1. A evolução do enquadramento legal da produção e comercialização da Denominação de Origem Porto e Douro na Região Demarcada do Douro, supostamente para obedecer à regulamentação comunitária da Organização Comum do Mercado Vitivinícola, acabou por pôr fim ao que o que foi norma habitual durante anos, a fixação, a par do volume de vinho a beneficiar, dos preços indicativos em cada vindima para as uvas e mosto com destino a ser beneficiado para Vinho do Porto e para vinhos de pasto, no respetivo Comunicado de Vindima editado pela Casa do Douro e IVDP.
2. Essa decisão, a par de outras, também decorrentes de alterações de legislação da viticultura duriense – nomeadamente a eliminação do papel regulador da Casa do Douro no mercado vitivinícola (Reforma de 1995), a crescente redução da destilação de vinho de pasto regional para o fabrico de aguardente vínica, destinada à operação de beneficiação – acabou por determinar uma brutal degradação – redução absoluta – dos preços de uvas e vinhos de pasto e generoso. O que, concomitante com a não menos brutal subida de preços dos fatores de produção – pesticidas, adubos, gasóleo, material vegetativo – da mão-de-obra e do crédito, ocasionou uma quebra a pique dos rendimentos dos pequenos e médios viticultores da região. Aos fatores já referidos como causa da perda de rendimentos será ainda de acrescentar o processo de redistribuição do «benefício», decorrente de transferências e de novas plantações de vinha, a favor das grandes empresas vitícolas e exportadoras. Há quem avalie a perda de «benefício» dos pequenos viticultores em 40% / 50% nos últimos dez anos.
Tudo junto, significará, seguramente para mais e não para menos, uma perda de rendimentos da pequena e média viticultura duriense, superior a 60% na última década. A Comunidade Intermunicipal do Douro/CIM Douro avaliou recentemente (26MAR14) a perda da produção vitivinícola duriense nos últimos 13 anos em cerca de mil milhões de euros.
Só a luta dos pequenos viticultores, dirigidos pela Avidouro, tem até hoje impedido uma degradação maior da situação.
3. Numa realidade económica e social, onde imperam cinco empresas comerciais/casas exportadoras (Sogrape, Gran Cruz, Sogevinus, Symington, Fladgate), alguns dos maiores grupos portugueses do sector dos vinhos, elas próprias proprietárias, hoje, de extensas áreas de vinha para vinho de pasto e vinho generoso, e onde grande parte das adegas cooperativas regionais (que representam ou representavam 40% do vinho de pasto e 30% do vinho generoso) encerraram e/ou estão em processo de falência, os 40 mil pequenos e médios viticultores foram amarrados de pés e mãos. Estes produtores ficaram absolutamente dependentes das imposições e arbítrio dessas empresas na aquisição e preços da produção vitivinícola. Estabeleceu-se uma relação de forte dependência económica do sector da produção, a montante, face a uma estrutura oligopolista no comércio, a jusante, suscetível de todos os abusos, nomeadamente “abuso de posição dominante” e “abuso de dependência económica”, em matéria de funcionamento do mercado. Problema agravado com a perda de influência e peso social e político da Casa do Douro. Para o desequilíbrio verificado entre as «profissões» (produção/comércio), contribuíram as reformas legislativas e institucionais na região, atingindo a Casa do Douro, e provocando a sua completa degradação financeira, esbulho de competências e perda de recursos humanos, o que lhe retirou capacidade de intervenção em pontos cruciais da cadeia de valor da produção vitivinícola, a que não serão alheios, também, alguns erros de gestão e de aceitação passiva das alterações impostas pelo poder político. Situação que se agravará drasticamente caso se concretizem as intenções do Governo PSD/CDS, vertidas na PPL 234/XII, que pretende alterar a natureza da Casa do Douro reduzindo-a a uma mera “associação de direito privado de inscrição voluntária dos produtores”.
4. Um expressivo sinal da degradação da situação económica e financeira na região é a crescente transferência da propriedade de pequenas e, sobretudo, médias explorações da mão dos seus proprietários para o sector financeiro, como resultado da execução de dívidas hipotecadas pelos bancos. Notícia do Expresso de 15 de Junho de 213 referia que a empresa de consultoria imobiliária Golde Estate Douro Valley, criada em 2012, tem «mais de 60 quintas em carteira para vender ou para procurar investidores (...) para parcerias com os seus atuais proprietários».
O resultado do estrangulamento financeiro dos pequenos viticultores no incumprimento do serviço da dívida e, logo, na execução hipotecária que, sem dó nem piedade, o sector financeiro concretiza.
Acabando assim por ser a banca intermediária na transferência dessa terra para quem tem meios financeiros suficientes, que a compra a baixos preços (a banca o que quer é realizar os custos do crédito), progredindo, por esta via, inflexivelmente, a concentração fundiária na região e a concentração do direito (benefício) a fabricar «Vinho do Porto» por expropriação de pequenos e médios viticultores!
