Intervenção de Paulo Sá na Assembleia de República

Governo prepara a "Lei do Despejo" na habitação

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Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados

No passado dia 30 de Dezembro, o Governo apresentou à Assembleia da República uma proposta de revisão do regime jurídico do arrendamento urbano, dando mais um passo no caminho da liberalização do mercado de arrendamento.

Esta proposta do Governo configura mais um ataque ao direito à habitação consagrado na Constituição da República, a qual determina, de forma clara e inequívoca, que todos os portugueses têm direito a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar, cabendo ao Estado adotar uma política que assegure o estabelecimento de um sistema de rendas compatíveis com os rendimentos das famílias.

Contudo, o Governo prefere confiar no sacrossanto mercado, o qual, alegadamente, ofereceria aos portugueses «soluções de habitação mais ajustadas às suas necessidades, menos consumidoras dos seus recursos e que fomentem a sua mobilidade». Confessadamente, o objetivo do Governo é criar um «verdadeiro mercado de arrendamento» que não deixará de implicar, para milhares e milhares de famílias de baixos rendimentos, a privação do direito à habitação.

Na ausência de uma intervenção sistemática do Estado em defesa do interesse público, dominam os interesses do capital financeiro e da sua atividade especulativa no mercado imobiliário. A política de construção a custos controlados de habitação social e o apoio à autoconstrução e ao arrendamento são residuais face às necessidades do País. Perante esta situação, o Governo, em vez de implementar políticas que garantam o direito à habitação, vira-se para o mercado como se este, miraculosamente, pudesse assegurar este direito fundamental.

Na realidade, com a sua proposta, o Governo procura satisfazer os grandes interesses imobiliários e financeiros, ansiosos por se apropriarem dos bairros históricos das nossas cidades, em especial de Lisboa e do Porto, a troco de umas miseráveis indemnizações atribuídas aos arrendatários, que assim serão expulsos para periferias desqualificadas.

Sr.ª Presidente, Srs. Deputados: Na sua proposta, o Governo substitui os mecanismos de atualização faseada e controlada do valor das rendas pela negociação direta entre inquilino e senhorio, mas atribui a este último um poder desmesurado, incluindo o de, se assim o entender, despejar o inquilino de forma rápida e expedita, através de um novo procedimento especial. Esta é a característica mais marcante da proposta do Governo, à qual podemos chamar «lei do despejo».

Não menos preocupante é a criação de um Balcão Nacional do Arrendamento, que assegurará a tramitação do procedimento especial de despejo, retirando a apreciação e a decisão destas matérias da esfera dos tribunais, o que coloca em risco a salvaguarda dos direitos e garantias dos cidadãos.

Com esta «lei do despejo», apresentada pelo Governo, centenas de milhares de famílias com contratos de arrendamento habitacional com duração indeterminada, celebrados antes de 1990, serão colocadas «entre a espada e a parede»: ou aceitam a transição para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, o que implicaria a atualização das rendas para valores muito elevados e a alteração da duração do contrato para cinco anos, ou então são, pura e simplesmente, expulsas das habitações onde, em alguns casos, residem há décadas. Também os contratos celebrados entre 1990 e 2006 transitarão para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, com a agravante de a indemnização por denúncia de contrato por parte do senhorio ser reduzida para metade.

Para os arrendatários com idade superior a 65 anos ou com deficiência, o Governo não prevê a possibilidade de denúncia do contrato por parte do senhorio e consequente despejo, mas determina a atualização da renda para valores que poderão atingir, anualmente, um quinze avos do valor patrimonial tributário do imóvel, valor este que, por sua vez, irá ser atualizado em 2012.

Em muitos casos, na impossibilidade de pagar as novas rendas, não restará ao inquilino idoso ou com deficiência outra solução que não seja a de abandonar a sua habitação.

Mesmo no caso de inquilinos idosos com reduzidos rendimentos, a proposta de lei do Governo é implacável: a renda passa a corresponder a 25% do rendimento anual bruto corrigido por um período de cinco anos, após o qual poderá ser livremente atualizada pelo senhorio. A proteção, neste caso, seria apenas assegurada por um eventual subsídio de renda, que a proposta de lei do Governo remete para as calendas gregas.

Num tempo em que se agravam as condições de vida para a esmagadora maioria dos portugueses, com a redução dos salários e das pensões, a liberalização dos despedimentos, a proliferação do desemprego e da precariedade laboral, e a diminuição dos apoios sociais, o Governo, na sua proposta, prevê a possibilidade de denúncia do contrato por parte do senhorio e consequente despejo, se o inquilino, quatro vezes por ano, se atrasar oito dias no pagamento da renda. Esta é uma medida brutal, que demonstra por parte do Governo e da maioria que o suporta uma total insensibilidade social e um desprezo absoluto pelo direito à habitação.

