(publicado na 1.ª Série, n.º 209 do Diário da República)
Em 2012 o Governo fez aprovar por decreto-lei a criação da Empresa ETL, anunciando então nesse âmbito o projeto de fusão das empresas Metropolitano de Lisboa e Carris.
Passados dois anos e meio, importa desde logo fazer algum balanço desse processo. A ETL foi criada sem que nunca a Carris e o Metro se tenham fundido. Um edifício em Lisboa foi remodelado para passar a ser a sede da nova empresa, que assim se traduziu em três sedes e três instalações de conselhos de administração: da ETL, da Carris e do Metropolitano de Lisboa. Das prometidas sinergias, pouco se viu nestes dois anos e meio.
Entretanto o Governo despediu há um ano e meio o Presidente do Conselho de Administração da ETL, da Carris e do Metro (invocando a assinatura por este de «maus» contratos “swap”, isto enquanto se manteve em funções um outro administrador envolvido nas mesmas contratações até com maiores responsabilidades). Mas despediu sem nunca o fazer substituir, levando a que as três empresas funcionassem com um Conselho de Administração de três pessoas.
Na prática, o que aconteceu foi que as empresas perderam qualquer autonomia de gestão, com reflexos dramáticos na qualidade da oferta que realizam, e são administradas por um único administrador que depois despacha diretamente com o Secretário de Estado.
O Governo, que tanto fala da iniciativa privada, poderá eventualmente imaginar alguma empresa privada, com realidades de dimensão, complexidade e diversidade comparáveis à da Carris e do Metro, que não tenha um conselho de administração com massa crítica suficiente para garantir essa gestão. Mas até prova em contrário, essa empresa imaginária não tem correspondência na realidade.
A verdade incontornável, aliás confirmada pelo processo aqui descrito, é que estas medidas, de criação da ETL e fusão das administrações da Carris e do Metropolitano, fazem parte do mesmo plano que tem um único objetivo: eliminar os obstáculos à entrega do serviço público de transportes à exploração capitalista. Um plano cuja primeira fase passava pelo aumento de preços e redução de custos com a força de trabalho, incluía ainda uma necessária degradação da qualidade da operação das empresas e a consequente degradação do serviço e da sua imagem perante os utentes, e terminava com a concessão da Carris e do Metro, com a ETL reduzida a uma mera gestora de concessões.
Mesmo o argumento da “redução de custos com os administradores” não passou de um pretexto demagógico. Apesar de não se ter assistido a situações tão flagrantes como as da CP Carga (que se limitou a renomear o anterior Conselho de Administração em Conselho Executivo), muitas vezes as despesas apenas mudaram de centro de custos. E o verdadeiro custo de uma administração prende-se com as decisões que toma e não tanto com o salário e mordomias que recebe, e estes continuam perfeitamente exagerados.
Em resultado destas opções, o controlo de gestão degradou-se. As decisões operacionais tornaram-se mais lentas, as decisões políticas executadas sumariamente, e todas menos colegiais. Aumentaram as dificuldades das Organizações de Trabalhadores fazerem o efetivo controlo de gestão, nunca foram empossados alguns órgãos estatutários como o Conselho Consultivo do Metro, e todas as opções mais importantes (algumas envolvendo largas centenas de milhões de euros como a do pagamento antecipado de contratos “swap”) passaram a ser tomadas diretamente por instâncias superiores, seja o Ministério das Finanças ou o IGCP.
Agora o Governo, através deste Decreto-Lei n.º 161/2014 de 29 de Outubro, propõe-se basicamente alargar à Transtejo e à Soflusa aquilo que nunca funcionou com a Carris e o Metro.
A estratégia subjacente a estas orientações é clara: por um lado, criar um quadro onde seja impossível as empresas públicas operarem; e por outro lado, preparar um futuro onde as empresas se limitariam a atividades eminentemente financeiras – gerir a dívida, gerir as subconcessões, gerir os subcontratos – enquanto toda a atividade operacional seria transferida para os interesses dos grupos económicos.
O Governo fala ainda do “incremento da interoperabilidade” como suposta justificação para esta medida. Ora, tal argumento levaria no limite à consideração de que, se essa interoperabilidade fosse concretizada através da fusão das administrações, seria necessário proceder à nacionalização das empresas privadas de transportes coletivos que operam na Área Metropolitana de Lisboa, perspetiva que o Governo não propõe nem deseja, antes pelo contrário.
Como qualquer discussão séria deveria concluir, tal interoperabilidade obtém-se através de uma Autoridade Metropolitana de Transportes que funcione, que esteja disponível e empenhada em atuar e esteja dotada dos meios para tal, e através de uma crescente intermodalidade na bilhética. E se alguma coisa fica clara em qualquer avaliação da experiência passada, é que o que facilita e promove essa interoperabilidade é a propriedade pública das empresas, e não a composição comum das suas administrações.
Aplicando a mesma receita que já aplicara aquando do decreto-lei da fusão da Carris com o Metro, o Governo avança agora com uma nova fusão em frontal violação da Lei e num total desrespeito pelos trabalhadores das empresas envolvidas. Tratando-se de decisões que reveem os estatutos das empresas, que assumem a extinção das mesmas, que alteram o modelo de gestão e que pressupõem uma vasta reestruturação, o Governo não pode legislar sem antes ouvir as respetivas Comissões de Trabalhadores – audição que nem sequer formalmente cumpriu, não se dando ao trabalho de promover os habituais pretensos diálogos (onde nada informa e nada ouve) como noutras matérias tem sido sua prática.
Cabe à Assembleia da República corrigir esta atuação do Governo. Considerando a experiência destes últimos dois anos e meio no plano operacional, verifica-se que foram anos de perda acelerada de qualidade e de fiabilidade da operação, de paralisia do investimento, de diminuição do número de passageiros, de aumento da dívida das empresas, de degradação do clima laboral e dos níveis de motivação dos trabalhadores.
É certo que as administrações seguiram, no essencial até cegamente, as orientações do Governo (que foi e é o verdadeiro responsável por este retrocesso). Mas a verdade é que também aqui não se encontra nenhuma razão que recomende a manutenção das administrações conjuntas. É por isso que o PCP apresenta, conjuntamente com esta iniciativa parlamentar, um projeto-lei que propõe, sinteticamente, a revogação do decreto-lei 98/2012, de 3 de maio.
Nestes termos, e ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 169.º da Constituição da República Portuguesa e ainda dos artigos 189.º e seguintes do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP, vêm requerer a Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei n.º 161/2014 de 29 de Outubro, que estabelece o regime de acumulação de funções dos membros executivos dos conselhos de administração do Metropolitano de Lisboa E.P.E., da Companhia de Carris de Ferro de Lisboa S.A., da Transtejo – Transportes do Tejo S.A., e da Soflusa – Sociedade Fluvial de Transportes S.A., publicado no Diário da República n.º 209, 1.ª Série.
Assembleia da República, em 4 de novembro de 2014