Intervenção de

Estado da democracia - Intervenção de António Filipe na AR

Interpelação ao Governo sobre política geral, centrada no estado da democracia e nas condições de exercício de direitos e liberdades fundamentais

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:

Fazemos esta interpelação ao Governo preocupados com o estado da nossa democracia e inquietos quanto ao seu futuro.

A democracia portuguesa está doente e a degradação das condições de exercício de direitos e liberdades fundamentais por parte dos cidadãos são sintomas evidentes dessa enfermidade.

A democracia económica afunda-se, submersa no poder desmesurado dos grupos económicos a que o Governo se submete.

A democracia social degrada-se, com o aumento do desemprego, da desprotecção social, da pobreza e das desigualdades sociais.

A democracia cultural vegeta, com o abandono da escola pública e a elitização do acesso à cultura e ao saber.

A democracia política sofre ataques violentos, com o Governo a enveredar por um caminho perigoso, de crispação perante a crítica, de intolerância perante o descontentamento, de repressão do protesto, de policialização da sociedade, de governamentalização da justiça, de limitações à liberdade de imprensa, de ataques aos trabalhadores e aos seus direitos, de ocupação do aparelho de Estado por uma clientela arrogante, ávida e capaz de tudo para se manter no poder.

Esta interpelação ao Governo não se baseia em processos de intenções ou em acusações gratuitas. Baseia-se em factos.

Quando acusamos o Governo de seguir por um caminho perigoso para a democracia, não o fazemos de ânimo leve.

Quando assistimos a uma prática governamental reiterada de ataques aos direitos fundamentais dos cidadãos, não podemos deixar de nos questionar sobre que democracia é esta em que vivemos e não podemos deixar de confrontar o Governo com as suas responsabilidades perante o País.

É um facto indesmentível que os direitos dos trabalhadores portugueses sofrem ataques sem precedentes em democracia.

O exercício de direitos sindicais é proibido em muitas empresas, sem que haja qualquer intervenção das entidades inspectivas, mesmo quando solicitada.

Em muitas empresas, as ilegalidades, a violação de direitos dos trabalhadores, o roubo de bens e equipamentos e toda a sorte de prepotências patronais processam-se com total impunidade. Mas, quando se trata do exercício de direitos pelos trabalhadores, as forças de segurança têm sido chamadas a intervir em conflitos laborais a mando do patronato, obedecendo às suas ordens, identificando e intimidando trabalhadores e sindicalistas, dispersando piquetes de greve com recurso à força, expulsando dirigentes sindicais das empresas onde exercem legalmente as suas actividades, como aconteceu nos CTT em Guimarães, na Scotturb, na Valorsul ou na Metalúrgica Manuel Pires Guerreiro.

É um facto indesmentível que os ataques aos direitos de associação, de reunião e de manifestação são cada vez mais frequentes.

Na Covilhã, a polícia visitou a sede do sindicato dos professores para obter informações sobre uma manifestação, tendo contado com o apoio da governadora civil, que considerou tal actuação normal, e do Ministro da Administração Interna, que tentou, nesta Assembleia, sem qualquer sucesso, defender o indefensável.

Em Montemor-o-Velho, um dirigente sindical foi incomodado por um agente policial e constituído arguido por participar numa manifestação.

Junto da residência oficial do Primeiro-Ministro, dois dirigentes do PCP foram constituídos arguidos por entregar um abaixo-assinado.

Numa escola em Valongo, uma manifestação de estudantes adolescentes deu lugar a uma desproporcionada operação policial.

Um pouco por todo o País, vão crescendo as limitações inconstitucionais à liberdade de expressão e de propaganda, com regulamentos inconstitucionais e intromissões abusivas de diversas autoridades no exercício de liberdades fundamentais.

O Governador Civil de Braga, oito meses depois de uma manifestação em Guimarães, mandou a PSP processar criminalmente quatro dirigentes sindicais sob a acusação de terem promovido uma manifestação não autorizada. Perante o arquivamento do processo, o mesmo Governador Civil assumiu ter pressionado o Ministério Público para forçar a sua reabertura e não foi demitido das suas funções.

