Exposição de Motivos
Com o presente projecto, o PCP retoma a proposta que apresentou em 2008 e reafirma os fundamentos de uma iniciativa pioneira que colocou em destaque a importância crucial, estratégica, da adopção de normas abertas e formatos livres nos sistemas informáticos do Estado Português. Trata-se de uma matéria de plena actualidade, que importa suscitar, debater e decidir.
Numa época em que os Estados recorrem cada vez mais à informatização de processos administrativos e aos suportes digitais, a gestão e a conservação de dados em formatos electrónicos assume uma dimensão de importância estratégica nacional.
Actualmente, as instituições continuam a emitir, trocar e e arquivar uma parte substancial da sua informação em suporte digital através de formatos proprietários. Trata-se de formatos de documentos cujas especificações técnicas não são tornadas públicas pelas empresas que os promovem – pelo contrário, estes formatos são normalmente cobertos por regimes de protecção da propriedade intelectual (como o registo de patentes ou o direito de autor).
Isto significa que, se a informação em causa é armazenada num formato que o fornecedor de software detém e controla, então pode acontecer que o Estado tenha a capacidade de possuir a informação, mas não tenha nenhuma maneira de a recuperar, excepto usando o software proprietário. Se o titular dessa informação não a pode recuperar sem o consentimento do fabricante do software, então estamos perante uma situação de controlo da informação, com implicações que podem assumir a maior gravidade.
Daqui resulta claro que o Estado deve garantir a soberania e o controlo sobre a informação de que é titular, pelo que não pode emitir e manter documentos em formatos cuja utilização dependa potencialmente de opções estratégicas de empresas privadas. Em larga medida, é isso que sucede actualmente. Ainda hoje, no portal da Assembleia da República na Internet, recentemente remodelado, o acesso dos cidadãos aos textos das iniciativas legislativas apresentadas no Parlamento (projectos e propostas de lei ou de resolução, etc.) é disponibilizado através de um formato proprietário, assim como outras informações e aplicações.
Esta situação suscita outro problema central, que se prende com o respeito pela liberdade de opção dos cidadãos na utilização de tecnologias, que o Estado tem evidentemente o dever de garantir e promover. Os cidadãos e as organizações devem poder optar livremente pelas soluções informáticas da sua conveniência e preferência, ao invés de lhes ser imposto pelo Estado, directa ou indirectamente, o recurso a determinadas marcas ou produtos. E não é aceitável que o Estado, devido às suas escolhas de formatos, possa impor custos adicionais aos cidadãos ou instituições, em resultado de uma situação de monopólio privado ou domínio de mercado
O que já sucede com o Diário da República Electrónico demonstra que é possível optar por formatos abertos para a publicação de documentos oficiais, respeitando e cumprindo aliás recomendações do Consórcio W3C (consórcio internacional responsável pela rede www), inclusivamente no que concerne à acessibilidade e ergonomia dos conteúdos disponibilizados. Recorrendo a um formato aberto cuja especificação técnica e direitos de propriedade intelectual pertencem já na sua parte substancial ao domínio público, o Estado português garante assim, no presente e no futuro, o acesso público aos documentos em questão. O que é particularmente importante quando os documentos em causa são, por exemplo, as páginas do Diário da República…
Em suma, serviços públicos – e documentos públicos – não podem recorrer a formatos privados (proprietários). O próprio conceito de documento público implica a existência de formatos públicos, e isso significa a aplicação de normas abertas. Por outro lado, por razões de eficiência, soberania e segurança, é indispensável promover a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado.
Interoperabilidade pressupõe compatibilidade de sistemas. Segundo a definição da ISO (a Organização Internacional para a Padronização), que é aliás adoptada no articulado deste projecto de lei, trata-se da capacidade de dois ou mais sistemas (computadores, meios de comunicação, redes, software e outros componentes de tecnologia da informação) de interagir e de trocar dados de acordo com um método definido, de forma a obter os resultados esperados. Esta interacção, para ser universal no presente e no futuro, exige que os formatos definidos como norma – os standards – sejam abertos, isto é, possam ser livremente utilizados.
Por todas estas razões, este é um assunto suficientemente importante para justificar a aprovação de uma Lei da Assembleia da República.