Este Governo, que se prepara para desencadear um brutal ataque ao direito à habitação, criando mecanismos que permitirão expulsar das suas casas milhares e milhares de famílias, de idosos, de pessoas com deficiência, de desempregados, de pessoas com baixos rendimentos, é o mesmo Governo que brinda o grande capital económico e financeiro com ajudas milionárias, e lhe permite a fuga às suas obrigações fiscais através da deslocalização das suas sedes para paraísos fiscais ou países com regimes fiscais mais favoráveis, como aconteceu recentemente com a Jerónimo Martins.

O ataque desencadeado pelo Governo contra o direito à habitação é mais uma consequência do pacto de agressão, assinado pelo PSD, pelo PS e pelo CDS, e com o apoio do Presidente da República, cujos funestos efeitos se abatem de forma implacável sobre os trabalhadores e o povo português. Mais uma vez, reafirmamos a necessidade de derrotar este pacto de agressão, substituindo a atual política de afundamento do País por uma política patriótica e de esquerda que assegure a todos os portugueses os direitos consagrados na Constituição da República e, em particular, o direito à habitação.

(...)
Perguntas

Sr.ª Presidente,
Sr. Deputado Ramos Preto, agradeço-lhe as questões colocadas.

Sr. Deputado, efetivamente, entendemos que não é através de uma «lei do despejo» — e esta é, de facto, uma lei do despejo, é a sua característica principal — que se resolve o problema da necessidade de fogos para arrendar, em Portugal.

Existem muitos fogos devolutos, resultado da especulação financeira ao longo dos últimos anos, pelo que, obviamente, o Governo poderia, em alternativa a estas políticas de despejo, promover uma política que colocasse no mercado estes fogos devolutos, o que iria certamente dinamizar o mercado de arrendamento.

Assim sendo, a nossa posição é de repúdio total desta política de despejo e a favor de outras políticas que garantam os direitos dos cidadãos à habitação.

Relativamente ao processo negocial, trata-se, de facto, de um processo negocial, mas muito desequilibrado. De acordo com a lei, verificamos que o senhorio tem quase «a faca e o queijo na mão», e que ao inquilino pouco restará senão submeter-se às imposições do senhorio.

Portanto, é muito natural que, se esta lei for aplicada, muitos inquilinos, findo este processo negocial, acabem por ser despejados, o que, mais uma vez, merece o nosso completo repúdio.

Mas gostaria de lembrar-lhe, Sr. Deputado Ramos Preto, que, sendo estas as posições do PCP, não foi isto que o PS negociou com a troica. Há alguns meses, o PS, o PSD e o CDS negociaram com a troica e inscreveram num documento um conjunto de medidas que os três partidos se comprometiam a aplicar caso fossem governo. Estas medidas, constantes dos pontos 6.1. e 6.2. do Memorando de Entendimento, previam exatamente estas situações. Permita-me, apenas para avivar a memória de quem não tem presente aquilo que assinou com a troica, que leia a alínea iv) do ponto 6.1. do Memorando, onde se diz o seguinte: «Prever um procedimento de despejo extrajudicial por violação do contrato, com o objetivo de encurtar o prazo de despejo para três meses». Ou seja, neste programa da troica previa-se exatamente que se pudessem agilizar as ações de despejo, para que elas fossem concluídas num prazo muito curto.
E, se lermos o que mais está previsto no ponto 6.1., verificamos que há muitas outras medidas que o Governo, depois, transpôs para a lei e que o PS também assinou.

Portanto, o PS tem responsabilidades. Em suma, esta lei, proposta pelo PSD e pelo CDS, na realidade, vem no seguimento de um «pacto de agressão» — chamamo-lo assim, e muito bem —, também assinado pelo PS!

(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.ª Deputada Catarina Martins,

Concordo consigo quando diz que esta é uma lei do despejo. Aliás, há pouco, na minha intervenção, referi que o poder do senhorio de despejar o inquilino «é a característica mais marcante da proposta do Governo, à qual podemos chamar ‘lei do despejo’».

De facto, apelidamo-la de «lei do despejo» porque tudo nesta lei está construído de forma a libertar as casas através de ações de despejo, as quais, além do mais, não ocorrerão nos tribunais mas, sim, no Balcão Nacional do Arrendamento, que, na verdade, deveria chamar-se «Balcão Nacional do Despejo», pois é isso que irá fazer, ou seja, encontrar uma forma expedita e rápida (como, aliás, o Memorando da troica exigia) de despejar os inquilinos das suas habitações.

