Intervenção de

Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa NacionalIntervenção do Deputado António Filip

Senhor Presidente, Senhores Deputados, Senhores Membros do Governo,

Ao iniciar a nossa participação neste debate sobre as Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, a que atribuímos grande importância, não podemos deixar de assinalar as circunstâncias insólitas em que ele se realiza.

A alteração do Conceito Estratégico de Defesa Nacional consta do Programa do Governo como um objectivo prioritário da política de Defesa Nacional, o que pressupõe, nos termos da lei, a realização de um debate parlamentar sobre as Grandes Opções enformadoras desse Conceito.

Em 16 de Julho deste ano, o PCP apresentou um texto de Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, como contribuição para o presente debate. Temos de igual modo conhecimento de que o Grupo Parlamentar do PS apresentou no passado dia 12 deste mês um documento com idêntico propósito.

Quanto ao Governo, sabemos da publicitação de um documento designado por Bases para um Conceito Estratégico de Defesa Nacional que foi objecto de alguma discussão pública – e que serviu inclusivamente de tema para algumas audições realizadas pela Comissão de Defesa Nacional – mas quanto ao Documento de Grandes Opções que serve de base a este debate, só ontem, dia 19 de Novembro, é que foi entregue a cada um dos grupos parlamentares, não tendo sido, como é óbvio, objecto de qualquer publicação. Ou seja: Apesar deste debate ter sido agendado com uma antecedência razoável, aliás a pedido do Governo, foi precisamente o Governo o último a fazer o trabalho de casa. E não é concebível que o documento governamental de Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, sobre o qual a Assembleia da República tem obrigatoriamente de se pronunciar, só tenha sido entregue na véspera do respectivo debate. Trata-se de uma desconsideração do papel deste órgão de soberania que não pode passar sem um veemente protesto da nossa parte.

Senhor Presidente,

O PCP, dando cumprimento a um dos seus compromissos eleitorais, apresentou há quatro meses um documento para discussão sobre as Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, assumindo assim as suas responsabilidades perante o País e dando o seu empenhado contributo para a promoção de um amplo debate nacional sobre esta matéria.

O debate sobre as Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional é reconhecidamente importante. É deste que decorre a definição do Conceito Estratégico Militar, do qual, por sua vez, dependem a definição da missão genérica e das missões específicas das Forças Armadas, bem como a definição dos sistemas de forças e dispositivo, em funções dos quais se devem traçar as perspectivas e as prioridades em matéria de reequipamento, através da Lei de Programação Militar. Mas entende também o PCP que o debate sobre a Defesa Nacional não se pode restringir às questões estritamente relacionadas com a Defesa Militar e as Forças Armadas. É uma questão que tem que ver com as questões essenciais da nossa soberania e independência nacionais e com a nossa capacidade de autodeterminação e de afirmação de uma voz própria e autónoma no plano internacional.

O PCP entende que o Conceito Estratégico de Defesa Nacional em vigor carece de urgente reformulação, na medida em que este não reflecte, como deveria, uma estratégia assente no primado da defesa dos interesses nacionais. Não podem ser as dinâmicas e os interesses externos a determinar a condução e a definição dos objectivos nacionais. Mas no entanto, tem sido esta a estratégia seguida, com os resultados que a situação nacional nos planos económico, social, político e militar demonstram.

A estratégia global do Estado que o PCP propõe, assenta em seis traços fundamentais:

É, em primeiro lugar, uma estratégia de matriz nacional, que privilegia os interesses nacionais e os meios nacionais de os prosseguir.

É uma estratégia de coesão e solidariedade, que privilegia o fortalecimento da vontade popular por uma maior justiça social e um maior empenhamento cultural.

É uma estratégia de progresso, que privilegia a afirmação de Portugal no Mundo como uma nação em processo de desenvolvimento económico, com uma voz própria nos grandes processos estruturais, tendentes à criação de uma Nova Ordem Económica Internacional.