A própria Comissão Europeia preconiza há anos a utilização de normas abertas nos sistemas informáticos: o “Quadro Europeu de Interoperabilidade” do IDABC (Interoperable Delivery of European eGovernment Services to Public Administrations, Business and Citizens). A definição de “norma aberta” adoptada neste projecto-lei é inclusivamente originária do QEI da Comissão Europeia.
Recentemente, foi divulgada pela Comissão Europeia a disponibilização sob a forma de software de fonte aberta das ferramentas que visam garantir que os dados armazenados digitalmente possam ser indefinidamente preservados, disponibilizados e compreendidos. O programa de investigação CASPAR (acrónimo de Cultural, Artistic and Scientific knowledge for Preservation, Access and Retrieval), financiado pela UE, envolveu investigadores da República Checa, França, Grécia, Israel, Itália e Reino Unido. Até agora, grandes volumes de dados electrónicos, como registos oficiais, arquivos de museus e resultados científicos, não podiam ser lidos ou corriam o risco de se perderem, porque as mais recentes tecnologias não os conseguiam ler nem permitiam que os utilizadores actuais os compreendessem.
Por todo o mundo, a adopção de normas abertas tem sido uma prática seguida por cada vez mais governos e autoridades nacionais, regionais e locais. São os casos concretos da África do Sul, Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Brasil, China, Croácia, Dinamarca, EUA, Eslováquia, Espanha, Finlândia, França, Índia, Itália, Japão, Letónia, Malásia, Noruega, Países Baixos, Polónia, Reino Unido, Rússia, Singapura, Suécia, Suíça, Uruguai, Venezuela.
Em Portugal, a aplicação de normas abertas na Administração Pública pode começar de imediato para documentos de texto (com um período razoável de adaptação para os serviços públicos, que aqui se propõe de três meses). Para esse efeito, a solução mais simples e eficaz, como já acontece com o Diário da República Electrónico, é o recurso a formatos que já hoje cumprem esses requisitos, nomeadamente o “PDF” para documentos estruturados e concluídos. Para documentos editáveis (não concluídos), tão frequentes em qualquer serviço, já hoje a ISO reconhece também como standard o formato aberto “ODF” (Open Document Format).
Para as outras diversas vertentes, desde os formatos de dados, de som e imagens, audiovisuais, etc., a solução mais consistente e adequada passa pela adopção de um Regulamento de Interoperabilidade (a exemplo do que foi adoptado na Holanda), o que exige um processo rigoroso e participado de elaboração. Por isso, este projecto de lei consagra um processo de definição das normas e formatos digitais a adoptar pela Administração Pública, assim como os formatos cuja utilização deve excluída por não corresponderem a normas abertas.
Esse processo envolve um prazo de cerca de seis meses (90 dias entre a publicação da lei e a sua entrada em vigor, mais 90 dias após a sua entrada em vigor) para a elaboração do Regulamento pela Agência para a Modernização Administrativa, seguido de um período de 30 dias para discussão pública, de modo a recolher os contributos, sugestões e propostas dos cidadãos e organizações. Considerando esses contributos, a AMA deverá então submeter o Regulamento na sua versão final à aprovação do Conselho de Ministros. Após a publicação do Regulamento, os serviços da Administração Pública devem preparar-se para cumprir estas regras – não de forma imediata mas num prazo de 180 dias.
Assim, ao abrigo do disposto no Artigo 156.º da Constituição da República e do Artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:
Artigo 1.º
Objecto
A presente lei estabelece a adopção de normas abertas para a informação em suporte digital na Administração Pública, promovendo a liberdade tecnológica dos cidadãos e organizações e a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado.
Artigo 2.º
Âmbito de aplicação
A presente lei aplica-se a todos os órgãos de soberania e serviços da Administração Pública central e regional, incluindo institutos públicos e serviços desconcentradas do Estado, bem como aos órgãos e serviços dos municípios e áreas metropolitanas.
