Intervenção

Enriquecimento ilícito

 

Cria o tipo de crime de enriquecimento ilícito

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Cumpre-me, em primeiro lugar, registar positivamente a anuência do Grupo Parlamentar do PSD para que o projecto de lei do PCP (projecto de lei n.º 726/X), que cria o crime de enriquecimento ilícito, seja também apreciado nesta sessão plenária. Trata-se de um agendamento potestativo do PSD (projecto de lei n.º 747/X e projecto de resolução n.º 475/X) e é seu direito discutir apenas os seus projectos.

Ao admitir discutir também o projecto de lei do PCP, o Grupo Parlamentar do PSD teve uma atitude que não podemos deixar de valorizar.

O que estamos hoje a discutir é o combate à corrupção no exercício de cargos e funções públicos. Trata-se de um combate fundamental e decisivo para a democracia e para a identificação dos cidadãos com o regime democrático.

O terreno da luta contra a corrupção deve ser um terreno de convergência e de conjugação de esforços e não deve ser pretexto para que cada partido se limite a marcar o seu território e a tentar espetar a sua bandeirinha para dizer que se distingue dos outros.

A iniciativa do PCP, que me cumpre apresentar, propõe que os cidadãos que, nos termos da lei, sejam obrigados a efectuar declarações de património e rendimentos, tendo em conta os cargos públicos que exercem, incorram num ilícito criminal, caso o património e rendimentos que possuem se revelem anormalmente superiores aos que constam das declarações que efectuaram ou aos que decorreriam das remunerações correspondentes aos cargos públicos e às actividades profissionais exercidas.

«A história que se segue é um caso de sucesso» - estou a citar, com a devida vénia, um artigo constante do último número do semanário Expresso. «O rapaz nasceu numa família pobre, cresceu num ambiente difícil, mas conseguiu acabar os estudos numa universidade. Tornou-se professor e mais tarde político numa autarquia. Aos 50 anos, reformado do ensino, mas ainda activo na política, tem casas, terrenos, carros e barcos. Olhando com mais atenção, a mesma história poderia ser um caso de polícia: o valor do património do autarca está muito acima do que seria possível adquirir com o seu vencimento mensal. A situação, que é real, foi investigada, mas o processo acabou arquivado por não ter sido provado qualquer crime por parte do político. Que está a construir uma nova casa.»

Acabei a citação e é assim que acaba a história.

É mesmo de histórias destas que estamos a falar, Sr. Presidente e Srs. Deputados.

O objectivo do PCP, ao propor a tipificação do crime de enriquecimento ilícito, é impedir que histórias como esta tenham um final feliz para os corruptos.

Há muitos anos que esta Assembleia discute a corrupção e os meios para a combater. Em Fevereiro de 2007, foram aqui discutidas 14 iniciativas parlamentares no âmbito do que ficou conhecido como o «pacote da corrupção».

Todas as iniciativas baixaram sem votação para poderem ser objecto de discussão na especialidade. Foi promovido um colóquio parlamentar sobre o combate à corrupção, com a participação de eminentes personalidades nacionais e estrangeiras. Mas, um ano depois, quando se concluiu a apreciação na especialidade de todos os diplomas, o resultado foi uma tremenda decepção. Não que os sete artigos aprovados fossem negativos, mas porque o que foi aprovado ficou muitíssimo aquém das expectativas que foram criadas. O processo legislativo sobre a corrupção que correu nesta Assembleia entre 2007 e 2008 foi uma oportunidade perdida, não correspondeu às expectativas criadas, não prestigiou a Assembleia da República, não deu o contributo legislativo que se impunha para dar combate a comportamentos criminosos que minam a credibilidade do Estado democrático. E isso aconteceu porque não houve da parte da maioria do Partido Socialista a abertura para aprovar propostas vindas de outros grupos parlamentares, e mesmo de Deputados do seu grupo parlamentar, que teriam um impacto real no combate à corrupção e à criminalidade de colarinho branco.

De então para cá, a preocupação com o fenómeno da corrupção não diminuiu. Bem pelo contrário. O sentimento de impunidade de corruptos e corruptores não só se manteve como se agravou.

A ideia de que a lei é dura para com os fracos, mas ineficaz para com os poderosos, é uma convicção que se generaliza e que mina a confiança nas instituições políticas e judiciárias.

Diz-se, com muita frequência, que não é por falta de leis ou por deficiências destas que a justiça fica por fazer. Em alguns casos, isso é verdade, mas não é verdade neste caso. É hoje uma evidência que os tipos de crime estabelecidos na nossa lei penal são insuficientes e inadequados para permitir a eficácia da dissuasão e da punição do fenómeno da corrupção no exercício de funções públicas. A ocultação dos actos de corrupção por conluio entre os corruptos e os corruptores, limpando quaisquer vestígios da prática de crimes cujas vítimas são os cidadãos em geral, que pagam com o seu dinheiro o favorecimento de uns e o enriquecimento de outros, exige soluções legislativas que não se conformem com a continuação impune do actual estado de coisas.

