são cada vez mais dependentes, nomeadamente para «alimentar» a acumulação de capital e o seu complexo militar-industrial.
A actual «cavalgada» para África enquadra-se neste propósito. Expandir mercados para uma área da periferia do sistema relativamente esquecida e controlar os importantes recursos naturais e energéticos – minerais e metais, petróleo e gás, água e solos, assim como matérias-primas agrícolas para agro-indústria do centro, garantindo a sua canalização para as grandes potências imperialistas. Estima-se que se encontrem no continente africano 30% das reservas mundiais de minerais e metais (ainda não exploradas), mais de 10% das reservas de petróleo e cerca de 8% das reservas de gás.
Este «despertar» do interesse por África nos últimos anos foi acompanhado por um reforço da presença militar das potências imperialistas em África, nomeadamente dos Estados Unidos. A par de uma crescente exportação de capitais para o continente, onde o total dos fluxos de capitais privados líquidos aumentou 26 vezes face a 2000 e o investimento directo estrangeiro triplicou.
Façamos um breve retrato da situação económica e social das últimas décadas. África teve uma taxa de crescimento média anual de 3% entre 1980 e 2006, mas o seu peso no produto mundial reduziu-se de 3,8% na década de setenta para 3,3%, quase metade da sua população encontra-se abaixo do limiar da pobreza (44%) e tem sido o continente com maior concentração de países que tiveram uma regressão no índice de desenvolvimento humano.
É de salientar, nomeadamente no que toca à África Subsariana, a regressão da riqueza por habitante na década de oitenta e noventa. A riqueza por habitante face às outras regiões do mundo tem vindo a divergir de década para década de forma continuada, sobretudo com os países capitalistas mais desenvolvidos. Ou seja, caso estes tivessem um crescimento económico 0% e África mantivesse a taxa de crescimento actual, levaria cerca de 235 anos a convergir com a média destes países.
A pilhagem, a manutenção do subdesenvolvimento e da dependência, foram sempre garantidas pelo sistema capitalista através do repatriamento dos lucros das suas multinacionais, do comércio desigual, da «sangria» de recursos que constitui a dívida externa e o peso do seu serviço e, como não podia deixar de ser, pela força das armas.
Apesar das disparidades existentes nos 50 países que constituem o continente africano, existem traços comuns relevantes, como a dependência das exportações numa ou num número reduzido de matérias-primas ou a falta de diversificação económica, com uma forte concentração na agricultura, no sector extractivo e energético e no turismo, a maior parte das vezes sobre o domínio do capital estrangeiro. A promoção de um modelo exportador e a liberalização progressiva do comércio mundial, no âmbito da OMC, da integração regional ou de acordos comerciais bilaterais, garantem que a dependência se agrava, com os países a desviarem recursos essenciais ao seu desenvolvimento e a não aproveitarem cabalmente o «valor acrescentado» que podia advir dos seus recursos naturais.
A agricultura é disto um exemplo gritante. Se tivermos em conta África, com excepção da África do Sul, vemos que o continente é um importador líquido de bens agrícolas, apesar do sector agrícola empregar cerca de 70% da população e representar em média cerca de 30% do PIB. África importa bens alimentares essenciais - cereais, carne, leite e, mesmo, frutas e hortaliças do centro do sistema capitalista e exporta sobretudo produtos agrícolas para a agro-indústria do centro, como cacau, café e algodão. Ou seja, África não desenvolve as suas capacidades endógenas para exportar produtos não essenciais, com preços voláteis, dominados na sua fileira pelo capital das grandes potências imperialistas e cotados nos seus mercados financeiros, em troca de bens alimentares de primeira necessidade e de maior valor acrescentado. Este modelo agrava a dependência alimentar de África, pondo em causa a sua soberania alimentar. Hoje, as potências imperialistas vêem em África um território para deslocalizar a sua produção de «agro-combustíveis», para satisfação das suas necessidades energéticas, o que não só agravaria ainda mais a dependência alimentar do continente africano, como deixaria os custos sociais e ambientais de tal opção para serem pagos pelos países africanos.
Comércio desigual, dependência, subdesenvolvimento – é este o modelo que a OMC pretende manter, assim como o FMI com os seus programas estruturais ou o Banco Mundial com as suas opções de financiamento ao «desenvolvimento». Hoje, uma parte da ajuda oficial ao desenvolvimento do centro à periferia, nomeadamente, as ditas ajudas ao comércio, visa sustentar este modelo. É de salientar que o continente africano como um todo apresentou na década de oitenta e noventa, um défice comercial persistente.
Contudo, é a dívida externa que continua a representar a principal «sangria» de recursos da periferia e um dos maiores constrangimentos ao seu desenvolvimento endógeno. Entre 1980 e 2006, em média 6% do PIB e 22% do valor das exportações de África foram para o serviço da dívida. África pagou no total cerca de 707 mil milhões de dólares, ou seja, quase 7 vezes o valor da sua dívida externa em 1980, dos quais cerca de 308 mil milhões de dólares em juros, ou seja, três vezes mais que a dívida externa em 1980. Contudo, a sua dívida externa aumentou cerca de 2,4 vezes entre 1980 e 2006, de 104 mil milhões de dólares para 247.