Artigo 3.º
Definições
1 – Para efeitos da presente lei, considera-se “norma aberta” a norma técnica destinada à publicação, transmissão e armazenamento de informação em suporte digital, que cumpra cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Seja adoptada e mantida por uma organização sem fins lucrativos, e o seu desenvolvimento decorra na base de um processo de decisão aberto e disponível à participação de todas as partes interessadas;
b) Tenha sido publicada e seja livremente disponibilizado o respectivo documento de especificações, permitindo-se sem restrições a sua cópia, distribuição e utilização;
c) Os direitos de propriedade intelectual que lhe sejam aplicáveis, incluindo patentes, tenham sido, no todo ou em parte substancial, publicamente disponibilizados de forma irrevogável e irreversível;
d) Não existam restrições à sua reutilização.
2 – Para efeitos da presente lei, considera-se “interoperabilidade” a capacidade de dois ou mais sistemas (computadores, meios de comunicação, redes, software e outros componentes de tecnologia da informação) de interagir e de trocar dados de acordo com um método definido, de forma a obter os resultados esperados.
Artigo 4.º
Utilização de normas abertas em documentos digitais
1 – É obrigatória a aplicação de normas abertas em todos os documentos de texto em formato digital que sejam objecto de emissão, intercâmbio, arquivo e/ou publicação pela Administração Pública.
2 – Nenhum documento de texto em formato digital, presente por pessoa individual ou colectiva à Administração Pública, pode ser recusado, ignorado ou devolvido com base no facto de ser emitido com recurso a normas abertas.
3 – Todos os processos de adopção e/ou migração de sistemas informáticos na Administração Pública prevêem obrigatoriamente a utilização de normas abertas.
Artigo 5.º
Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital
1 – O Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital (adiante designado por “Regulamento”) define as normas e formatos digitais a adoptar pela Administração Pública, em aplicação da presente lei, assim como os formatos cuja utilização é excluída por não corresponderem a normas abertas.
2 – O Regulamento abrange as seguintes vertentes:
a) Formatos de dados, incluindo códigos de caracteres, formatos de som e imagens (fixas e animadas), audiovisuais, dados gráficos e de pré-impressão;
b) Formatos de documentos (estruturados e não estruturados) e gestão de conteúdos, incluindo gestão documental;
c) Tecnologias de interface web, incluindo acessibilidade, ergonomia, compatibilidade e integração de serviços;
d) Protocolos de streaming ou transmissão de som e imagens animadas em tempo real, incluindo o transporte e distribuição de conteúdos e os serviços ponto-a-ponto;
e) Protocolos de correio electrónico, incluindo acesso a conteúdos e extensões e serviços de mensagem instantânea;
f) Sistemas de informação geográfica, incluindo cartografia, cadastro digital, topografia e modelação;
g) Normas de segurança para redes, serviços, aplicações e documentos.
3 – Compete à Agência para a Modernização Administrativa a elaboração do Regulamento, com o dever de cooperação dos demais organismos da Administração Pública.
4 – O Regulamento é apresentado no prazo de 90 dias após a entrada em vigor da presente lei, e submetido a um processo de discussão pública por um período de 30 dias, findo o qual é publicado o respectivo relatório, que incluirá o conjunto das reclamações e propostas de alteração apresentadas e a subsequente versão final do Regulamento a submeter ao Conselho de Ministros.
5 – O Regulamento é publicado no Diário da República sob a forma de Decreto-Lei e deve ser objecto de revisão regular a cada três anos, nos termos do presente artigo.
6 – A aplicação integral e obrigatória das normas constantes no Regulamento entra em vigor em todo o território nacional, no prazo de 180 dias após a sua publicação.
Artigo 6.º
Supervisão e apoio técnico
1 – O acompanhamento, supervisão e a coordenação do apoio técnico para a implementação e cumprimento da adopção de normas abertas na Administração Pública competem à Agência para a Modernização Administrativa,
2 – Para efeitos do disposto no número anterior, a Agência para a Modernização Administrativa apresenta e publica em formato digital o Relatório Anual da Interoperabilidade, que deverá apresentar as medidas desenvolvidas na aplicação da presente Lei.
3 – O Relatório Anual da Interoperabilidade é apresentado para apreciação da Assembleia da República e sujeito a parecer da Associação Nacional de Municípios Portugueses e dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
Artigo 7.º
Contratação pública
É nulo e de nenhum efeito todo e qualquer acto de contratação promovido pela Administração Pública que preveja a exclusão de normas abertas no recurso a documentos em suporte digital.
Artigo 8.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor 90 dias após a sua publicação.
Assembleia da República, 23 de Setembro de 2010