Em Lisboa, a Governadora Civil continua ainda hoje convencida de que tem poderes para autorizar e proibir manifestações, ao ponto de, na passada semana, ter pretendido proibir uma vigília de agricultores em frente à Assembleia da República, com argumentos tão caricatos como o de que a montagem simbólica de tendas só poderia ser autorizada em parques de campismo.

É um facto indesmentível que a repressão exercida pelo Governo contra o direito de associação dos militares só não é uma vergonha nacional porque já ultrapassou as fronteiras e se tornou uma vergonha internacional, condenada publicamente por associações representativas de militares de quase toda a Europa. Perante o justo descontentamento das associações representativas dos militares contra medidas lesivas dos seus direitos, o Governo desencadeou uma acção de intimidação e de repressão selectiva que já se traduziu em mais de 100 dias de prisão disciplinar contra dirigentes associativos

Há mesmo unidades militares que adoptaram regulamentos de visita a militares em cumprimento de pena de detenção nas suas instalações, com um conteúdo no mínimo indecoroso e humilhante para os detidos e os seus visitantes.

Para além disso, o Governo não hesitou em aprovar um estatuto dos dirigentes associativos militares destinado a liquidar, na prática, a liberdade de associação e não se coibiu de legislar para impedir os tribunais administrativos de apreciar as violações de direitos fundamentais cometidas contra militares, designadamente quando esteja em causa a aplicação de medidas privativas de liberdade.

É um facto indesmentível que a ofensiva governamental em matéria de justiça e de administração interna constitui um gravíssimo atentado contra princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

O direito à justiça continua a ser negado aos cidadãos de menores recursos, por via de um regime iníquo de acesso ao direito, de custas judiciais incomportáveis e de uma morosidade insuportável do funcionamento da justiça. As recentes alterações ao Código de Processo Penal, que constituíram a mais emblemática trapalhada da aplicação do pacto do bloco central para a justiça, vieram criar dificuldades quase insuperáveis à investigação do crime organizado, contribuindo ainda mais para a impunidade dos poderosos perante o sistema de justiça. É um facto indesmentível que as pressões intoleráveis sobre a independência do poder judicial e contra a autonomia do Ministério Público têm vindo a acentuar-se.

A definição das prioridades de política criminal que deveria competir ao Ministério Público foi governamentalizada por lei. As alterações propostas à Lei de Segurança Interna e à Lei de Organização da Investigação Criminal apontam claramente para a desvalorização da Polícia Judiciária enquanto corpo superior de polícia criminal e para a introdução de uma promiscuidade inaceitável entre funções de segurança interna e de investigação criminal.

É um facto indesmentível que a pretendida criação do cargo de secretário-geral do Sistema de Segurança Interna, da confiança directa do Primeiro-Ministro, com funções de coordenação, controlo e comando operacional de todas as forças e serviços de segurança, constituirá um passo gravíssimo e sem precedentes na governamentalização da investigação criminal e na criação de um perigosíssimo estado policial.

Com a criação do Sistema Integrado de Segurança Interna, com a fusão dos serviços do Sistema de Informações da República, que continuam isentos de qualquer fiscalização credível, com a ofensiva insidiosa visando legalizar a prática das escutas telefónicas fora da investigação criminal, com a acentuação das características militares da GNR e com os passos que vão sendo dados para pôr em causa a independência dos juízes e a autonomia do Ministério Público, os portugueses começam a estar confrontados com um Estado cada vez mais policial e menos judicial, onde os cidadãos são cada vez mais vigiados e controlados, sem que tenham meios para fazer valer os seus direitos perante a justiça.

É um facto indesmentível que as limitações à liberdade de imprensa têm vindo a agravar-se.

