Intervenção

Enriquecimento ilícito

 

 

Crime de enriquecimento ilícito

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Cumpre-me em primeiro lugar registar positivamente a anuência do Grupo Parlamentar do PSD para que o projecto de lei do PCP (projecto de lei n.º 726/X) que cria o crime de enriquecimento ilícito seja também apreciado nesta sessão plenária. Trata-se de um agendamento potestativo do PSD e é um seu direito discutir apenas os seus projectos. Ao admitir discutir também o projecto de lei do PCP, o Grupo Parlamentar do PSD teve uma atitude que não podemos deixar de valorizar.

O que estamos hoje a discutir é o combate à corrupção no exercício de cargos e funções públicas. Trata-se de um combate fundamental e decisivo para a democracia e para a identificação dos cidadãos com o regime democrático. O terreno da luta contra a corrupção deve ser um terreno de convergência e de conjugação de esforços e não deve ser pretexto para que cada partido se limite a marcar o seu território e a tentar espetar a sua bandeirinha para dizer que se distingue dos outros.

A iniciativa do PCP que me cumpre apresentar, propõe que os cidadãos que, nos termos da lei, sejam obrigados a efectuar declarações de património e rendimentos tendo em conta os cargos públicos que exercem, incorram num ilícito criminal, caso o património e rendimentos que possuem se revelem anormalmente superiores aos que constam das declarações que efectuaram ou aos que decorreriam das remunerações correspondentes aos cargos públicos e às actividades profissionais exercidas.

"A história que se segue é um caso de sucesso", cito com a devida vénia um artigo constante do último número do semanário Expresso: "o rapaz nasceu numa família pobre, cresceu num ambiente difícil, mas conseguiu acabar os estudos numa universidade. Tornou-se professor e mais tarde político numa autarquia. Aos 50 anos, reformado do ensino, mas ainda activo na política, tem casas, terrenos, carros e barcos. Olhando com mais atenção, a mesma história poderia ser um caso de polícia: o valor do património do autarca está muito acima do que seria possível adquirir com o seu vencimento mensal. A situação, que é real, foi investigada, mas o processo acabou arquivado por não ter sido provado qualquer crime por parte do político. Que está a construir uma nova casa." Acabei a citação e é assim que acaba a história.

É mesmo de histórias destas que estamos a falar. O objectivo do PCP, ao propor a tipificação do crime de enriquecimento ilícito, é impedir que histórias como esta tenham um final feliz para os corruptos.

Há muitos anos que esta Assembleia discute a corrupção e os meios para a combater. Em Fevereiro de 2007 foram aqui discutidas 14 iniciativas parlamentares no âmbito do que ficou conhecido como o "pacote da corrupção". Todas as iniciativas baixaram sem votação para poderem ser objecto de discussão na especialidade. Foi promovido um colóquio parlamentar sobre o combate à corrupção com a participação de eminentes personalidades nacionais e estrangeiras. Mas, um ano depois, quando se concluiu a apreciação na especialidade de todos os diplomas, o resultado foi uma tremenda decepção. Não que os sete artigos aprovados fossem negativos, mas porque o que foi aprovado ficou muitíssimo aquém das expectativas que foram criadas.

O processo legislativo sobre a corrupção que correu nesta Assembleia entre 2007 e 2008 foi uma oportunidade perdida, não correspondeu às expectativas criadas, não prestigiou a Assembleia da República, não deu o contributo legislativo que se impunha para dar combate a comportamentos criminosos que minam a credibilidade do Estado Democrático. E isso aconteceu porque não houve da parte da maioria do PS a abertura para aprovar propostas vindas de outros grupos parlamentares, e mesmo de deputados do seu grupo parlamentar, que teriam um impacto real no combate à corrupção e à criminalidade de colarinho branco.

De então para cá, a preocupação com o fenómeno da corrupção não diminuiu. Bem pelo contrário. O sentimento de impunidade de corruptos e corruptores não só se manteve, como se agravou. A ideia de que a lei é dura para com os fracos, mas ineficaz para com os poderosos, é uma convicção que se generaliza e que mina a confiança nas instituições políticas e judiciárias.

Diz-se com muita frequência que não é por falta de leis ou por deficiências destas que a justiça fica por fazer. Em alguns casos isso é verdade, mas não é verdade neste caso.

É hoje uma evidência que os tipos de crime estabelecidos na nossa lei penal são insuficientes e inadequados para permitir a eficácia da dissuasão e da punição do fenómeno da corrupção no exercício de funções públicas. A ocultação dos actos de corrupção por conluio entre os corruptos e os corruptores, limpando quaisquer vestígios da prática de crimes cujas vítimas são os cidadãos em geral, que pagam com o seu dinheiro o favorecimento de uns e o enriquecimento de outros, exige soluções legislativas que não se conformem com a continuação impune do actual estado de coisas.

