Áudio
É o dever de não deixar esquecer Militão Ribeiro que aqui nos traz. O dever de honrar quem honrou a luta pela liberdade do nosso povo com a sua própria vida. O dever de dignificar quem manteve a sua dignidade de combatente e revolucionário perante a barbárie. O dever de enaltecer a vida e a actividade do militante comunista, do mártir da resistência antifascista que, pela sua coerência, heroísmo e dedicação à causa libertadora dos trabalhadores, se projecta como um exemplo de revolucionário convicto e combativo que anima a nossa intervenção nas batalhas do presente e do futuro. O dever de não deixar que se olvide o homem que em toda a sua vida e em todas as circunstâncias lutou pelos valores e ideais da justiça e igualdade social, enfrentando com inexcedível coragem e firmeza as maiores provações a que um ser humano pode ser sujeito e que a impressiva imagem do seu cadáver jamais pode negar.
O que aqui nos trás é o dever de não deixar que se esfumem na espessura do tempo e da memória os crimes hediondos do fascismo. Não deixar esquecer que o fascismo existiu, que durante 48 anos oprimiu o nosso povo com todo o cortejo de crimes e que a luta pela liberdade exigiu enormes sacrifícios a muitos portugueses, em particular aos comunistas, os lutadores mais consequentes e abnegados, os membros de uma força que não capitulou perante o terror fascista, a única força que o fascismo nunca conseguiu silenciar e que, por isso, pagou um pesado tributo de uma dura e prolongada vida clandestina: prisões e mortes.
Evocamos hoje Militão Ribeiro, mais uma vez, tal como o fizemos em momentos altos da vida do Partido, com esta singela homenagem e com a edição de uma brochura dedicada à sua vida e à sua actividade, neste momento em que passam 60 anos que nos deixou para fazer parte do extenso e tenebroso rol dos crimes do fascismo.
Militão Ribeiro morreu a 2 de Janeiro de 1950, metódica e friamente assassinado na Cadeia Penitenciária de Lisboa, quando caía o pano de uma década de intensa e empolgante luta em todas as frentes contra o regime fascista de Salazar, nas quais activamente participou como destacado dirigente do Partido Comunista Português. Tinha nascido há 54 anos, na transmontana freguesia de Murça, no seio daquele mar de pedra e montanhas de onde havia de partir cedo, aos 13 anos, para transpor um outro mar, agora de águas profundas, ao encontro de uma terra em direcção à qual muitos dos seus conterrâneos fizeram caminho, à procura do ganha-pão que a sua terra aprisionada lhes negava. Foi o Brasil do “Cavaleiro da Esperança” que encontrou e abraçou. Levava consigo a vivência e a lembrança da dureza da vida de uma família camponesa humilde, que trocou pela não menos difícil vida de operário têxtil nessas longínquas paragens. Foi na fábrica que, aos 15 anos, deu os primeiros passos de um consistente e corajoso caminho de dedicação à causa da classe operária, dos trabalhadores e dos povos, pela democracia e o socialismo.
Ali tomou consciência e o partido da luta que o fez militante activo do movimento operário brasileiro e do Partido Comunista do Brasil. Foi dirigente sindical da sua classe, na sequência da sua participação nas lutas dos trabalhadores brasileiros, para depois dar o seu contributo à actividade revolucionária do Partido Comunista, do qual teve papel destacado. Tal como haveria de acontecer mais tarde no seu próprio país, a sua actividade revolucionária no Brasil não passou despercebida e tornou-se um embaraço para a ditadura de Getúlio Vargas. Declarado “indesejável” é expulso e colocado sob prisão num porão de um navio que o havia de trazer para Lisboa, onde chegou no início dos anos trinta para retomar o mesmo combate que o levou, nos verdes anos da sua juventude, à luta pela libertação das classes e camadas mais exploradas e oprimidas e à sua adesão aos nobres ideais comunistas, agora como militante do Partido Comunista Português.
Viviam-se, então, também deste lado do Atlântico tempos negros e difíceis. No plano internacional, o fascismo tinha tomado o poder em vários países da Europa jorrando ódio contra o movimento operário e, em 1933, haveria também de tomar o poder na Alemanha o partido Nazi de Hitler, acentuando a perspectiva sombria que em breve se iria abater sobre os povos da Europa. Em Portugal, o fascismo salazarista desenvolvia a perseguição policial às organizações democráticas e sindicais, com os métodos copiados do fascismo italiano de Mussolini. Os anos trinta do século XX, que Militão conhece a partir da sua chegada a Lisboa, são os anos de consolidação do regime que sistematicamente aperfeiçoa e multiplica os instrumentos repressivos com a criação da polícia política e dos tribunais militares especiais.