A concentração dos meios de comunicação social num reduzido núcleo de grupos económicos e a aviltante precariedade dos vínculos contratuais dos jornalistas e as recentes alterações ao seu estatuto constituem factores incontornáveis de limitação da liberdade de expressão e de criação dos jornalistas e do direito de todos os portugueses a informar e a serem informados sem impedimentos nem discriminações.

É um facto indesmentível que o aparelho de Estado se tornou alvo da voracidade das clientelas políticas do Partido Socialista.

O caso do processo disciplinar interposto pela Direcção Regional de Educação do Norte contra o professor Fernando Charrua, com total apoio do Governo e das estruturas locais do PS, com base num acto miserável de delação, foi um caso elucidativo do estado a que as coisas chegaram.

Tal como o foram também os casos da demissão e nomeação de directores no Centro de Saúde de Vieira do Minho devido à afixação de um cartaz com um artigo do Ministro da Saúde. Já reparei que os Srs. Deputados do PS estão incomodados. Tenham um pouco de calma, por favor.

Como estava a dizer, um sintoma do estado a que as coisas chegaram também foram os casos da demissão e nomeação de directores no Centro de Saúde de Vieira do Minho devido à afixação de um cartaz com um artigo do Ministro da Saúde e as inúmeras nomeações sem concurso e os gastos discricionários com estudos, consultorias, subsídios e outras prebendas com que os diversos membros do Governo presenteiam os seus amigos políticos, instalando no País um clima de falta de transparência, de nepotismo e de compadrio, que escarnece dos sacrifícios que são impostos à esmagadora maioria dos portugueses.

Estes exemplos, que constituem sérios indícios de degenerescência do nosso regime democrático, poderiam, infelizmente, multiplicar-se. No seu conjunto, constituem uma ameaça ao próprio regime, cada vez mais descredibilizado aos olhos dos cidadãos.

O Governo do PS não pode deixar de ser responsabilizado por este estado de coisas. Os ataques à democracia política, a que quotidianamente assistimos, claramente ofensivos do quadro constitucional democrático, servem a consolidação do domínio crescente do poder económico sobre todas as esferas da vida social e têm como objectivo imediato manter o PS no poder, ainda que à custa da prepotência, do autoritarismo e da instrumentalização do Estado para combater todos os que ousem contestar as suas políticas.

Já estamos habituados a que o PS, perante a nossa legítima preocupação com o estado da democracia, diga que não recebe lições de democracia de ninguém.

Mas, perante factos indesmentíveis, esta prosápia não vale rigorosamente nada.

Essa arrogância retórica, essa atitude perante a vida é própria de quem confunde o mundo com o seu próprio umbigo.

Nós recebemos lições. Recebemos lições da vida, dos portugueses que sofrem, que não se resignam e que lutam por uma vida melhor, enfrentando adversidades e lutando contra as prepotências e as injustiças, e é ao lado desses portugueses que estamos.

É a esses portugueses que queremos dar voz com esta interpelação ao Governo. É por estes portugueses e com estes portugueses que o PCP continua a lutar pela qualidade da democracia para que os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos sejam respeitados, como devem ser num Estado de direito democrático..

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Ricardo Rodrigues,

Agradeço-lhe que me tenha colocado questões, mas devo dizer-lhe que o Sr. Deputado não se referiu a um único facto que mencionei na minha intervenção.

A um único! Se o Sr. Deputado quisesse discutir connosco o estado da democracia, era a esses factos que se teria referido.

Teria dito: «Aquilo que o senhor disse não é verdade, aquele facto que o senhor referiu não aconteceu...»

Simplesmente, Sr. Deputado, nós não inventámos nada. O que referimos nessa intervenção são factos que são do conhecimento dos portugueses.

Os portugueses sabem muito bem que isto aconteceu e sabem muito bem que as condições...

Sr. Presidente, só disponho de 2 minutos para usar da palavra.

Gostaria que a bancada do PS me desse a possibilidade de falar e que não falassem todos ao mesmo tempo.

Se falam todos ao mesmo tempo, ...

Ou, então, falem um de cada vez, ou dois de cada vez, porque assim já os consigo ouvir.

