Projecto de Resolução N.º 263/XI (2.ª)

“Fiscalização prévia” à elaboração do Orçamento do Estado

“Fiscalização prévia” à elaboração do Orçamento do Estado

Projecto de Resolução n.º Sobre a “fiscalização prévia” à elaboração do Orçamento do Estado, recomenda ao Governo que rejeite as propostas para a instauração do designado processo “semestre europeu”, constitutivas de procedimentos que colidem frontalmente com princípios constitucionais que conferem atribuições e competências inalienáveis à Assembleia da República

1. O ponto 7 das Conclusões do Conselho Europeu realizado em 25 e 26 de Março deste ano, anunciou a criação de “um grupo de missão” que, presidido pelo Presidente do Conselho Europeu e constituído por representantes dos Estados-membros, da presidência rotativa e do BCE, estabelecesse, antes do final do ano, e em cooperação com a Comissão Europeia, as “medidas necessárias para atingir o objectivo de definir um quadro aperfeiçoado para a resolução de crises e uma melhor disciplina orçamental, explorando todas as opções possíveis para reforçar o quadro jurídico”.

Assim se iniciou um debate restrito e a adopção reservada de novas e diversas orientações políticas com enorme relevância nos diversos Estados-membros, sem que, sobre os respectivos conteúdos e objectivos concretos, ou sobre a evolução dos debates e eventuais consensos aí estabelecidos fosse dada a devida e politicamente obrigatória informação ao País e à Assembleia da República.

De facto, nunca o Governo, o Primeiro-ministro, ou o Ministro das Finanças suscitaram qualquer debate parlamentar sobre esta temática tão controversa e delicada.

2. O Conselho Europeu de Junho, realizado em 17 de Junho de 2010, para além de “convidar” o atrás referido Grupo de Missão e a Comissão Europeia a “continuar a desenvolver rapidamente orientações, tornando-as operacionais”, fixou também a reunião do Conselho Europeu de Outubro deste ano para um debate sobre o relatório final do Grupo de Missão.

Para além destas decisões gerais, este Conselho Europeu debateu já algumas orientações oriundas do grupo de Missão, relativas ao reforço da disciplina orçamental e da supervisão macroeconómica, e que se prendem com temas tão controversos como o “reforço da vertente preventiva e correctiva do Pacto de Estabilidade e Crescimento, com sanções associadas à prossecução da consolidação na via do objectivo de médio prazo”, como a “atribuição de um papel de maior destaque aos níveis da dívida na supervisão orçamental”, ou como a criação “de um painel de avaliação para avaliar melhor a evolução e os desequilíbrios da competitividade com vista à rápida detecção de tendências insustentáveis e perigosas”.
Nesta mesma altura, e no contexto da abordagem à mesma temática produzida pelo Grupo de Missão, o Conselho Europeu debateu, formalmente pela primeira vez, a instituição, a partir de 2011, de um “semestre europeu”, visando a “apresentação à Comissão Europeia, na Primavera, dos Programas de Estabilidade e Convergência para os anos imediatos” e visando “garantir que todos os Estados-membros disponham de regras orçamentais nacionais e de quadros orçamentais de médio prazo que se coadunem com o Pacto de Estabilidade e Crescimento, cujos efeitos deverão ser avaliados pela Comissão e pelo Conselho”.

A simples enumeração dos temas debatidos neste Conselho Europeu mostra bem a sua gravidade política, desde a questão do agravamento de sanções à criação de painéis comunitários de avaliação da evolução dos desempenhos nacionais de competitividade, com especial incidência na criação de um “semestre europeu” cuja conflitualidade com atribuições constitucionais próprias dos parlamentos nacionais, é por demais evidente.

Não obstante a importância desta temática, de novo o Governo silenciou a questão perante o País e mais uma vez não tomou qualquer iniciativa para debater estas questões de forma alargada na Assembleia da República.