5. Entretanto, as contradições no mercado agrícola comum, que a União Europeia pretende cada vez mais liberalizado, para responder aos interesses das grandes empresas multinacionais da produção agroalimentar e grandes países agrícolas do centro da Europa (França, Alemanha, Dinamarca), têm produzido alterações na regulação dos mercados. É o caso da OCM do Leite, cujas alterações agora finalizadas pela Reforma da PAC em 2013, determinando o fim das quotas leiteiras – instrumento fundamental de regulação e distribuição da produção leiteira pelos Estados-membros da União Europeia – acabou por produzir como «paliativo» uma legislação, que cria um sistema de contratos entre a produção e a indústria transformadora, mas manifestamente incapaz de fazer o que fizeram as quotas leiteiras.
A Reforma da PAC alarga «a todos os sectores da possibilidade do Estado-membro estabelecer contratos obrigatórios para toda a cadeia alimentar, tal como já previsto no sector do leite» (Doc. do GPP/MAMAOT de 27 de Junho de 2013 sobre os resultados das negociações em Conselho de Ministros de 24 e 25 de Junho de 2013).
6. No caso do leite, o Decreto-Lei n.º 42/2013, de 22 de Maio, determina, no artigo 3.º, que são elementos do contrato:
«a) A identificação das partes;
b) O preço;
c) A quantidade de leite;
d) A calendarização do fornecimento;
e) As modalidades de entrega ou recolha de leite;
f) Os prazos, as condições e os procedimentos de pagamento;
g) A duração do contrato e as respetivas causas de cessação, designadamente por denúncia;
h) As regras aplicáveis em caso de força maior.»
e na Portaria n.º 196/2013, de 28 de Maio, que fixa o contrato tipo de compra e venda de leite cru de vaca, estabelece os termos e as condições dos elementos do contrato.
7. Ora, no caso da Região Demarcada do Douro a fórmula contratual entre viticultores e comerciantes já existe, sendo habitualmente referida nos comunicados anuais de vindima, tendo por base o Estatuto das Denominações de Origem e Indicação Geográfica da Região Demarcada do Douro (artigos 35.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 173/2010, de 3 de Agosto).
A título de exemplo, reproduz-se o que consta do Anexo I do Regulamento n.º 296/2012 do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, I.P. «Regulamento do Comunicado de Vindima na Região Demarcada do Douro»:
A par desta fixação do contrato tipo, o citado Regulamento n.º 296/2012, do IVDP, I.P., determina ainda no seu Artigo 11.º, as «Modalidades de pagamento para mosto apto à denominação de origem Porto».
8. A necessidade de reequilibrar rendimentos e poderes na RDD é um imperativo inadiável, absolutamente necessário, sob o risco de se pôr em causa «O Douro, rio e região” que “é talvez a realidade mais séria de Portugal» (Miguel Torga), e o Património da Humanidade, o Alto Douro Vinhateiro.
Os herdeiros, construtores «jardineiros» e curadores desse património são, em primeiro lugar, os cerca de 40 mil pequenos viticultores e trabalhadores rurais.
Não é possível destacar e louvar o Douro, e permanecer insensível à completa degradação dos rendimentos, da situação económico e social, dos homens e mulheres que asseguram a continuidade e a preservação desse património. A não ser que se partilhe da opinião de uns quantos, que vêm como remédio a «expulsão» da produção vitícola de uns milhares dos actuais viticultores. O que está a ser feito (mais lentamente) pela via do mercado, como está a acontecer, quer pelo fim do sistema do benefício, como pretendem alguns poucos, ou mesmo pela «reforma» compulsiva da condição de produtores de vinho, como advogam outros.
O reequilíbrio das profissões na RDD não passa, nem pouco mais ou menos, só pelo conteúdo do presente Projecto de Lei, visando abrir caminho a preços mais justos para as uvas, mosto, vinhos de pasto, no fundo uma remuneração adequada para o trabalho esforçado dos pequenos viticultores e trabalhadores rurais durienses.
Bem pelo contrário, a resposta aos problemas da RDD exige uma política integrando um conjunto de medidas legislativas e decisões políticas, económicas e administrativas, como o PCP há muito alerta, reclama e propõe. Nomeadamente na viabilização financeira da Casa do Douro e recuperação de atribuições e competências de que foi expropriada, na consideração da aguardente vínica, no quadro do balanço vínico global e integrado da Região, na devolução ao IVDP das verbas e receitas de taxas apropriadas pelo Ministério das Finanças, sem o que, de facto, significa pôr os durienses a pagar mais impostos que os restantes portugueses, uma política para o «benefício», que trave a expropriação em curso dos pequenos viticultores, e políticas de crédito e de seguros adequadas.
