Exposição de Motivos
Tal como o PCP tem afirmado, o debate em torno da Neutralidade da Rede, relativamente às comunicações electrónicas e em particular no tocante à Internet, tem vindo a ganhar crescente expressão e importância em termos internacionais.
Actualmente, os serviços de dados são oferecidos com diferenciações apenas correspondentes à velocidade de acesso contratada pelo utilizador. Já quanto à sua origem ou autoria, os dados “viajam” na Internet à mesma velocidade aparente, sejam dados do site de uma grande multinacional, de uma pequena empresa ou instituição, ou de uma página pessoal. É essa a característica essencial da Neutralidade da Rede, que se revela assim precisamente como um factor de desenvolvimento e inovação, ao permitir que pequenos projectos não sejam discriminados e possam competir no mesmo terreno que as grandes empresas.
São do conhecimento público algumas movimentações políticas de grandes empresas transnacionais do sector, designadamente junto das autoridades do EUA, mas também de alguns operadores de telecomunicações na Europa, defendendo que as empresas possam pagar aos operadores de redes móveis para que os dados dos respectivos sites e serviços circulem mais depressa do que os de quem não pagar. Tal significa a pretensão de abrir caminho a uma alteração de fundo na política da Internet, com o princípio do fim da Neutralidade da Rede.
Sem neutralidade, uma empresa do ramo da produção ou indexação de “conteúdos” poderia pagar a um fornecedor de Internet para que aceder ao seu motor de busca fosse mais rápido do que aceder a um motor de busca concorrente. No limite, o próprio operador poderia mesmo fazer com que os dados dos seus serviços tivessem prioridade sobre os dos concorrentes.
No Parlamento Europeu, foi aprovada este mês a Resolução B7-0572/2011, sobre a Internet aberta e a neutralidade da rede na Europa (sessão plenária de 17/11/2011, em Estrasburgo).
Nessa Resolução o PE chama designadamente a «atenção para o risco de comportamento anticoncorrencial e discriminatório na gestão do tráfego, nomeadamente por empresas integradas verticalmente»; […] «Chama a atenção para os graves riscos que podem surgir em caso de violação dos princípios da neutralidade da rede - incluindo comportamento anticoncorrencial, bloqueio da inovação, restrições à liberdade de expressão e ao pluralismo dos meios de comunicação, falta de sensibilização dos consumidores e violação da privacidade – que será prejudicial tanto para as empresas como para os consumidores e a sociedade democrática na globalidade».
Na mesma Resolução, o Parlamento Europeu «Considera que o princípio da neutralidade da Internet constitui um pré-requisito significativo para permitir um ecossistema inovador da Internet e assegurar a igualdade de condições ao serviço dos empresários e cidadãos europeus».
Aliás, a garantia de uma Internet aberta e livre de sistemas de filtragem esteve na origem do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, proferido há poucos dias (24/11/2011, Luxemburgo) em relação ao processo C-70/10, Scarlet Extended SA v. Société belge des auteurs, compositeurs et éditeurs SCRL (SABAM).
Conforme foi divulgado em comunicado, este processo tem origem num litígio que opõe a empresa Scarlet Extended, fornecedor de acesso à Internet, à SABAM, sociedade belga de gestão que autoriza a utilização por terceiros de obras musicais dos autores, compositores e editores. A pedido da SABAM, o presidente do tribunal de primeira instância de Bruxelas (Bélgica) condenou a Scarlet, enquanto fornecedor de acesso à Internet, e sob pena de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, a fazer cessar essas violações aos direitos de autor, tornando impossível qualquer forma de envio ou de recepção pelos seus clientes, através de software ”peer-to-peer”, de ficheiros electrónicos que contenham uma obra musical do repertório da SABAM.
A esse propósito, «o Tribunal de Justiça declara que, ao adoptar a medida inibitória que obriga a Scarlet a instalar esse sistema de filtragem, o juiz nacional não respeitaria a exigência de assegurar um justo equilíbrio entre o direito de propriedade intelectual, por um lado, e a liberdade de empresa, o direito à protecção dos dados pessoais e a liberdade de receber ou enviar informações, por outro».