Entretanto, foi sendo descodificada a linguagem hermética das conclusões dos Conselhos Europeus e o “semestre europeu”, com todos os seus potenciais procedimentos típicos de ingerência e colisão com aspectos essenciais de reserva legislativa nacional, começando a ser alvo de justificadas críticas tipificadas no que começou desde logo a ser designado pela “introdução de um visto prévio comunitário à elaboração dos orçamentos nacionais”.

3. Esta atitude do Governo não é politicamente aceitável. Para além de nunca ter tomado a iniciativa de suscitar um debate parlamentar alargado, nem na sequência do Conselho Europeu de Março, nem tão pouco no quadro da realização do Conselho Europeu de Junho, o Governo não parece ter colocado nestes dois Conselhos Europeus uma simples e única dúvida ou reserva ao conjunto de procedimentos que podem atingir Portugal com sanções inaceitáveis, (que já chegam a considerar a perda de voto nas instituições comunitárias), ou que podem passar pela introdução de um sistema de fiscalização prévia à elaboração dos Orçamentos do Estado.

4. Entretanto, na mais recente reunião do Conselho dos Ministros das Finanças da União Europeia, realizada no passado dia 7 de Setembro, e sempre com o pretexto de reforçar a coordenação das políticas económicas, foi novamente debatido e consensualizado o “semestre europeu”, eufemismo adoptado para designar o autêntico “visto prévio” sobre o processo de elaboração e sobre os conteúdos dos Orçamentos dos Estados-membros.

Pretende-se então que, já com efeitos na elaboração do Orçamento do Estado para 2012, se passe a aplicar um inaceitável conjunto de procedimentos que condicionam previamente a elaboração dos Orçamentos Nacionais e que à partida asseguram a adopção das imposições de política económica e social que interessem directamente ao directório político dos Estados-membros mais poderosos e dos grandes grupos económicos.
Pretende-se que estes novos métodos de ingerência nas opções nacionais próprias se iniciem em Março de cada ano, momento em que a Comissão Europeia e o Conselho Europeu começarão por definir e fornecer as principais opções e orientações estratégicas nas diversas áreas da política económica; pretende-se, depois, no mês de Abril, que Portugal, de acordo com essas opções estratégicas definidas em Bruxelas, reveja as suas próprias opções orçamentais de médio prazo e, ao mesmo tempo, adopte programas de reformas em áreas como o emprego e a inclusão social; pretende-se finalmente que, em Junho e Julho, o Conselho Europeu forneça indicações políticas destinadas aos Estados membros, antes de terminarem os respectivos orçamentos para o ano imediato.

Esta iniciativa de fiscalização prévia dos orçamentos dos Estados, avançada pelo ECOFIN, colide, de forma patente, com aspectos centrais da soberania e das atribuições constitucionais conferidas à Assembleia da República – mormente nos seus artigos 161.º e 164.º -, não tem sequer sustentação nos próprios textos do Tratado de Lisboa, que em nenhum dos seus artigos permite tais mecanismos de ingerência, e não pode ser determinada pela invocada necessidade de coordenar políticas económicas que, em nenhum caso, pode justificar, no plano nacional ou europeu, tais atropelos.

Com esta iniciativa avançada pelo ECOFIN, as opções próprias e autónomas dos órgãos de soberania com competência constitucional para propor, debater, alterar e votar os Orçamentos do Estado, já de si fortemente condicionadas pela submissão do Governo às orientações do Pacto de Estabilidade e Crescimento, ficarão ainda mais prejudicadas, passando a ser ainda mais submetidas aos interesses das grandes potências do directório europeu e cada vez mais distantes dos verdadeiros interesses do País e dos portugueses.

5. O Governo permaneceu na sua posição de cumplicidade com orientações que colocam em cheque princípios básicos da Constituição da República. Nem por um momento se distanciou desse debate interno e reservado das instituições comunitárias e da adopção daquelas orientações do ECOFIN, continuou mudo e calado no que respeita às suas obrigações políticas de debater e ouvir os Portugueses sobre temas que implicam questões constitucionais e de soberania.