A dívida externa tem vindo a aumentar de década para década, representando em média, entre 1980 e 2006, 55% do PIB e 199% do valor das exportações de África. A dívida externa auto-sustenta a sobre-exploração da periferia do sistema capitalista e mantém a natureza das relações com os países do «Norte». É de sublinhar que parte da dívida externa tem se transformado em dívida interna (muitas vezes «pública»).
Os números mostram que África já pagou a sua dívida e que a anulação imediata da dívida, sem condicionantes, é um imperativo para parar a «extorsão», que é um dos motores do agravamento da miséria de amplas camadas da população e um constrangimento a um projecto de desenvolvimento endógeno para os países africanos.
É no contexto da ofensiva imperialista, que temos de enquadrar os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (Setembro 2000), o consenso saído da Conferência de Monterrey sobre o financiamento ao desenvolvimento (Março 2002), e, mais recentemente, os compromissos da cimeira do G8 de Gleneagles (Julho 2005). Ou seja, utilizar as ajudas oficiais ao «desenvolvimento» e a dívida como instrumentos, a par dos meios militares, para garantir e controlar as fontes de matérias-primas, criar as condições institucionais para a exportação de capitais e a entrada das grandes multinacionais, e, promover, quer a liberalização de bens, serviços e capitais, quer a integração regional no continente africano. E claro, harmonizar as formas de «ajuda» das grandes potências imperialistas, em linha com a concertação capitalista de «assalto» a África, tendo em conta os seus interesses face à presença paulatina de outras potências emergentes, como a China e a Índia.
Este é o real objectivo, mais ou menos explicitado, do programa de ajudas AGOA dos Estados Unidos ou da iniciativa da União Europeia “tudo menos armas” ou dos seus acordos de parceria com África em negociação. E mesmo de instrumentos como o NEPAD ao nível da União Africana.
Vejamos um exemplo. O pacote saído de Gleneagles para África visava cancelar a dívida a 16 países altamente endividados ao FMI, IDA e ADF e aumentar as ajudas oficiais ao «desenvolvimento», incluindo o alívio da dívida, para os 25 mil milhões de dólares ano até 2010. Ora, só a dívida externa africana era em 2005 de 295,5 mil milhões de dólares, ou seja, a «ajuda» representava cerca de 8% da dívida externa e nem chegava para pagar o serviço da dívida desse ano - uma cobertura de 69%. O próprio relatório económico de 2007 sobre África das Nações Unidas, considerava que os montantes de «perdão»/redução da dívida e as «ajudas» como muito insuficientes e, mesmo assim, os compromissos assumidos não estão a ser cabalmente cumpridos.
Mas a questão fundamental não é essa. Para receber o «perdão» estes países terão de ter o estatuto de altamente endividados o que implica determinadas condições políticas/económicas, o mesmo se passa para as «ajudas» dependentes do «bom comportamento dos receptores», no sentido de eliminar qualquer obstáculo ao investimento/iniciativa privada externa. Ou seja, hoje a questão fundamental não é (só) condicionar as ajudas ao desenvolvimento à compra de produtos dos países dadores – que ainda representa cerca de 1/3 da totalidade das ajudas oficiais ao «desenvolvimento», mas instituir nos países da periferia do sistema capitalista os instrumentos – as instituições - de desenvolvimento do Estado burguês e da sua super-estrutura ideológica – garantir a reprodução do sistema, o que passa por garantir os princípios do chamado «consenso de Washington»: liberalização no sentido do comércio livre e da abertura dos mercados, estabilidade dos preços no sentido da moderação salarial, desregulamentação do trabalho e dos restantes mercados, e consolidação fiscal no sentido do ataque ao papel do Estado e ao sector público. Passa por promover a privatização dos serviços públicos e de bens públicos, como a água. Passa pela garantia de contratos de concessão de extracção de recursos naturais/energéticos às grandes multinacionais. Passa pela independência dos Banco Centrais para melhor seguir as políticas de austeridade e os programas de ajustamento do FMI/Banco Mundial e a consolidação dos mercados financeiros e da liberalização dos capitais. Mas não só. Numa situação de crise estrutural do sistema, esta «ajuda» consolida a expansão, ou melhor, o aproveitamento de novos mercados pelo centro e potencia novas oportunidades de negócio para as grandes multinacionais.
Por isso, a questão central reside nas relações imperialistas entre centro e periferia. O sistema capitalista vigente, assente na promoção das exportações e na imposição de uma determinada divisão internacional de trabalho, permite não só rentabilizar o capital exportado do seu centro, mas também servir os interesses geoestratégicos das principais potências imperialistas. As divisas obtidas pelos países da periferia do sistema, com base na exportação de matérias-primas que obedecem a preços mundiais cotados em dólares, são insuficientes para pagar o serviço da dívida e responder às necessidades das populações, para além de alimentarem as burguesias locais compradoras. Esta periferia serve como ponto de fornecimento de matérias-primas e de mão-de-obra barata, como centro de re-exportação sobre o domínio estratégico das grandes empresas multinacionais e das grandes potências imperialistas.
É por isso que não podemos pretender atacar os problemas do desenvolvimento sem colocar em questão o imperialismo. A luta pelo desenvolvimento, a luta dos trabalhadores dos países em vias de desenvolvimento, nomeadamente dos africanos, tem de ser também uma luta pela superação do sistema capitalista e pela instauração de modelos de desenvolvimento endógenos, democráticos e patrióticos.
O resto são palavras e essas leva-as o vento.