Srs. Deputados, sejam democratas!

Mas, como dizia, o Sr. Deputado Ricardo Rodrigues não respondeu a rigorosamente nada do que foi referido na minha intervenção.

Mais: o Sr. Deputado fez um arrolamento de propostas do Governo relativamente às quais o PCP votou contra. Sr. Deputado, até lhe dou mais exemplos: o caso do Código de Processo Penal, em relação ao qual votámos contra.

Refiro também a lei dos Serviços de Informações da República, em relação à qual votámos contra.

Mais: quando vierem à Assembleia da República as leis de segurança interna e de organização da investigação criminal, Sr. Deputado, garanto-lhe que, como já conhecemos muito bem os textos, votaremos contra!

Vou terminar, dizendo-lhe o seguinte, Sr. Deputado: estava a pensar que havia alguns argumentos, designadamente o do anticomunismo primário, que os senhores utilizariam quando se sentissem tão desesperados que não tivessem mais argumento nenhum.

Pelos vistos, não nos enganámos. Eles vieram! O que significa que os senhores claramente bateram no fundo relativamente à vossa argumentação. Já não têm argumentos para defender a política do Governo!

(...)

Sr. Presidente,

São vicissitudes do novo Regimento.

Sr. Ministro da Administração Interna, não me vai levar a mal o que vou dizer-lhe, mas perante factos muito concretos que referimos na nossa intervenção, o seu discurso foi um blá-blá-blá...

O Sr. Ministro disse uma série de generalidades supostamente sobre aquela que seria a política do seu Ministério e a orientação do Governo em matéria de segurança interna.

Mas o Sr. Ministro é responsável pelos governadores civis. Eles dependem politicamente de si. Por isso, gostaria de saber como é que o Sr. Ministro mantém em funções o Governador Civil de Braga que, oito meses depois de uma manifestação em Guimarães, mandou a PSP, no dia da greve geral (repito, oito meses depois de uma manifestação), notificar quatro dirigentes sindicais, instaurando-lhes um processo-crime por terem promovido uma manifestação não autorizada oito meses antes.

O mesmo governador civil reconheceu perante a imprensa que, face ao arquivamento do processo pelo Ministério Público, interferiu no sentido da reabertura do processo.

Gostaria de saber como é que o Sr. Ministro qualifica isto e como é que consegue manter em funções o Sr. Governador Civil de Braga.

E já que estamos a falar em governadores civis, não sei se o Sr. Ministro sabe que a Sr.ª Governadora Civil de Lisboa quis proibir uma manifestação de agricultores em frente à Assembleia da República, que ocorreu no final do passado mês de Novembro.

Quis proibir, e proibiu!

Aliás, tenho aqui o texto, que nos foi facultado, em que a secretária do Governo Civil, cujo nome desconheço, comunica à Confederação Nacional da Agricultura (que era a entidade promotora) que a realização em causa não poderá ter lugar.

E os argumentos utilizados são do mais extraordinário, como os de dizer, por exemplo, que uma tenda simbólica que queriam montar só poderia ser montada em parques de campismo, que se tratava de uma vigília que iria funcionar também durante a noite e que tal não podia ser porque à meia-noite e meia tinham de ir todos para casa e também que não podia ter lugar a menos de 100 m da Assembleia da República.

Portanto, para a Governadora Civil de Lisboa, não podia haver manifestações aqui à porta (como as há), tinham de ter lugar a mais de 100 m. Sr. Ministro, esta manifestação realizou-se. Sabe porquê? Porque os promotores da manifestação sabem muito bem que não precisam da autorização da Governadora Civil de Lisboa para se manifestarem, porque a Constituição permite-o directamente.

Gostaria, portanto, de saber quando é que o Sr. Ministro informa os governadores civis, que politicamente dependem de si, de que têm de respeitar a Constituição da República Portuguesa e de saber respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos, que é coisa que até agora têm demonstrado não saber.

 

 

  • Assembleia da República
  • Intervenções