Publicado em Diário da República n.º 104/2015, Série I
Foi publicado no passado dia 29 de Maio o Decreto-Lei que enquadra a fusão da REFER com a EP/Estradas de Portugal, provavelmente um dos processos mais justamente contestados de quantos o Governo está a impor no Sector dos Transportes.
Consciente dessa realidade, o Governo tratou de conduzir este processo sempre tentando colocar factos consumados perante os trabalhadores, o país e a Assembleia da República. Este Decreto-Lei é nesse aspeto igualmente paradigmático: publicado numa sexta-feira para entrar em vigor numa segunda, era completamente desconhecido – no seu conteúdo concreto – de todos aqueles que deveriam, à luz da lei e do normal funcionamento democrático, ter dado opiniões e pareceres a uma reestruturação desta dimensão.
Esta forma opaca e antidemocrática é reflexo do conteúdo concreto da medida que se quer agora impor.
A política de direita tem crescentemente esvaziado a REFER e a EP e transferido saberes, competências e equipamentos para o sector privado, com custos cada vez maiores para o erário público e colocando o Estado na dependência da banca, dos grandes grupos da construção civil e obras públicas que monopolizam e cartelizam o sector. Cada vez mais estas duas empresas foram reduzidas à condição de gestoras de concessões, subconcessões, subcontratações e de dívidas.
O facto de os custos com o pessoal pesarem apenas dois por cento (na EP) e 6,4 por cento (na REFER) na estrutura de custos das duas empresas é bem significativo do caminho já trilhado. E com esta fusão, o Governo pretende despedir ainda mais trabalhadores, como o atesta o próprio Decreto-Lei.
O modelo que agora se quer solidificar, que afasta as empresas do sector público da realização da sua natureza operacional colocando-as como intermediárias entre o Estado e os grupos económicos, revelou-se desastroso, carregou as empresas com encargos financeiros e provocou a paralisia do investimento e a degradação das infraestruturas.
No caso das Estradas de Portugal, o endividamento está ligado ao conjunto de compromissos com as PPP rodoviárias, que representam obrigações superiores a 22 mil milhões de euros (para o período 2013/2041), e que em 2014 lhe impuseram pagamentos de 1,1 mil milhões de euros (mais 300 milhões que em 2013, apesar das falsas poupanças que o governo tanto propagandeou), com mais 1,2 mil milhões previstos no OE’2015.
No caso da REFER, a empresa tem uma dívida que ronda os 6,5 mil milhões de euros, prevendo-se 146,6 milhões de euros de pagamentos de juros em 2015. Esse endividamento resulta, no essencial, do facto de durante mais de 20 anos o investimento ferroviário em Portugal ter sido assumido a mais de 80% através da contratação de dívida pela REFER e dos custos brutais e crescentes com o serviço dessa dívida e com os instrumentos especulativos que a ela associaram.
Na EP o peso desta dívida tem ainda uma implicação muito concreta: mais de 90% da rede rodoviária nacional recebe cerca de 10% dos recursos financeiros disponíveis, pois as PPP “sugam” todos os recursos disponíveis.
Esta fusão é um salto consciente numa direção desastrosa para os interesses nacionais. Como já ficou patente através das declarações de António Ramalho, e consta no despacho que cria o Grupo de Trabalho que prepara essa fusão, o Governo projeta realizar «ganhos rápidos», ditos «quick wins», para ajudar a pagar estes compromissos com as PPP, com as subconcessões e com a banca. Esta é a verdadeira prioridade, e esta não pode ser a prioridade quando se trata do gestor das infraestruturas nacionais.
Para «vender» esta sua ideia o Governo falou muito ao início em sinergias e no modelo «sueco» ou «finlandês». Mas quando questionado, nunca mostrou que estudos comparados foram realizados sobre essas experiências, não esclareceu as profundas diferenças entre o que na gestão das infraestruturas se passa na Suécia e na Finlândia e o que quer impor para Portugal. E principalmente, não explicou porque escolheu rejeitar o modelo seguido na esmagadora maioria dos países do mundo. Finalmente, deixou de falar nos «modelos», abandonando essa linha de propaganda. Mas é importante recordar que há uma razão para que nenhum país do mundo tenha feito o que o Governo quer agora impor ao país: porque é uma ideia completamente errada do ponto de vista operacional e criminosa do ponto de vista da fiabilidade e segurança da operação.
Se algo o Estado Português deveria aprender com outros estados europeus é o facto de muitos deles estarem a regressar a uma maior unificação dos gestores de infraestrutura ferroviária e dos operadores de exploração, corrigindo as opções tomadas na sequência dos diferentes pacotes ferroviários da UE. Se a questão da obtenção de sinergias fosse de facto uma prioridade, o Governo teria um caminho que o PCP reivindica há anos, e que está a ser seguido na Alemanha e na França, e que a Espanha decidiu implementar depois do acidente de Vigo: trata-se da reconstrução de uma única empresa ferroviária que reúna o operador da infraestrutura e o da circulação, fazendo regressar CP, CP Carga, EMEF e REFER a uma mesma empresa ferroviária, nacional e pública. Mas as sinergias também são fundamentalmente propaganda e pretexto.
O que o Governo pretende é realizar as famosas «quick wins» e privatizar e concessionar tudo o que puder para conseguir pagar as PPP e afins e garantir rendas aos grupos económicos.
O Governo quer vender a Refer Telecom e a importante rede de comunicações propriedade da REFER (a quem o Governo atribuiu a responsabilidade pela rede de comunicações de fibra ótica e pelo centro de processamento de dados em backup da Autoridade Tributária e Aduaneira) depois de fundir essa rede com a rede da EP.