Com este Acórdão, o Tribunal de Justiça da União Europeia vai mais além do que a perspectiva da neutralidade da rede como factor de concorrência (na perspectiva de alguns, vergando-se aos “valores mais altos” da protecção dos direitos de propriedade intelectual) – e coloca o problema também onde ele deve ser visto: na esfera dos direitos, liberdades e garantias.
Entretanto, no passado dia 8 de Julho em Viena, a OSCE, Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, apresentou o relatório que se poderá designar por “Liberdade de Expressão na Internet – estudo das medidas legislativas e práticas relacionadas com a liberdade de expressão, o livre fluxo de informação e o pluralismo dos media na Internet nos estados participantes na OSCE”.
Nesse documento podemos ler: «A neutralidade da rede é um pré-requisito importante para que a Internet seja igualmente acessível a todos. É por isso preocupante que mais de 80% dos países participantes não tenham disposições legais para garantir a neutralidade da rede. Finlândia e Noruega destacam-se como exemplos de boas práticas, tendo a Finlândia ancorado a neutralidade da rede na sua legislação, ao passo que a Noruega, em conjunto com a sua indústria e utilizadores da Internet, desenvolveu linhas de orientação funcionais. Sendo de valorizar o facto de vários estados-membros da UE planearem a introdução de regras quanto à neutralidade da rede, os países participantes [da OSCE] devem considerar o reforço, por via legislativa, dos direitos dos utilizadores a uma Internet aberta.» E o Relatório prossegue: «Os utilizadores devem ter o maior acesso possível aos conteúdos, aplicações ou serviços baseados na Internet em função das suas opções, sem que o tráfego na Internet que usam seja gerido, priorizado ou discriminado pelos operadores das redes.»
Estas afirmações vêm colocar à evidência a necessidade de uma abordagem eficaz e concreta ao nível legislativo nacional relativamente a esta matéria.
O PCP foi o primeiro partido político a apresentar na Assembleia da República uma iniciativa legislativa para as questões da neutralidade da rede (projecto-lei n.º 418/XI/2.ª). Desta feita, retomamos essa proposta então apresentada, aperfeiçoando e actualizando o seu articulado à luz das alterações entretanto introduzidas. Assim, o presente projecto do PCP tem em conta a alteração à Lei das Comunicações Electrónicas que resultou da Lei n.º 51/2011 de 13 de Setembro, e procura aliás responder ao problema da sua inadequação nesta matéria.
É que esta lei, recentemente aprovada na Assembleia da República, determinou o aditamento do artigo 16.º-A que menciona a “neutralidade tecnológica” e a “neutralidade de serviços”. No entanto, essa menção é claramente insuficiente: por um lado apenas se refere à gestão do espectro radioeléctrico, e por outro lado mesmo assim em nada refere ou responde ao risco de as empresas operadoras poderem bloquear, interferir, discriminar, limitar, filtrar, condicionar ou restringir o acesso de qualquer utilizador às redes de comunicações electrónicas, com base em critérios de hierarquização comercial de conteúdos, aplicações ou serviços, ou em função da sua origem ou propriedade.
Esta é a questão central, mais problemática e que comporta riscos mais evidentes da submissão de abertura da Internet e da neutralidade da rede aos interesses económicos de alguns grupos sectoriais – e que exige da nossa Legislação um enquadramento específico e uma resposta concreta.
Perante este quadro, é da maior importância que se retire as devidas consequências de tal perspectiva, e que a Assembleia da República produza legislação, no sentido de garantir que não venham a ter lugar tais práticas restritivas e discriminatórias em relação à informação disponível na rede.
Num momento que tanto se fala da importância do acesso às tecnologias, e da sua importância como veículo de informação e conhecimento, seria verdadeiramente inaceitável do ponto de vista social e um erro clamoroso do ponto de vista estratégico subordinar as perspectivas de desenvolvimento dos países e dos povos a uma agenda de lucro máximo com uma Internet a duas (ou mais) velocidades.
Assim, ao abrigo do disposto no Artigo 156.º da Constituição da República e do Artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:
Artigo 1.º
Objecto
A presente lei determina a adopção do princípio da neutralidade da rede nas comunicações electrónicas e estabelece o enquadramento jurídico para a sua protecção.
Artigo 2.º
Âmbito de aplicação
A presente lei aplica-se a todos os operadores de comunicações electrónicas que forneçam ou estejam autorizados a fornecer serviços de acesso à Internet no território nacional.
