A frase<br />Vitor Dias no &quot;Semanário&quot;

Do conjunto de exuberantes sinais, de trapalhadas e de incidentes que, nestes dias, têm marcado o arranque do Governo número dois PSD-CDS/PP já muito ou bastante se disse e, por isso, pela nossa parte talvez pudesse bastar que exclamássemos «é bem feito!» e que as coisas têm corrido como era merecido para um governo dado à luz no meio de um imenso descrédito e falta de substantiva legitimidade.

Com efeito, já alguma coisa se disse sobre um novo Primeiro-Ministro que, resultado das complicadas transições entre papéis e imagens, leva para o seu chatíssimo discurso de posse no Palácio de Belém a resposta detalhada a críticas da imprensa aos métodos e «timings» da formação do Governo.

Já bastante se disse sobre o acrescentado peso e influência dos grupos económicos e financeiros e, ao lado disto, os «lobbys» dos grandes negócios em diversas áreas, na composição do Governo, num ostensivo sinal de que o poder político caminha vertiginosamente para uma mera arrecadação anexa à mansão dos grandes senhores do dinheiro.

Já muito se disse sobre o vendaval de clientelismo, ligeireza e arranjinho mesquinhamente partidário que determinou a estapafúrdia orgânica e composição do Governo de Santana Lopes.

Já se disse o suficiente sobre a notável e universalmente incomparável polivalência de Ministros e Secretários de Estado que sabem de tudo e estão prontos a desempenhar qualquer lugar exactamente porque o que interessa é o lugar e porque o que conta é o estar e não o ser.

Já se disse alguma coisa sobre, segundo relato não desmentido no «Público» sobre a expedita «ocupação» do edifício da Rua do Século pelo Ministro José Luís Arnaut com «dossiers» do Ambiente a encherem corredores, assim se revelando não só como eles se tratam bem uns aos outros mas também e acima de tudo que este pessoal governante precisa de um curso acelerado sobre interesse público e sentido de Estado.

Já se disse o bastante sobre a inolvidável cena de anteontem com o Ministro Paulo Portas a sucumbir a gulodice da propaganda em torno de uma mulher no Ministério da Defesa quando a mesma, vinda da Segurança Social, era poucas horas depois empossada como Secretária de Estado na Cultura.

E, por fim, também já se andou bastante à volta do impenetrável folhetim sobre se o IRS vai baixar ou não, matéria em que apelamos vivamente à calma e à tranquilidade porque já deu para perceber que um especialista em truques, em celofane verbal e em propaganda como Bagão Félix, há-de inventar um artificio qualquer no «miolo do IRS» nem que seja uma qualquer insignificantemente melhor actualização dos escalões para os casais que tiverem cinco filhos ou mais, ou seja e como se sabe, a esmagadora maioria dos trabalhadores por conta de outrem.

Acontece porém que, pelo meio de tudo isto, acabou por passar quase incólume e impune aquela que, a nosso ver, foi a afirmação mais reveladora e mais significativa destes últimos dias e que ilustra uma manobra de fundo que, ao longo do tempo, precisa de uma resposta frontal, perseverante e implacável.

Trata-se da afirmação feita pelo Ministro Morais Sarmento, logo após a primeira reunião do Conselho de Ministros, de que “este Governo não tem que responder pelas suficiências e insuficiências do anterior”.

E, como salta à vista desarmada, a gravidade e o relevante significado da frase é tanto maior quanto foi debitada, não por um qualquer Ministro acabadinho de chegar ao governo do país, mas pelo Ministro Morais Sarmento que é a mesma pessoa que exercia as mesmas funções no Governo Durão Barroso e não um qualquer primo ou irmão desse anterior Ministro.

Pois é, andou a maioria parlamentar PSD-CDS/PP durante toda a crise política a invocar estritos propósitos e garantias de continuidade em relação ao anterior Governo e, por fim, andou também o Presidente da República a ajoelhar perante esses critérios e a reclamar a continuidade das «políticas essenciais» do anterior Governo e agora já temos o Ministro da Presidência a enunciar com toda a desfaçatez a clássica manobra (que sempre esteve na massa do sangue do PSD) de que ainda agora chegaram ao Governo, que o que está para trás é lá que deve ficar e que, pobrezinhos, merecem ao menos um dedal de benefício da dúvida ou um copo de crédito de confiança.

Porque este pessoal governante pode fazer coisas que parecem mais próprias de rapazolas irresponsáveis mas sabe muito bem ao que anda, escusado será dizer que a resposta democrática e popular que esta já desenhada manobra exige é mesmo tratar este governo não como um «novo» governo mas a continuação, com uma remodelação que, de forma «sui generis» abrangeu também o Primeiro-ministro, do anterior governo e, dia após dia e semana após semana, confrontar todos e cada um dos membros do governo com o infindável e calamitoso balanço da obra de devastação que vêm realizando desde Abril de 2002.