A criminalização do enriquecimento ilícito dos titulares de cargos públicos é uma exigência de transparência democrática e é um instrumento indispensável para impedir de facto que o exercício de funções públicas possa ser usado para enriquecer de forma ilegítima e imoral à sombra de dispositivos legais punitivos que se revelam quase totalmente ineficazes.

Os argumentos que têm sido opostos às propostas de criminalização do enriquecimento ilícito não têm razão de ser. O argumento do eleitoralismo nem sequer é argumento, até por que se 2009 é ano de eleições, no ano de 2007 em que estas propostas foram debatidas pela primeira vez, não houve eleição alguma. A questão, portanto, tem de ser posta ao contrário. Não é o facto de haver eleições que nos faz apresentar esta proposta, mas já é o facto de haver eleições que faz com que, porventura, seja mais embaraçoso rejeitá-la.

Um outro argumento tem sido a escassa difusão deste tipo de crime no direito comparado. Também não é argumento. Se é verdade que a maioria dos Estados não adoptou ainda essa solução no seu Direito Penal, porventura porque não sentem essa necessidade ou porque lhes falta vontade política, não é menos verdade que há países que o fizeram e que é a própria Convenção das Nações Unidas sobre o combate à corrupção, ratificada aliás pelo Estado Português, que exorta os Estados membros a criminalizar o enriquecimento ilícito, o que demonstra que essa medida não é tão exótica como os senhores deputados do PS pretendem fazer crer.

O outro argumento contrário à criminalização do enriquecimento ilícito tem sido a invocação da sua inconstitucionalidade por contrariar supostamente o princípio da presunção de inocência e inverter o ónus da prova. Pois bem: são cada vez mais as vozes de penalistas e constitucionalistas altamente qualificados que consideram, com fundamentos bastantes, que essa objecção não tem razão de ser.

Veja-se a explicação do Dr. Euclides Dâmaso Simões na revista Polícia e Justiça do 1.º semestre de 2006: "é à acusação que competirá provar que o património do agente público não é compatível com os proventos que auferiu licitamente. Será ao Estado que caberá provar o facto típico, antijurídico e culposo. A justificação que o acusado queira trazer ao processo mais não constituirá que o exercício legítimo do seu direito de defesa".

Veja-se no número seguinte da mesma publicação, a defesa do Dr. Júlio Pereira, actual secretário-geral do SIRP, da constitucionalidade da introdução do crime de riqueza injustificada no ordenamento jurídico de Macau, que ainda vivia ao tempo sob administração portuguesa.

A decisão sobre a criminalização do enriquecimento ilícito é uma opção política, que é exigida pela grande maioria dos agentes judiciários, e que conta com cada vez mais defensores de todos os quadrantes políticos.

Só o PS continua, ao que parece, obstinado em rejeitar esta medida legislativa, apesar de haver muitos destacados membros do PS que a defendem, e apesar da abstrusa medida fiscal que o Conselho de Ministros anunciou no final da semana passada.

O PS recusa a criminalização do enriquecimento ilícito por se tratar de uma inversão do ónus da prova, mas o seu Governo pretende que a administração fiscal possa, por decisão sua, taxar em 60% o enriquecimento injustificado.

Ou seja: o enriquecimento injustificado não é ilícito. Não se pode acusar nem julgar em tribunal. Mas pode-se taxar por decisão do fisco. O Ministério Público não pode acusar ninguém de enriquecimento ilícito perante um tribunal porque isso seria inverter o ónus da prova. Agora o fisco pode decidir taxar em 60% um rendimento que considera ser injustificado e isso já não seria a inversão de coisa nenhuma.

Se o PS insistir nessa proposta já estamos a ver o resultado. O fisco, que passa a ser parte interessada no enriquecimento injustificado, taxa um contribuinte em 60%. E, segundo se anuncia, comunica tal facto ao Ministério Público. Mas como não existe o crime de enriquecimento injustificado, o processo é arquivado, e o contribuinte processa o Estado por ter sido taxado ilegalmente e exige a devolução dos 60% com juros de mora.

Mas esta proposta cria ainda mais dois problemas ao PS. Primeiro, ter de defender publicamente uma proposta que é imoral e não tem pés nem cabeça. Segundo, ver deitado por terra o argumento da inversão do ónus da prova que utiliza para se opor à criminalização do enriquecimento ilícito. É que até o Dr. Vital Moreira, na ânsia de defender a proposta do Governo, já veio reconhecer que a consideração da ilicitude do enriquecimento injustificado não é tão inconstitucional como parecia.

Estamos todos portanto confrontados com as responsabilidades que decorrem das nossas opções políticas. E estão hoje duas opções em confronto. A Assembleia da República tem a oportunidade de aprovar um poderoso meio jurídico de combate à corrupção. Se o não fizer, o crime de corrupção continuará a gozar da impunidade de que tem gozado até hoje, mas os portugueses saberão porquê e por responsabilidade de quem.

Disse.

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