Senhor Presidente
Senhores Deputados:
Por iniciativa primeiro do Grupo Parlamentar os Verdes, e depois do
P.C.P., é possível fazer hoje um debate alargado sobre a família.
A família tal como é encarada no artigo 36º da Constituição da República, baseada ou não no casamento.
A nossa lei fundamental não ignorou a realidade sociológica e
recusou-se a consagrar apenas a família como realidade jurídica,
nascida do Direito Civil que muito a custo se foi despindo do moralismo
napoleónico, que aparece ainda que já muito timidamente depois da
reforma de 1.977, no actual Código Civil.
De facto, não podia a
Constituição da República, porque é
uma Constituição nascida de Abril, reduzir o conceito
de família ao agregado familiar resultante do casamento.
A Constituição optou por consagrar um conceito amplo
de família, por forma a que o legislador fosse adaptando
a lei à evolução da realidade.
Fechar os olhos a essa realidade
em nome de um pseudo moralismo, seria em certos casos, como diz
Carbonnier, recusar a protecção da lei a alguns,
privilegiando os mais fortes e mesmo os mais escrupulosos.
Não pode hoje recusar-se
a importância crescente dos direitos do homem e da mulher,
como indivíduos, da participação da participação
das mulheres na produção, a importância da
evolução do estatuto da mulher, na transformação
da realidade familiar. Na individualização na família
dos direitos dos seus membros.
Falar-se hoje em família
como um ente com personalidade, com valores próprios a
defender e a transmitir, para além de denotar um teimoso
apego a ideologias bonapartistas, mais não é do
que caminhar ao arrepio da evolução social. Desconhecendo
que com a globalização da economia, com o endeusamento
do mercado, com as novas formas de exploração através
da desregulamentação do tempo de trabalho, a família
nuclear em desagregação sofre novos impactos , exigindo
ao legislador que acompanhe as transformações.
Não há dúvida
nenhuma de que uma dessas transformações se saldou
na aceitação social das uniões de facto a
que se passou depois da hostilidade, vazada nas leis, que sobretudo
se abateu sobre as crianças que transportaram o estigma
da ilegitimidade, e foram discriminadas por via disso.
O P.C.P. há muito que
tem tentado dar respostas às questões que se colocam
ao direito, perante uma realidade familiar similar à que
se constitui com base no casamento. E a que alguns, como Mary
Ann Glendon, chamam a sua instituição sombra.
Em 1.985, aquando do debate da
lei das rendas, o P.C.P. apresentou propostas no âmbito
da transmissão do arrendamento.
Em 1.988, mais exactamente no
dia 7 de Junho de 1.988, o P.C.P. apresentou o Projecto de Lei
259/V, concedendo direitos às pessoas vivendo em união
de facto na área da Segurança Social.
Na passada legislatura, e depois
do Despacho Regulamentar 1/94 com que se puniu as uniões
de facto, através da exigência de sentença
judicial para acesso ás prestações da segurança
social ( entendendo alguns Tribunais superiores que se torna necessário
propor duas acções ) o P.C.P. apresentou o Projecto
de lei 457/VI. Que para além do mais ampliava o conceito
de união de facto para acesso àquelas prestações,
de uma forma inovatória. Que mantemos no Projecto hoje
em discussão, não só para a área da
segurança social, como para as áreas da habitação
e do trabalho.
É que, não desistindo
o Estado, tanto como deve, da intromissão na privacidade
dos casais, o que se nota na manutenção de alguma
rigidez nas causas válidas de dissolução
do casamento, é o Estado quem incentiva desta forma o aparecimento
da comunhão de vida estável entre duas pessoas,
ligadas a outras por vínculo matrimonial.
Sendo tais situações
aceites socialmente porque o são, a ilicitude das mesmas
acolhida pelo direito civil , que assim ultrapassa a própria
sociedade no julgamento moral, não pode determinar na área
dos direitos sociais que a união de facto se confine à
situação já hoje consagrada no artigo 2.020º
do Código Civil.
Desta breve resenha sobre iniciativas
anteriores do P.C.P. se tira a conclusão de que esta questão
não é para nós uma questão de moda.
Os problemas jurídicos
colocados pelas uniões de facto existem, foram mesmo debatidos
no âmbito do Conselho da Europa.
