Intervenção de Miguel Tiago na Assembleia de República

Discussão da PPL nº 71/XIII/2ª— Aprova o regime jurídico do registo central do beneficiário efetivo e transpõe o Capítulo III da Diretiva (UE) 2015/849,

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados,

A proposta de lei que cria o registo central do beneficiário efetivo e que o Governo apresenta hoje representa um passo pequenino na marcha contra o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo.

Um passo pequenino porque é uma medida legislativa que se junta a tantas outras e cujo cumprimento nunca se verificou.

Lembramos, por exemplo, o caso Banif. Recordamos que o banco não cumpria muitas das suas obrigações, no que tocava ao combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, mas isto só veio a ser exposto quando já era demasiado tarde.

O Banco de Portugal sabia, a auditora externa sabia, a administração do Banif sabia e não consta que tenha acontecido coisa alguma. Referimos este caso apenas para demonstrar que, neste âmbito, não basta legislar, é preciso retirar consequência da lei.

A identificação do beneficiário final de uma sociedade é importante para que, quer nos planos fiscal e da supervisão, quer quando se verifique necessário no plano judicial, seja possível identificar os verdadeiros titulares de uma sociedade.

O que não será resolvido com esta legislação, contudo, é a questão de fundo que está na origem e na base do branqueamento de capitais: a economia especulativa, a maximização do lucro dos grandes grupos económicos e dos grandes acionistas a todo o custo.

A criminalidade económica tem também desenvolvido meios muito eficazes e dispõe de recursos praticamente inesgotáveis, muito superiores aos meios de que dispõem os supervisores, as autoridades tributárias ou as forças policiais e judiciais.

A desproporção de meios é gritante. As comissões de inquérito, na Assembleia da República, já ouviram falar de milhões de euros pagos a uma só advogada para arquitetar um esquema de offshore para poupar muito mais milhões em impostos.

Basta olharmos para os meios de que a República dispõe: o Banco de Portugal, se considerarmos que defende a República, tem poucos, manda as auditorias serem feitas por empresas privadas; a CMVM (Comissão de Mercado de Valores Mobiliários) poucos tem, realiza as auditorias com os seus próprios esforços; e a Polícia Judiciária, enfim, sabemos com que meios consegue prosseguir a sua atividade no âmbito do combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.

Ao mesmo tempo não resulta claro como será colocado em prática este registo no caso das grandes sociedades, onde as participações sociais são dispersas e complexas, onde existem arquiteturas empresariais mirabolantes, pensadas e realizadas por grandes sociedades de advogados para assegurar a melhor forma de fugir à lei ou às responsabilidades fiscais.

Vimos isto em praticamente todos os bancos falidos em Portugal e nas suas relações com grupos económicos e, certamente, o veríamos num outro conjunto de grandes empresas e de grandes grupos, se fossem submetidos ao escrutínio de um inquérito, como o inquérito parlamentar.

O branqueamento de capitais é um mundo diretamente ligado aos maiores negócios do mundo, desde o tráfico de droga e armas ao tráfico de pessoas, mas também ligado ao crime económico e a lucros obtidos indevidamente ou a financiamentos circulares.

As práticas relativas ao branqueamento estão na origem de um grande conjunto de problemas que acabam sempre por recair sobre os mesmos: os trabalhadores. Os trabalhadores perdem empregos quando os administradores ou os donos desbaratam os bens de uma empresa e a encerram ou têm de pagar as contas dos bancos que foram assaltados por administradores escondidos atrás de offshore.

Termino, Sr. Presidente, dizendo que a proposta de lei não representa, evidentemente, um retrocesso, mas também não representa os avanços necessários. Enquanto existirem as portas das traseiras que dão pelo nome de offshore, com quem o PCP, há muito, propõe proibir as relações comerciais, de pouco adiantará colocar na porta da frente a polícia.

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