Militão Ribeiro volta à região aonde nasceu, onde se empenha na organização dos camponeses da região transmontana e em actividades de apoio às vítimas do fascismo como membro do Socorro Vermelho Internacional. Em 1932 foi alvo da primeira investida das autoridades da ditadura e da polícia política do regime e preso no Governo Civil de Vila Real. Liberto volta à luta, como sempre há-de fazer nas diversas ocasiões em que foi preso e tomar o seu lugar na linha da frente de um combate sem tréguas contra o fascismo. Em 1934, no mesmo ano que é esmagada a Revolta do 18 de Janeiro e se abate sobre o movimento operário uma enorme vaga repressiva que conduz à prisão de centenas dirigentes e activistas, Militão Ribeiro é preso no Porto, acusado de pertencer ao Socorro Vermelho Internacional.
A escala de violência assume agora uma dimensão crescente. Condenado pelo Tribunal Militar Especial a 12 meses de prisão, só será libertado cinco anos depois de ter terminado a pena. No percurso de incomensuráveis arbitrariedades, conhece não só as mais terríveis prisões da ditadura, como os tortuosos caminhos de um regime cruel que, quando se sentia ameaçado, não hesitava em recorrer à perseguição, à tortura, à prisão e ao assassinato. Do Porto para o Forte de Peniche. De Peniche para a Fortaleza de S. João Batista em Angra do Heroísmo. Desta Fortaleza nos Açores para o sinistro Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, que “inaugurou” juntamente com mais cerca uma centena e meia de presos, muitos dos quais ali perderam a vida, entre eles Bento Gonçalves, Secretário-Geral do PCP, com quem partilhou, juntamente com outros camaradas, o organismo de Direcção da Organização Prisional Comunista do Tarrafal.
Anos de cativeiro nas prisões de um regime sórdido e sem escrúpulos, onde imperava uma desumana e vil indiferença perante o sofrimento humano, particularmente neste Campo de Concentração onde imperavam os maus-tratos, a má alimentação, um clima terrível, doenças sem tratamento, trabalhos forçados, espancamentos, semanas na «frigideira» que arruinavam a saúde do mais robusto dos seres humanos. Foi aqui, nas difíceis condições do sinistro campo prisional, que se projectou não uma saída com vida ao encontro de uma vida normal, mas a reorganização de um Partido necessário e imprescindível que havia sofrido pesadas baixas e que se tornava imperioso por de pé em toda a sua plenitude de acção e intervenção no país. Foi aqui que se forjou esse compromisso entre homens de honra e de uma imensa coragem, entre os quais está Militão Ribeiro que, liberto em Junho de 1940, retoma de imediato a actividade partidária fazendo parte do núcleo de camaradas que, acabados de sair da prisão, se lançam na tarefa da reorganização do PCP dos anos 40/41.
Militão Ribeiro voltará a ser condenado em 1944 e novamente enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal. Neste espaço de tempo que medeia as duas prisões, um notável trabalho tinha sido realizado e que haveria de criar as condições para transformar o PCP num grande partido nacional, vanguarda assumida e reconhecida pela classe operária portuguesa, pelas forças democráticas e antifascistas e que teve, a partir desse período, um papel determinante no desenvolvimento da luta dos trabalhadores e das massas populares e na unidade das forças democráticas. Um trabalho extraordinário que avançava indiferente às terríveis ameaças que pairavam sobre a actividade e a vida dos revolucionários desse tempo, particularmente dos comunistas, numa Europa crescentemente ocupada pelo contínuo avanço das tropas hitlerianas, dos seus aliados e cúmplices que em todo lado faziam vingar a lei da morte. Milhares e milhares de comunistas estavam presos, alguns dos mais destacados dirigentes do Movimento Comunista foram mortos e a própria União Soviética parecia incapaz de travar o passo à avassaladora ofensiva nazi.
Vivia-se um tempo em que os tiranos faziam planos para mil anos, mas eram incapazes de derrotar a força das convicções e destruir a confiança na justeza dos ideias revolucionários de homens da têmpera de Militão! Homens que se entregaram, com uma coragem inaudita, a tecer a rede por onde corria a luta e a transformar em acção, as palavras do poeta que proclamavam com a gravidade dos tenebrosos tempos que se abatiam sobre o movimento operário e os povos: “Quem está vivo nunca diga nunca. O que é seguro não é seguro. As coisas não continuarão a ser como são. Depois de falarem os dominantes, falarão os dominados. Quem é esmagado que se levante! O que está perdido, lute!”.
A década de quarenta será de grandes e vigorosas lutas e de grande sucesso no reforço, na influência e no prestígio do PCP. Chegaram até nós os testemunhos que nos falam da disponibilidade revolucionária de Militão Ribeiro, do empenho, do desejo de aprender, da verticalidade na autocrítica, do entusiasmo e dos sacrifícios de toda a ordem que foi capaz de fazer, contribuindo para reerguer o Partido, criar novas organizações e relançar a publicação do “Avante!”. Os anos que se seguem são de um impetuoso desenvolvimento da luta de massas e de avanços, como até então não nunca se alcançara na unidade e na luta das forças democráticas e antifascistas assentes no MUNAF e no MUD. Anos de ofensiva contra a ditadura fascista e anos de grandes lutas da classe operária e dos trabalhadores portugueses. São marcos assinaláveis desses anos o movimento grevista de 1942, as grandes greves de Julho/Agosto de 1943 em Lisboa, na Margem Sul do Tejo e em S. João da Madeira, as movimentações populares e as grandes greves de 8 e 9 de Maio de 1944, mobilizando dezenas de milhar de trabalhadores, as grandes manifestações por todo o país para assinalar o fim da II Guerra Mundial, que assumiram o carácter de luta contra o fascismo, pela libertação dos presos políticos, por eleições livres, pela liberdade e pela democracia.