Os dados demográficos
conhecidos indicam uma progressão do número de famílias
em união de facto.
A pergunta que se coloca é
se o direito pode ser alheio a esta realidade.
Foi interessante verificar nas
posições já defendidas pela Direita, que
se falou muito no respeito pela liberdade daqueles que não
quiseram aceitar as regras jurídicas da família
baseada no casamento, para justificar a recusa de um quadro legal
integrado sobre as uniões de facto.
A verdade é que essa é
uma nova forma de assumir a afirmação de Napoleão
Bonaparte sobre a união de facto : Les concubins se passent
de la loi. La loi se désinteresse d´eux.
O que está na base dessas
posições é ainda a hostilidade, não
representada socialmente, a uma forma de constituir família
sem ritual obrigatório, sem papel passado. Uma hostilidade
a uma forma de família que julgam ameaçar o casamento.
Sem qualquer razão.
A verdade é que casamento
e união de facto foram deixando de se opor sociologicamente
à medida que o Estado ia abdicando da intromissão
na privacidade dos casais.
Com efeito, a união de
facto foi muitas vezes a contestação do estatuto
subalterno que às mulheres era reservado na família
matrimonial.
Foi a contestação
das proibições e impedimentos à dissolução
do vínculo matrimonial. Foi e ainda o é.
Representou para muitos, nomeadamente
para as mulheres, a garantia da igualdade dos sexos, e o acentuar
da importância do direito à felicidade por parte
dos dois sexos.
As uniões de facto surgiram
mesmo em Portugal, no âmbito do regime da Concordata, por
imposição resultante da proibição
de dissolução dos casamentos católicos.
Mas esta oposição
foi-se esbatendo à medida que a conquista de direitos,
nomeadamente a conquista da igualdade dos sexos, determinou necessariamente
profundas alterações no Direito da Família,
e mesmo no Direito Penal.
O Estatuto dos elementos da família,
mais libertos no casamento da sombra tutelar do Estado na vigilância
dos bons costumes, tornou-se semelhante nas duas realidades.
Um dos motivos que levava alguns
à opção pela família constituída
informalmente, deixou , assim, de existir em boa medida.
Na caminhada, inelutável,
dadas as transformações sociais, para uma maior
liberalização na dissolução do vínculo
matrimonial, os contornos da união de facto e do casamento
poderão esbater-se ainda mais. Sem que se possa prever
que a união de facto se torne residual, já que
a privatização do casamento se por um lado assegura
a liberdade, também assegura a igualdade de estatutos sociais
das duas realidades.
Agindo então, homens e
mulheres em plena liberdade na sua opção pela forma
de constituir família.
E é essa plena liberdade
que os Estados devem assegurar, pois não poderão
ilicitamente, impor esta ou aquela realização de
um direito de personalidade, o direito de viver em conjunto.
Colocados perante as questões
suscitadas pelas uniões de facto, recusamos o paradoxo
resultante da actual legislação ( que acentue-se,
pôs fim a muitas sanções indirectas contra
as uniões de facto), recusamos o paradoxo que consiste
em não ter qualquer interesse para o direito, tratar-se
de uma família baseada no casamento ou não, e já
assumir importância tal situação na área
do direito privado.
É nesta área com
efeito, que se sentem as maiores resistências, assumindo-se
o direito civil como defensor de uma suposta moralidade.
Será que as uniões
de facto recusam o direito? Será que ao Direito, neste
caso ao Direito Privado, poderão ser indiferentes as uniões
de facto?
A verdade é que a situação
existente noutros países, onde a jurisprudência assumiu
papel importante, vem denotando um recuo nos preconceitos morais
contra as uniões de facto.
Em Portugal a omissão
do legislador ordinário na área do direito à
habitação, na área das relações
patrimoniais entre os cônjuges, na área das suas
relações pessoais, na área do direito sucessório,
constituem ainda discriminações relativamente às
famílias em união de facto, especialmente sentidas
nas situações de ruptura.
Resta muitas vezes à pessoa
financeiramente mais fraca, o recurso às acções
com base no enriquecimento sem justa causa.
Seguramente que é difícil
e complexo criar um quadro jurídico completo, dadas as
variadas situações que conduzem às uniões
de facto.
Os que se opõem a tal
regulamentação argumentam que a mesma tira toda
a flexibilidade ao fenómeno, e que para tal manifestação
de liberdade não deve haver limitações.