É uma estratégia de amizade, paz e cooperação com todos os povos, que privilegia a solução negociada de conflitos, o diálogo, a acção nas instâncias internacionais, o respeito pelo Direito Internacional, a caminho da instauração de um novo relacionamento político planetário.

É uma estratégia que visa apresentar Portugal perante o Mundo como uma nação empenhada em defender, de forma coesa e eficaz, a sua soberania e independência nacionais perante qualquer ameaça e agressão externas.

É uma estratégia que pressupõe a participação de todo o povo, uma estratégia democrática, assente no empenhamento de todos os portugueses na defesa de Portugal.

Portugal tem interesse em privilegiar e angariar aliados visando garantir a sua segurança externa. Deve por isso empenhar-se na solução dos conflitos internacionais por via pacífica e justa, e contribuir para uma cultura de paz baseada em critérios de igualdade, respeito mútuo e não ingerência.

Portugal deve empenhar-se activamente para combater a hegemonização ou instrumentalização da ONU e da OSCE pelos EUA e outras potências militares da NATO. Portugal deve rejeitar entorses ao Direito Internacional como o recentemente invocado direito de “ingerência humanitária", através do qual os EUA e outras potências liderantes da NATO procuram instrumentalizar a Comunidade Internacional, pondo-a ao serviço dos seus interesses hegemónicos.

Uma outra ordem de prioridades, relacionada com a integração europeia, diz respeito à necessidade de Portugal, como pequeno país periférico, estimular de forma muito activa os factores de coesão e identificação nacional. Portugal tem interesse em reforçar a sua identidade cultural e a presença da sua cultura e língua no mundo, em diversificar as suas relações externas, em reforçar a coesão do povo português, em assegurar o controlo de instrumentos económicos e financeiros estratégicos para o país, em garantir a formação das reservas estratégicas necessárias, em contrariar uma política externa e de defesa em que Portugal seja subalternizado e amarrado a iniciativas contrárias aos seus próprios comandos constitucionais.

Na Europa, é prioritária a participação activa nas estruturas da OSCE, tendo em vista a institucionalização duradoura de um sistema de segurança colectivo e de cooperação, mas não é do interesse de Portugal, uma integração militar estrategicamente apontada para a intervenção em outras regiões do globo. Pelo contrário, o rumo a seguir é o reforço das Nações Unidas e a disponibilização para participar em acções de manutenção de paz ou de ajuda humanitária em que a colaboração portuguesa seja solicitada.

Por outro lado, as relações com os países de língua portuguesa devem ser fortemente estimuladas e desenvolvidas, privilegiando a cooperação nas áreas ligadas ao desenvolvimento económico e social, à cultura, à defesa da língua comum e à colaboração técnico-militar.

No plano social, a elevação do nível de vida; a eliminação das manchas de pobreza e outras chagas sociais; a segurança no emprego; a protecção das camadas mais desfavorecidas; o combate às discriminações; a integração e defesa dos direitos dos imigrantes; a protecção da juventude e garantia dos seus direitos; o desenvolvimento da saúde pública e do combate à toxicodependência; o fomento da habitação social; a defesa e preservação do meio ambiente – são, entre outros, objectivos imprescindíveis para congregar as vontades dos portugueses, de forma solidária e empenhada, na prossecução dos interesses nacionais.

Também as políticas de educação, do apoio às actividades de investigação e desenvolvimento, da cultura, da defesa da língua portuguesa, do fortalecimento dos laços culturais com os países, territórios e núcleos de emigrantes que falam a nossa língua, e a existência de estações públicas de Televisão e de Rádio, dotadas de meios próprios e subordinadas a critérios de qualidade, isenção e pluralismo, devem ser entendidas como elementos de afirmação da soberania e de coesão nacional.

No plano económico e financeiro, constituem para o PCP prioridades indiscutíveis, garantir a suficiente capacidade nacional de decisão, promover o crescimento e o desenvolvimento económicos, combatendo as desigualdades sociais e regionais e a desertificação; assegurar o desenvolvimento das actividades em áreas estratégicas (como os transportes marítimo e aéreo, a energia, ou as comunicações; bem como garantir a formação de reservas estratégicas, designadamente nos planos energético e alimentar.