O Governo quer vender a Refer Engineering, colocando o Estado português numa ainda maior dependência dos grandes grupos monopolistas da construção e obras públicas; quer vender o vasto património ferroviário; quer fazer reverter para esta empresa as receitas da concessão da exploração das linhas rentáveis hoje atribuídas à CP (Urbanos de Lisboa e Porto, Longo Curso); quer concessionar o Controlo de Circulação; quer privatizar os terminais de mercadorias ainda na posse da CP Carga; quer concessionar terminais rodoviários; quer entregar novas concessões na rede viária, etc..
Este Decreto-Lei desempenha ainda um papel particularmente negativo no processo de pulverização e privatização do sector ferroviário nacional: ele procura transferir para a nova empresa o direito de concessionar as linhas hoje exploradas pela CP, preparando os próximos passos.
Aliás, é bem significativa a inclusão destas matérias no objeto da nova empresa: «O Estado pode delegar na IP, S. A., a preparação dos processos de abertura à concorrência da exploração de serviço de transporte ferroviário em regime de serviço público» e «... delegar ou concessionar a posição de autoridade competente para efeitos de atribuição a terceiros da exploração de serviço de transporte ferroviário em regime de serviço público».
No caso ferroviário, este modelo que agora querem impor é ainda uma completa irresponsabilidade do ponto de vista da fiabilidade e segurança do sistema. Muito mais que na rodovia, a circulação ferroviária implica uma perfeita articulação entre material circulante e infraestrutura e entre os homens que operam uma e outra. Aliás, o Governo nem tenta negar esta realidade. Em lado nenhum dos despachos e decretos se lê que a solução que querem impor é para melhorar a segurança e fiabilidade da circulação ferroviária.
Se a separação entre CP e REFER já é negativa, o afastamento que se desenha e a pulverização de agentes que se projeta seria desastrosa. E não será um regulador que resolverá o problema, como não o foi noutros países, e como não foi noutros sectores em Portugal.
Esta medida destina-se ainda a aprofundar o processo de destruição de postos de trabalho, precariedade e subcontratação nestas empresas, substituindo os trabalhadores do quadro por trabalhadores subcontratados por subconcessionários.
Estamos perante um processo onde se transferem oportunidades de acumulação da mais-valia para os grandes grupos económicos, que cresceram à custa desta política e saqueando o Estado, que prejudica diretamente os trabalhadores, mas não prejudica menos o desenvolvimento social e económicos do país. É natural que os grupos económicos e o capital financeiro aplaudam este processo. Mas o que a estes grupos serve não serve ao país, não serve aos trabalhadores, não serve ao povo português.
O próprio Secretário de Estado dos Transportes fazia referência, na apresentação oficial da nova empresa, à possibilidade da Infraestruturas de Portugal (IP) poder «vir a ter um parceiro privado no seu capital». É inaceitável a ameaça de privatização, seja por via da dispersão de capital social em bolsa ou por outra via, designadamente pela concessão de serviços.
Trata-se de uma medida que merece a frontal oposição da esmagadora maioria do sector ferroviário e rodoviários, exceção feita, claro, àqueles que esperam vir a ganhar muito com ela – os concessionários, os grupos económicos do sector e as multinacionais.
Estas são as questões de fundo que nos têm levado a combater o processo de fusão da REFER com as Estradas de Portugal. No entanto, e face ao articulado do Decreto-Lei, importa assinalar ainda algumas questões concretas:
• A forma como o Governo determina que a nova empresa terá como uma das suas funções a realização de «operações financeiras» revela que é para continuar o desastroso processo dos contratos swap, que já custou ao país largos milhares de milhões de euros.
• O facto de permitir à nova empresa deliberar sobre a venda de património até 255 milhões de euros representa uma ”carta-branca” aos administradores da IP e uma ameaça ao património público.
• A criação de um governamentalizado Conselho Geral e de Supervisão – recuperando uma figura que existe na TAP – que representa uma simulação de transparência quando na realidade se segue o caminho oposto.
• A opção de reconduzir por três anos todos os administradores e membros dos órgãos sociais, assegurando-lhes douradas indemnizações caso este processo venha a ser revertido rapidamente.
• O facto de se alargar à REFER por via desta fusão o modelo das EP, o modelo de sociedade anónima com capitais 100% públicos, concessionária ao Estado das redes e por sua vez subconcedente e subcontratadora aos privados. Sendo a EP a mais insolvente de todas as empresa públicas, exatamente pelo volume de sangria que este modelo permite, o que se recomendaria seria o oposto: regressar a um forte sector público, com capacidade de planificação, projeto e execução.
• Finalmente, verifica-se a muito concreta possibilidade da destruição de centenas de postos de trabalho, por via de falsas rescisões amigáveis e de forçadas reformas antecipadas, para além da questão da forma desregulada e discricionária como o Governo quer implantar as relações de trabalho na nova empresa, recusando a uniformização de direitos para todos os trabalhadores, independentemente de estes provirem da REFER, EPE ou da EP, SA, com a agravante de relativamente aos desta última empresa, insistirem na perpetuação de um opaco quadro de pessoal transitório, para os trabalhadores do contrato de trabalho em funções públicas, sem garantia do não recurso à requalificação e igualmente, sem garantia do não recurso ao despedimento individual ou coletivo dos trabalhadores com contrato individual de trabalho.
Nestes termos, e ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 169.º da Constituição da República Portuguesa e ainda dos artigos 189.º e seguintes do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP, vêm requerer a Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de maio, que determina a fusão da Rede Ferroviária Nacional – REFER, E. P. E. com a EP – Estradas de Portugal, S. A., e sua transformação em sociedade anónima, com a denominação Infraestruturas de Portugal, S. A., publicado no Diário da República n.º 104, 1.ª Série.