6. Foi neste contexto que o mais recente Conselho Europeu, de 16 de Setembro, abordou de novo os temas relativos ao “Grupo de Missão sobre a Governação Económica” (designação formal oficial que é adoptada pela primeira vez), tendo-se “congratulado” com o conteúdo de um relatório preliminar do seu Presidente, que mostrava “importantes progressos alcançados, nomeadamente no que respeita ao semestre europeu, ao desenvolvimento de um novo quadro de supervisão macroeconómica para acompanhar e corrigir atempadamente divergências e desequilíbrios não sustentáveis em termos de competitividade e ao reforço dos quadros orçamentais nacionais”.

Para além deste registo confirmativo das piores expectativas anteriormente geradas, este Conselho Europeu manifestou a intenção de aguardar, na sua reunião do próximo mês de Outubro, a apresentação do relatório final do Grupo de Missão, abrangendo todos os aspectos do mandato que lhe foi atribuído em Março e Junho, com a finalidade de proceder à sua ratificação e confirmação global e integral.

Será, assim, na reunião do Conselho Europeu do próximo mês de Outubro que se irá em definitivo proceder à aprovação global do pacote que venha a ser proposto pelo grupo presidido por Herman Van Rompuy, Presidente do Conselho Europeu, incluindo a ratificação do conjunto de medidas antes mencionadas, (nomeadamente o designado “visto prévio orçamental”), que foram sendo anunciadas e debatidas pelo Grupo de Missão, pelo ECOFIN e pelos sucessivos Conselhos Europeus, de forma a que, e caso sejam aí confirmadas, possam ser depois traduzidas em instrumentos legislativos de natureza comunitária.

Este calendário determina que a Assembleia da República intervenha de imediato, tratando-se de questões que conflituam com princípios de natureza constitucional e com competências e atribuições próprias e exclusivas que lhe estão conferidas pela Lei Fundamental, exigindo igualmente que o Governo altere a sua prática de não debater de forma alargada com o Parlamento um conjunto de orientações políticas comunitárias que podem implicar consequências profundas para o nosso País, e que inverta a sua postura de subserviência na União Europeia.
Assim, e ao abrigo das disposições regimentais e constitucionais em vigor, a Assembleia da República:

1. Considera inaceitável que o Governo não tenha tomado qualquer iniciativa, em Março, em Junho e/ou em Setembro, para promover um debate alargado sobre o mandato e as propostas do “Grupo de Missão sobre a governação económica”, designadamente quanto à eventual adopção de procedimentos que impliquem o conhecimento, a fiscalização e o acompanhamento prévios, por parte de órgãos comunitários, das orientações centrais do Orçamento do Estado, bem como a eventual adopção de sanções agravadas no quadro do Pacto de Estabilidade e Crescimento;

2. Recomenda ao Governo que no Conselho Europeu de Outubro não aprove qualquer novo procedimento comunitário que implique a criação de procedimentos de determinação prévia de orientações destinados à elaboração dos orçamentos nacionais, nem de mecanismos que impliquem um processo de pré-elaboração e de fiscalização do Orçamento do Estado que, objectivamente, e tendo em conta os documentos comunitários oficiais, colidem frontalmente com o texto dos artigos 161.º, 164.º e 165.º da Constituição da República e conflituam com atribuições e competências indeclináveis da Assembleia da República;

3. Insiste que qualquer deliberação sobre o relatório final do “Grupo de Missão sobre a governação económica” no Conselho Europeu de Outubro seja obrigatoriamente precedida de uma informação e de um debate com o Governo a ocorrer na Assembleia da República.

Assembleia da República, em 23 de Setembro de 2010

  • Assuntos e Sectores Sociais
  • Economia e Aparelho Produtivo
  • Regime Democrático e Assuntos Constitucionais
  • Assembleia da República
  • Projectos de Resolução