A criminalização do enriquecimento ilícito dos titulares de cargos públicos é uma exigência de transparência democrática e é um instrumento indispensável para impedir de facto que o exercício de funções públicas possa ser usado para enriquecer de forma ilegítima e imoral, à sombra de dispositivos legais punitivos que se revelam quase totalmente ineficazes.

Os argumentos que têm sido opostos às propostas de criminalização do enriquecimento ilícito não têm razão de ser. O argumento do eleitoralismo nem sequer é argumento, até porque, se 2009 é ano de eleições, no ano de 2007, em que estas propostas foram debatidas pela primeira vez, não houve eleição alguma. A questão, portanto, tem de ser posta ao contrário. Não é o facto de haver eleições que nos faz apresentar esta proposta, mas já é o facto de haver eleições que faz com que, porventura, seja mais embaraçoso rejeitá-la.

Um outro argumento tem sido a escassa difusão deste tipo de crime no direito comparado. Também não é argumento.

Se é verdade que a maioria dos Estados não adoptou ainda essa solução no seu Direito Penal, porventura porque não sentem essa necessidade ou porque lhes falta vontade política, não é menos verdade que há países que o fizeram e que é a própria Convenção das Nações Unidas sobre o combate à corrupção, ratificada, aliás, pelo Estado português, que exorta os Estados-membros a criminalizar o enriquecimento ilícito, o que demonstra que essa medida não é tão exótica como os Srs. Deputados do PS tentam fazer crer.

O outro argumento contrário à criminalização do enriquecimento ilícito tem sido a invocação da sua inconstitucionalidade por contrariar supostamente o princípio da presunção de inocência e inverter o ónus da prova.

Pois bem, são cada vez mais as vozes de penalistas e constitucionalistas altamente qualificados que consideram, com fundamentos bastantes, que essa objecção não tem razão de ser.

Veja-se a explicação do Dr. Euclides Dâmaso Simões na revista Polícia e Justiça do 1.° semestre de 2006, onde refere que «é à acusação que competirá provar que o património do agente público não é compatível com os proventos que auferiu licitamente.

Será ao Estado que caberá provar o facto típico, antijurídico e culposo. A justificação que o acusado queira trazer ao processo mais não constituirá que o exercício legítimo do seu direito de defesa».

Veja-se, no número seguinte da mesma publicação, a defesa do Dr. Júlio Pereira, actual Secretário-Geral do Serviços de Informação da República Portuguesa (SIRP), da constitucionalidade da introdução do crime de riqueza injustificada no ordenamento jurídico de Macau, que ainda vivia ao tempo sob administração portuguesa.

A decisão sobre a criminalização do enriquecimento ilícito é uma opção política, que é exigida pela grande maioria dos agentes judiciários e que conta com cada vez mais defensores de todos os quadrantes políticos.

Só o PS continua, ao que parece, obstinado em rejeitar esta medida legislativa, apesar de haver muitos destacados membros do PS que a defendem e apesar da abstrusa medida fiscal que o Conselho de Ministros anunciou, no final da semana passada.

O PS recusa a criminalização do enriquecimento ilícito por se tratar de uma inversão do ónus da prova, mas o seu Governo pretende que a administração fiscal possa, por decisão sua, taxar em 60% o enriquecimento injustificado.

Ou seja, o enriquecimento injustificado não é ilícito, não se pode acusar nem julgar em tribunal, mas pode-se taxar por decisão do fisco. O Ministério Público não pode acusar ninguém de enriquecimento ilícito perante um tribunal, porque isso seria inverter o ónus da prova. Agora, o fisco pode decidir taxar em 60% um rendimento que considera ser injustificado e isso já não seria a inversão de coisa nenhuma.

Se o PS insistir nessa proposta, já estamos a ver o resultado. O fisco, que passa a ser parte interessada no enriquecimento injustificado, taxa um contribuinte em 60% e, segundo se anuncia, comunica tal facto ao Ministério Público. Mas, como não existe o crime de enriquecimento injustificado, o processo é arquivado e o contribuinte processa o Estado por ter sido taxado ilegalmente e exige a devolução dos 60%, acrescidos de juros de mora.

Mas esta proposta cria ainda mais dois problemas ao PS: primeiro, ter de defender publicamente uma proposta que é imoral e que não tem pés nem cabeça; segundo, ver deitado por terra o argumento da inversão do ónus da prova, que utiliza para se opor à criminalização do enriquecimento ilícito.

E que até o Dr. Vital Moreira, na ânsia de defender a proposta do Governo, já veio reconhecer que a consideração da ilicitude do enriquecimento injustificado não é tão inconstitucional como parecia.

Estamos todos, portanto, confrontados com as responsabilidades que decorrem das nossas opções políticas.

E estão hoje duas opções em confronto.

A Assembleia da República tem a oportunidade de aprovar um poderoso meio jurídico de combate à corrupção. Se o não fizer, o crime de corrupção continuará a gozar da impunidade de que tem gozado até hoje, mas os portugueses saberão porquê e por responsabilidade de quem.

  • Justiça
  • Assembleia da República
  • Intervenções