Mas, tal como se disse no âmbito
do Colóquio organizado pelo Conselho da Europa " toda
a manifestação de liberdade encontra limitações.
Na união de facto, a relação de facto mantém-se
livremente mas não sem responsabilidade. Não é
permitido abandonar ao capricho e ao livre arbítrio individual,
à irresponsabilidade, a sorte daqueles que não escolheram
o casamento" Porque o direito de viver informalmente é
bem diferente do direito de viver fora das leis. O primeiro é
legítimo, o segundo é inadmissível, como
se diz no Relatório final do referido colóquio.
Aliás, no projecto de
Lei que apresentámos, tivemos em consideração
as conclusões desse relatório:
- Recusar qualquer registo
para as uniões de facto porque isso representaria a imposição
de um estado civil contrário ao artigo 23º do Pacto
Internacional das Nações Unidas relativo aos direitos
civis, sociais e culturais - Aplicar os mesmos princípios
do casamento de cada vez que o sistema jurídico parte do
pressuposto de uma vida em comum, o que acontece, nomeadamente
na área do direito fiscal, do direito a indemnizações
por responsabilidade extracontratual, caso, por exemplo, dos acidentes
de viação, na área da segurança social,
na área das obrigações alimentares, da contribuição
para as despesas domésticas, na área laboral - No respeito pelos princípios
fundamentais da liberdade e da igualdade, aproximar o regime de
bens do da comunhão de adquiridos, que o Relatório
considerava dever ser favorecido a fim de evitar a exploração
da actividade de cooperação entre as partes, também
sob a forma de trabalho doméstico.
Não fomos tão ambiciosos
relativamente às relações patrominiiiais.
O que o nosso Projecto de Lei estabelece, na falta de celebração
de convenção notarial, como acontece no Canadá,
por exemplo, ou de convenção na Conservatória
do Registo Civil, relativamente ao regime de bens, é uma
presunção ilídivel de que os bens adquiridos
durante a coabitação são comuns, exceptuados
aqueles que não entram na comunhão de adquiridos.
Quarto e último ponto
do relatório:
Estabelecimento da solidariedade
de responsabilidade relativamente a obrigações contraídas
no interesse da vida em comum.
Também no nosso Projecto
nos preocupámos com as relações entre as
pessoas vivendo em união de facto com terceiros credores,
matéria que deve ser objecto de qualquer diploma para preservar
os interesses destes.
Por último, e em sede de direito sucessório, propomos que no
caso de não existirem descendentes do autor da sucessão, o sobrevivo
de uma união de facto com pessoa não casada ou separada judicialmente
de pessoas e bens, herde como se fosse cônjuge. A comunhão de vida
que deu origem a profundas alterações no direito sucessório
justifica a proposta.
Senhor Presidente
Senhores Deputados:
Não é raro que
pessoas em união de facto reclamem direitos, contrariando
a aparência de que quiseram abrir mão desses direitos.
O Direito não pode deixar
de regular os problemas jurídicos suscitados pela união
de facto, que a jurisprudência muito raramente resolve.
No entanto, mesmo da parte de
alguns que admitem o estabelecimento de algumas regras que salvaguardem
os direitos dos mais fracos, do ponto de vista financeiro ou
psicológico ( ainda na maioria dos casos as mulheres) mesmo
da parte desses ouvimos a proposta de soluções no
âmbito do direito civil, que representam, consciente ou
inconscientemente, preconceitos relativamente à liberdade
sexual, corolário da liberdade exercida através
da opção pela união de facto.
A esta atitude preconceituosa
correspondem propostas como a assimilação das uniões
de facto a situações contratualizadas. E a recusa
de aproximação no âmbito das relações
patrimoniais, à situação gerada pelo casamento.
São preconceitos que a
própria opinião pública rejeita. Prova de
que o direito civil, naquilo em que ainda assimila uma pseudo
moralidade com ilicitude, tem de ceder. Por não corresponder
`representação social.
Tal como se deram passos importantes
na Reforma do Código Civil de 1.977, outras alterações
se lhe seguirão.
Necessárias na salvaguarda
da liberdade individual na escolha da maneira de viver, como necessárias
foram as alterações ao divórcio na mesma
salvaguarda daquela liberdade.
Disse