A RDD é um rendilhado de relações económicas e sociais complexo e extremamente sensível. Mas não é necessário «um golpe de génio» para «inverter uma década de contínuo empobrecimento e degradação». Basta que o poder político, em profunda articulação com as estruturas económicas, sociais e políticas durienses, em sintonia com os durienses, tome as decisões necessárias, e não siga/sirva, como tem acontecido, os interesses dos poderosos, que sempre viveram à custa da exploração do Douro.
O presente Projecto de Lei é mais um contributo do PCP para tentar remar contra a maré que pretende afogar os pequenos viticultores durienses.
Assim, ao abrigo das disposições legais e regimentais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
Objeto
Os contratos de vindima hoje estabelecidos na Região Demarcada do Douro entre viticultores e comerciantes subordinados à regulamentação do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, I.P., adiante designado por IVDP,I.P., e conformes com a legislação da Região Demarcada do Douro, nomeadamente o Decreto-Lei n.º 173/2010, de 3 de Agosto, que estabeleceu o Estatuto denominação de origem e indicação geográfica da Região Demarcada do Douro, são desenvolvidos nos termos dos artigos seguintes, no sentido de: (i)corresponderem às alterações consolidadas na União Europeia pela Reforma da PAC em matéria de mecanismos de mercado, (ii) garantirem uma maior transparência na formação de preços e, (iii) uma justa remuneração da produção vitícola duriense.
Artigo 2º
Obrigatoriedade dos contratos
Os contratos de vindima para a aquisição à lavoura de uvas, mostos ou vinho destinados a vinhos de origem Porto ou Douro pelas empresas comerciais inscritas no IVDP, são obrigatórios nos termos da presente lei.
Artigo 3.º
Elementos do contrato de vindima
Os contratos de vindima passam a ter como elementos obrigatórios:
a) o preço unitário que deve ressarcir os custos médios regionais da produção e assegurar uma margem de rendimento líquido ao produtor;
b) a quantidade;
c) os prazos, as condições e os procedimentos de pagamento;
d) a duração do contrato e as respetivas causas de cessação, designadamente por denúncia;
e) as regras aplicáveis em caso de força maior.
Artigo 4.º
Contrato-tipo
O contrato-tipo de compra e venda de uvas, mosto ou vinho é aprovado pelo IVDP, I.P., nos termos da presente lei e da sua regulamentação.
Artigo 5.º
Proposta contratual
A celebração, do contrato escrito de compra e venda de uvas, mosto ou vinho, é precedida de uma proposta escrita apresentada pelo primeiro comprador, a qual deve conter os elementos referidos no artigo 3.º.
Artigo 6.º
Cooperativas
O disposto nos artigos 2.º e 4.º não é aplicável à entrega de uvas por um produtor a uma cooperativa, da qual o produtor seja membro, desde que os estatutos ou o regulamento interno da cooperativa contenham disposições que permitam dar cumprimento ao disposto no artigo 3.º.
Artigo 7.º
Acompanhamento e monitorização
1 - Compete ao Conselho Interprofissional do IVDP, I.P. acompanhar e monitorizar a aplicação do disposto na presente lei e da respetiva regulamentação.
2 - Os compradores de vinho devem prestar ao IVDP, I.P., ou às entidades nas quais tenha a informação necessária ao acompanhamento e monitorização dos contratos celebrados, de acordo com modelo a aprovar pelo IVDP, I.P., e disponível no sítio da Internet.
3 - O disposto no número anterior aplica-se às cooperativas que se prevaleçam da faculdade prevista no artigo anterior.
Artigo 8.º
Regulamentação
O governo regulamentará, no prazo de 30 dias, os aspetos que se revelam necessários à boa execução da presente lei, nomeadamente:
a) a elaboração do contrato-tipo pelo IVDP, I.P., nos termos do artigo 3.º,
b) a fixação anual dos custos regionais médios de produção, explicitados pelas sub-regiões da Região Demarcada e que, obrigatoriamente, serão publicados no Comunicado de Vindima;
c) a inscrição no Comunicado de Vindima dos preços unitários por Letra (A, B, C, D, E e F) verificados nas vendas de uvas ou mosto destinados às denominações de origem Porto ou Moscatel da campanha/vindima anterior, a partir dos dados controlados pelo IVDP;
d) o regime sancionatório;
e) a fiscalização, instrução e decisão sobre a violação das normas da presente lei e o destino das coimas;
f) as alterações decorrentes da presente lei, a introduzir no Decreto-Lei n.º 97/2012, de 23 de Abril -Estatuto do IVDP, I.P., e no Decreto-Lei n.º 173/2009, de 3 de Agosto -Estatuto das denominações de origem e indicação geográfica da RDD.
Artigo 9º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor na data da publicação em Diário da República do primeiro Comunicado de Vindima Anual na Região Demarcada do Douro que estabelece o regulamento com as disposições aplicáveis à vindima, nos termos do artigo 14.º do Estatuto das Denominações de Origem e indicação Geográfica da Região Demarcada do Douro (RDD), subsequente à sua publicação.
Assembleia da República, em 20 de junho de 2014