Publicado em Diário da República n.º 87/2015, Série I
O processo de privatização da CP Carga é parte integrante do processo de liquidação do sector ferroviário nacional e integra-se igualmente no processo de privatizações que o Governo está a lançar na fase terminal do seu mandato.
O Governo refere este processo no Decreto-Lei como um processo de «reprivatização». Ora a Empresa foi criada em 2008, funcionando sempre como uma empresa pública. Temos assim o Governo a afirmar que vai “voltar a privatizar” o que nunca foi privado – evidenciando um discurso e uma prática que não resistem ao confronto com a realidade.
Este Decreto-Lei afronta a própria Constituição, e faz parte de um processo que afronta a Constituição em termos mais amplos. Recorde-se que a Constituição aponta como tarefas fundamentais no plano económico, para a «Coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção» e para a «Propriedade pública dos recursos naturais e de meios de produção, de acordo com o interesse coletivo». Ora, mais uma vez se confirma que o Governo se encontra envolvido num processo de destruição efetiva do sector público.
O Decreto-Lei reconhece que a privatização da CP Carga foi uma das exigências da troica estrangeira FMI/BCE/UE e fundamenta ainda nessa exigência a presente iniciativa de privatização da CP Carga. Ora, tal referência suscita duas observações: por um lado, a constatação de que, tal como o PCP preveniu, a tão celebrada “saída da troica” revela afinal a continuidade das suas políticas. Por outro lado, é chocante a hipocrisia política de quem pretende afirmar que uma empresa, cuja dívida é de 120 milhões de euros (menos de 0,05 por cento da dívida pública), e constituída essencialmente por “leasing” do seu material circulante aparece como uma prioridade nas medidas a tomar face a essa mesma dívida pública.
A verdadeira origem deste processo remonta aos sucessivos pacotes ferroviários e às sucessivas tentativas de impor a liberalização do sector ferroviário aos Estados e aos Povos da União Europeia. Um processo que levou a que a empresa ferroviária alemã (por sinal, pública) assumisse uma posição monopolista no transporte ferroviário de mercadorias à escala europeia. E esse domínio monopolista é um interesse estratégico do grande capital, integrado na sua estratégia de dominação económica e política dos Estados periféricos para melhor assegurar a exploração dos seus recursos, dos seus mercados e da sua força de trabalho.
Depois o Governo afirma o seu empenho em «fomentar a modernização e expansão do mercado ferroviário de mercadorias além-fronteiras». Em causa está a sua conceção de que a prioridade suprema para o sistema ferroviário é supostamente a de ligar os portos à europa, uma perspetiva redutora e errada que coloca as infraestruturas estratégicas de transportes, em detrimento do interesse nacional, a “passar ao lado” do país, ao serviço de interesses que lhe são estranhos. Poderá ser uma lógica que sirva grupos económicos, mas nunca servirá os interesses do desenvolvimento económico sustentado e equilibrado do país.
Por fim, o Governo pretende afirmar que a privatização permitirá «o reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da CP CARGA, em benefício do setor dos transportes ferroviários, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas e serviços de transportes ferroviários, em que a CP CARGA desenvolve a sua atividade». Mas trata-se de uma proclamação vazia, que nada na realidade permite confirmar. Antes pelo contrário, basta ver a forma como a empresa privada criada pela Mota Engil se arrasta no sector (apesar de objetivamente beneficiada em muitas situações operacionais e outras, como as prioridades em termos de circulação, etc..) sempre reclamando mais e mais do Estado, promovendo uma brutal exploração da força de trabalho e criando dívidas às empresas públicas.
A privatização colocaria a CP Carga ao serviço da produção de lucros de um qualquer grupo económico, para o qual seria indiferente os verdadeiros ganhos que a CP Carga tem trazido ao país. No Relatório e Contas de 2014 da empresa, por exemplo, é sublinhado o valor ambiental do serviço prestado pela CP Carga, onde cada comboio representa 2,26 toneladas de CO2 cuja carga, transportada por 16 camiões por estrada, produziria 5,45 toneladas de CO2. E foram 9,2 milhões de toneladas transportadas em 2014, mais 11% que em 2013.
A privatização deixaria o país sem um instrumento estratégico – o transporte ferroviário de mercadorias – condenado a pagar rendas aos grupos económicos que dominassem o sector e degradaria ainda mais a soberania nacional.
A privatização contribuiria ainda mais para a pulverização do sistema ferroviário, processo gerador de crescentes custos para o Estado e de importantes perdas na segurança e fiabilidade da operação.
É verdade que não basta travar esta privatização. É preciso igualmente anular medidas como a inaceitável e desastrosa entrega dos Terminais de Mercadorias da CP Carga; e é preciso adotar uma política de desenvolvimento de um sistema ferroviário público e reunificado. Mas para isso, é importante agora travar esta privatização.
A Assembleia da República tem o dever de cumprir a sua responsabilidade nesta matéria, impedindo que este escandaloso negócio se concretize e procedendo à Apreciação deste Decreto-Lei com vista ao objetivo explícito e urgente da sua revogação.
Assim, o PCP promove a Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei em apreço, de forma simultânea com idêntica iniciativa em relação ao diploma da privatização da EMEF, publicado na mesma data. Ao fazê-lo, recorda e sublinha a importância da proposta recentemente apresentada com o Projeto de Resolução 1254/XII (PCP): Em defesa do caminho-de-ferro nacional – pela reunificação e gestão integrada da ferrovia, contra a sua liquidação e desmembramento.
A ferrovia tem futuro em Portugal. Defender esse futuro exige lutar por uma estratégia integrada e de integração, onde as várias vertentes (infraestruturas/manutenção, reparação e construção, circulação, exploração de passageiros e mercadorias, material circulante/manutenção, reparação e construção e segurança ferroviária, transporte de passageiros e mercadorias) sejam devidamente asseguradas numa CP pública, modernizada, ao serviço do país e da economia nacional.
Nestes termos, e ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 169.º da Constituição da República Portuguesa e ainda dos artigos 189.º e seguintes do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP, vêm requerer a Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei n.º 69/2015, de 6 de maio, que «Aprova o processo de reprivatização [sic] da CP Carga - Logística e Transportes Ferroviários de Mercadorias, S.A..», publicado no Diário da República n.º 87, 1.ª Série.
Assembleia da República, em 12 de maio de 2015