Mais: é preciso salientar que, no processo negocial a ocorrer entre os inquilinos e os senhorios, não há uma igualdade de circunstâncias. De facto, neste processo negocial, o que é que senhorio tem a perder? Bom, ficar na situação em que se encontrava anteriormente. Pelo seu lado, o inquilino tem muito mais a perder, pois pode ficar sem habitação, pode «ir para o olho da rua» (desculpem-me a expressão).

Além disso, as indemnizações de que o Governo fala e intitula cinicamente no preâmbulo como «adequadas», essas indemnizações não resolvem o problema do despejo. Efetivamente, propondo o senhorio uma renda muito elevada e o inquilino não tendo disponibilidade financeira para uma renda elevada e propondo uma renda baixa, a indemnização será 60 vezes o valor médio, ou seja, vai ser uma indemnização relativamente baixa.

E o que faz esta pessoa com a indemnização? Vai ao mercado procurar uma casa, mas poderá encontrar uma casa de elevado valor e rapidamente o valor da indemnização se derrete.

E o que faz esta pessoa quando acabar o valor da indemnização e já não puder pagar uma casa de 500 €, 600 € ou 1000 € por mês? Vai viver para um bairro de lata? Para uma periferia desqualificada? Para debaixo da ponte?

Portanto, esta proposta de lei do Governo não resolve nenhum dos problemas atuais e reiteramos o que sempre temos defendido, ou seja, que é necessária uma intervenção do Estado para garantir a todos os portugueses o direito à habitação condigna.

(…)
Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados,
Começou o Sr. Deputado João Pinho de Almeida a sua intervenção por dizer que não ficou surpreendido com a nossa declaração política em defesa do direito à habitação. Não ficou nem podia ficar, porque sempre defendemos e continuaremos a defender, agora e no futuro, o direito constitucional à habitação. Não há aqui lugar a surpresa.

Pergunto-lhe, Sr. Deputado João Pinho de Almeida — e trata-se de uma pergunta retórica, porque não vai ter oportunidade de me responder —, se a situação financeira em que vive o País é culpa dos inquilinos.

Não nos parece!! Em Portugal, é elevado o número de habitações degradadas e existem muitas pessoas que não têm uma habitação condigna. Se o Governo quer resolver o problema da falta de habitação, poderia, por exemplo, como já referimos, tomar medidas que obrigassem a colocar os fogos devolutos no mercado. Existem centenas de milhares de fogos devolutos que poderiam ser utilizados para resolver o problema da habitação. Porquê recorrer à lei do despejo?

Por outro lado, Sr. Deputado João Pinho de Almeida, não ouviu atentamente a nossa intervenção, porque não dissemos que as pessoas com mais de 65 anos ou com deficiência podiam ser despejadas.

Dissemos que a lei não prevê essa possibilidade. Portanto, foi exatamente ao contrário.

No entanto, é preciso falar um pouco da proteção que o Governo diz que esta lei dá às pessoas com mais de 65 anos ou com deficiência. Na realidade, as pessoas com contratos anteriores a 1990 não são obrigadas a passar para o novo regime de arrendamento urbano, mas o senhorio pode fazer uma atualização da renda até um quinze avos do valor patrimonial tributário.
Vou dar-lhe um exemplo muito simples, Sr. Deputado. Vamos falar de coisas simples e práticas.

Se considerarmos um casal em que ambos têm 70 anos de idade e que vive num imóvel que este ano é avaliado em 100 000 euros, um quinze avos deste valor representa 556 € de renda por mês.

Considera que esta é uma renda moderada? Este casal de idosos poderá não ter condições para pagar este valor.
E o que prevê o Governo? Nada!

Se não tiver condições para pagar até um quinze avos, terá de abandonar a habitação.

Mais: isto é apenas durante cinco anos, porque, cumprido um período inicial de cinco anos, o senhorio pode atualizar a renda livremente. Portanto, não existe na lei a proteção que refere.

Relativamente às pessoas de fracos recursos económicos, dizem que também há uma grande consideração por parte do Governo. Não é verdade. Repare que o Governo, no caso de pessoas com condições económicas mais desfavoráveis, permite que a renda seja aumentada até 25% do rendimento anual bruto corrigido, para valores superiores a 500 € de rendimento mensal.

Ou seja, um idoso de 70 anos com rendimento de 600 € irá pagar 25%, isto é, 150 € de renda.

Restam-lhe 450 € para alimentação, remédios, transportes, gás, eletricidade e tudo o mais. Este é um esforço que o Governo intitula cinicamente no preâmbulo como «adequado». Não é um esforço «adequado»!

É um esforço brutal de 25%, que é aplicado a pessoas que tenham rendimento superior a 500 € mensais.
Portanto, esta lei não protege os idosos, as pessoas com deficiência ou as pessoas com carência económica.

É uma lei do despejo injusta e terá a nossa oposição, agora e no futuro!

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