Artigo 3.º
Definições
Para efeitos do disposto na presente lei, consideram-se e são aplicadas as definições constantes do Artigo 3.º da Lei n.º 5/2004 de 10 de Fevereiro, adiante designada por Lei das Comunicações Electrónicas.
Artigo 4.º
Neutralidade da rede
1 – Os operadores estão obrigados ao cumprimento da garantia da neutralidade da rede e ao tratamento em termos de igualdade no transporte de pacotes de dados.
2 – É proibido bloquear, interferir, discriminar, limitar, filtrar, condicionar ou restringir o acesso de qualquer utilizador às redes de comunicações electrónicas, com base em critérios de hierarquização comercial de conteúdos, aplicações ou serviços, ou em função da sua origem ou propriedade.
3 – O fornecimento de serviços de televisão ou outros via IP não pode prejudicar ou interferir com o cumprimento dos níveis de qualidade de acesso dos utilizadores à Internet.
Artigo 5.º
Norma sancionatória
O incumprimento do disposto na presente lei constitui contra-ordenação e determinará a aplicação de coima e também de sanção acessória e ou de sanção pecuniária compulsiva, nos termos do disposto na Lei das Comunicações Electrónicas.
Artigo 6.º
Ónus da prova
1 – Cabe ao operador a prova de todos os factos relativos ao cumprimento das suas obrigações e ao desenvolvimento de diligências decorrentes da prestação dos serviços a que se refere a presente lei.
Artigo 7.º
Carácter injuntivo dos direitos
1 – É nula qualquer convenção ou disposição que exclua ou limite as obrigações dos operadores estabelecidas pela presente lei.
2 – A nulidade referida no número anterior apenas pode ser invocada pelo utilizador.
Artigo 8.º
Alteração à Lei das Comunicações Electrónicas
Os artigos 39.º, 43.º e 113.º da Lei das Comunicações Electrónicas, alterada pelo Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de Maio, pela Lei n.º 35/2008, de 28 de Julho, pelos Decretos-lei números 123/2009, de 21 de Maio, e 258/2009, de 25 de Setembro, e pelas Leis números 46/2011, de 24 de Junho, e 51/2011, de 13 de Setembro, passam a ter a seguinte redacção:
«Artigo 39.º
Defesa dos utilizadores e assinantes
1 – Constituem direitos dos utilizadores de redes e serviços acessíveis ao público, para além de outros que resultem da lei:
a) Aceder, em termos de igualdade, em condições de neutralidade da rede e sem hierarquização comercial de conteúdos, às redes e serviços oferecidos;
b) […]
c) […]
2 – […]
3 – […]
4 – […]
5 – […]
6 – […]
Artigo 43.º
Obrigações de transporte
1 – […]
2 – […]
3 – […]
4 – As obrigações previstas no n.º 1 incluem a garantia da neutralidade da rede e o tratamento em termos de igualdade no transporte de pacotes de dados.
Artigo 113.º
Contra-ordenações e coimas
1 – […]
2 – […]
3 – Sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, constituem contra-ordenações muito graves:
[…]
e) O incumprimento das condições fixadas nos termos das alíneas a) e g) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 27.º ou nos termos do artigo 29.º-A;
[…]
n) O incumprimento da obrigação de transporte e neutralidade da rede previstas nos números 1 e 4, e nos termos do n.º 3 do artigo 43.º;
[…]»
Artigo 9.º
Aditamento à Lei das Comunicações Electrónicas
É aditado à Lei das Comunicações Electrónicas, alterada pelo Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de Maio, pela Lei n.º 35/2008, de 28 de Julho, pelos Decretos-lei números 123/2009, de 21 de Maio, e 258/2009, de 25 de Setembro, e pelas Leis números 46/2011, de 24 de Junho, e 51/2011, de 13 de Setembro, o Artigo 29.º-A, com a seguinte redacção:
«Artigo 29.º-A
Neutralidade da Rede
É proibido bloquear, interferir, discriminar, limitar, filtrar, condicionar ou restringir o acesso de qualquer utilizador às redes de comunicações electrónicas, com base em critérios de hierarquização comercial de conteúdos, aplicações ou serviços, ou em função da sua origem ou propriedade.»
Artigo 10.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte após a sua publicação.
Assembleia da República, em 30 de Novembro de 2011