Militão Ribeiro, preso no Tarrafal, beneficiará de uma amnistia decretada pelo fim da guerra, por um regime que manobra para sobreviver. Em liberdade novamente em 1945, retoma de imediato a actividade clandestina, integrando o Secretariado com Álvaro Cunhal, Manuel Guedes e José Gregório. Prepara-se então e realiza-se o IV Congresso do PCP e o Partido continua o trabalho de alargamento da sua influência. A PIDE tinha a noção muito exacta dessa influência e da força adquirida pelo PCP. Como tinha do papel de Militão Ribeiro e em particular de Álvaro Cunhal que, no processo de reorganização, teve a capacidade de dar conteúdo ao que era linha geral e definir o que era o grande colectivo partidário.
Recomposto o regime da derrota dos seus amigos Hitler e Mussolini, não tardou a mostrar as suas garras repressivas. Em Março e Abril de 1949 desfere um golpe que atinge duramente o Partido. Militão Ribeiro é preso pela PIDE, pela quarta vez, numa casa clandestina no Luso, conjuntamente com os camaradas Álvaro Cunhal e Sofia Ferreira.
Com a saúde abalada por longos anos de prisão, Militão Ribeiro é sujeito, tal como todos os presos de Março e Abril, a um regime prisional de excepcional brutalidade, de tortura permanente e isolamento absoluto, de vigilância policial de 24 sobre 24 horas em constante provocação. A PIDE cria uma cadeia, dentro da própria cadeia, sob a sua jurisdição. Muito doente, vê recusada assistência médica. A falta de tratamento e a alimentação imprópria à grave doença de fígado que contraiu no Tarrafal, ditavam uma deliberada condenação à morte.
O agravamento dramático da sua saúde levou-o a recorrer à greve de fome, como protesto contra a falta de assistência e dieta adequada à sua doença. Não foi, porém, a greve de fome que o vitimou, mas o brutal regime prisional a que foi submetido e que a PIDE recusou sistematicamente alterar, apesar da intervenção do próprio director da cadeia.
Militão Ribeiro morreu quando estava preso na Penitenciária de Lisboa havia sete meses, vindo da cadeia da PIDE do Porto, onde foi também alvo das mais repugnantes formas de tortura. Nove meses de prisão, de sofrimentos imensos perpetrados por uma ditadura sórdida e sem escrúpulos que, cobardemente e no isolamento da clausura, mandava executar os mais abjectos actos de destruição da pessoa humana. Nas duas cartas que não foram interceptadas e que chegaram ao Partido, Militão Ribeiro dá conta de lancinantes sofrimentos e das brutais condições a que estava sujeito mas, o que sobressai das suas letras e particularmente da última carta escrita com o seu próprio sangue, é a sua inquebrantável fidelidade ao seu Partido e à sua luta e uma inabalável confiança nos trabalhadores e no povo, nos ideais do socialismo e do comunismo.
A derradeira mensagem que nos deixou é uma tocante mensagem de encorajamento e incentivo ao prosseguimento da luta: “Tenho confiança que sabereis vencer todos os obstáculos e levar o Povo à vitória. Que infelicidade a minha só aos 50 anos ter começado a trabalhar desta forma. Quantos defeitos ainda consegui corrigir em mim como homem. Felizes daqueles que vêm novos ao Partido e o encontram e trabalham assim... Fiz tudo o que pude pelo Partido, bem ou mal fui sempre julgando que fazia o melhor”.
No ano de 1950, o mesmo em que morre Militão Ribeiro, a PIDE e o fascismo assassinam igualmente José Moreira, torturado até à morte e, depois, Alfredo Lima, Carlos Pato, Gervásio da Costa e Wenceslau Ramos. Dizem que a luta pela liberdade não tem cor, mas a que passa por aqui e que Abril nos trouxe está tingida de vermelho, do sangue de heróicas gerações de revolucionários, como Militão Ribeiro. Podem os que persistem nas suas perversas revisões da história, de construção de falsos heróis ou branqueadores do fascismo, omitir e deformar o papel dos trabalhadores, da sua luta e do seu Partido, o Partido Comunista Português. Jamais deixaremos de trazer à luz do dia os exemplos dos que lutando ao lado e com o seu povo fizeram rodar a verdadeira roda da História.
Militão Ribeiro tinha consciência que ia morrer! Mas com a convicção que o Partido ia continuar a viver, com outros a ocupar o lugar na trincheira de combate!
Honremos Militão Ribeiro e continuemos o combate!
Documentos Relacionados
Brochura «Militão Ribeiro» em PDF