No entender do PCP, as Grandes Opções preconizadas pelo Governo, que só se afastam das Bases já publicitadas pela forma, não pelo conteúdo, deixam o Conceito Estratégico de Defesa Nacional completamente dependente das opções impostas pelos Estados Unidos à NATO e da evolução da Política Europeia de Segurança e Defesa, invertendo consequentemente as prioridades das Forças Armadas, cada vez mais hipotecadas pelos compromissos externos e com maiores dificuldades para cumprir as missões de real interesse nacional.

Em todo o texto de Grandes Opções elaborado pelo Governo, perpassa a ideia de que o que é bom para os Estados Unidos é necessariamente bom para Portugal. E essa é uma ideia que não aceitamos.

Por outro lado, o Conceito Estratégico de Defesa Nacional defendido pelo Governo quase restringe a Defesa Nacional à problemática da Defesa Militar e das Forças Armadas. Sem dúvida que essa vertente é muito importante. Mas não esgota, nem de longe nem de perto, todas as questões que dizem incontornavelmente respeito à Defesa Nacional.

No documento elaborado pelo Governo, problemas como os que dizem respeito à nossa independência económica, ou à defesa da nossa identidade cultural, ou ao progresso educacional e científico do nosso país, ou mesmo à nossa suficiência alimentar ou energética, ou não são praticamente abordados, ou são manifestamente mal abordados.

Veja-se o caso da educação. Para o Governo, o papel do sistema educativo no que diz respeito à Defesa Nacional esgota-se numa visão estreita assente na valorização dos “padrões de identidade nacional” e nas “obrigações de patriotismo”, sem que se perceba muito bem de que padrões ou obrigações estamos a falar, quando o que se exige do sistema educativo, do ponto de vista da Defesa Nacional, é acima de tudo a elevação dos níveis de qualificação dos nossos recursos humanos e a valorização das capacidades e qualificações dos jovens que constituem o nosso capital mais valioso.

Não pode ainda deixar de merecer um sério reparo, a confusão que se estabelece no documento governamental, entre as missões das Forças Armadas e as atribuições das Forças de Segurança. O que se prevê, é a participação das Forças Armadas na prevenção e combate a certas formas de crime organizado transnacional, especialmente o tráfico de droga, o tráfico de pessoas e as redes de imigração ilegal. Mas não se diz em parte alguma, em que condições tal participação se processa, com que limites, e qual a relação que se estabelece nessas situações entre as Forças Armadas e as entidades policiais que são responsáveis pelo combate à criminalidade.

O PCP não põe de parte – como é óbvio – que em situações em que o combate ao crime exija meios e forças que transcendam a capacidade das Forças de Segurança, estas possam recorrer à cooperação das Forças Armadas. Aliás, essa cooperação é uma realidade, e é desejável que o seja cada vez mais.

Mas o que tem de ficar muito claro no Conceito Estratégico de Defesa Nacional – e não está claro no documento do Governo – é que o combate ao crime organizado é uma atribuição primordial das Forças de Segurança, e designadamente da Polícia Judiciária, que aliás se processa sob a direcção e o controlo funcional das magistraturas, e que qualquer participação das Forças Armadas em missões de combate ao crime devem obedecer a rigorosos critérios de justificação e de proporcionalidade e não podem de forma alguma pôr em causa as competências próprias das Polícias e das Magistraturas.

Em síntese, Senhor Presidente, as Grandes Opções que o Governo aqui apresenta, contém algumas diferenças de forma em relação às Bases que foram submetidas a discussão pública. Mas mantém todos os defeitos que já constavam do seu conteúdo. Não são Opções que contribuam para a salvaguarda de valores fundamentais para a independência e a soberania nacionais e para a concretização das tarefas fundamentais do Estado em matéria de Defesa Nacional. Merecem por isso a nossa discordância.

 

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