Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP
Sessão Pública: “Democracia e Liberdade”
Juntamo-nos hoje aqui, nesta Sessão Pública sobre “Democracia e Liberdade” que é ao mesmo tempo um momento de celebração e de compromisso de acção futura. Celebração da Revolução de Abril, dos seus valores e do seu projecto de democracia ampla e progressista, num momento em que passam 33 anos desse acontecimento maior da nossa modernidade.
Compromisso de acção futura do nosso Partido, porque desejamos que esta Sessão Pública seja um primeiro passo de outros que se impõem dar, no sentido de promover uma larga campanha de alerta, denuncia e debate, tão larga e participada quanto nos seja possível, que permita chegar às massas as nossas justas preocupações acerca do rumo da nossa democracia. Acção que permita ampliar a tomada de consciência dos perigos de uma ofensiva que crescentemente põe em causa direitos, liberdades e garantias que são conquistas inalienáveis de Abril.
Na verdade, estes últimos tempos, como o evidenciaram o conjunto das intervenções que me antecederam, trouxeram-nos acrescidos motivos de preocupação em relação ao estado e evolução da nossa democracia constitucionalmente configurada, cada vez mais empobrecida nas suas diferentes dimensões – política, económica, social e cultural – e, crescentemente mutilada pelo enfraquecimento das garantias e a negação do exercício dos mais elementares direitos de expressão, participação e intervenção social e política dos trabalhadores e do povo.
Não são de agora as nossas preocupações acerca da situação e da evolução do regime democrático e da existência de uma democracia crescentemente amputada e desfigurada. Nos últimos anos temos vindo a chamar a atenção dos portugueses ao mesmo tempo que temos apresentado alternativas, tendo como pano de fundo e referência a Constituição da República que mantém, apesar das mutilações sucessivas, a marca do grande projecto libertador que emanou da Revolução de Abril.
Mas, é uma evidência que estes tempos mais recentes tornaram ainda mais claro esse traço de regressão democrática que se reconhece não apenas nas práticas e medidas legislativas restritivas e limitadoras de direitos sociais e laborais dos trabalhadores e numa degradada situação social que condiciona e aprisiona milhares de trabalhadores aos mecanismos da exploração e da dependência, mas também nas descaradas operações de branqueamento do regime fascista e dos seus principais responsáveis. Operações que alimentam iniciativas e actividades da extrema-direita e neo-nazis. A recente operação Salazar é bem o exemplo da convergência da acção de certos sectores, nomeadamente na mobilização de meios, onde se destacam novos livros de apologia da sua figura “humana”, a iniciativa da criação de um museu que é ao mesmo tempo do “Estado Novo” e a instrumentalização do concurso da RTP “Grandes Portugueses”.
Trata-se, na verdade, de um deliberado e articulado processo de branqueamento e reabilitação do regime fascista e da figura do seu principal responsável que não pode deixar de merecer o mais vivo repúdio de todos os democratas.
Traços de regressão democrática em resultado também dos processos de domínio e concentração, pelo grande capital, de uma comunicação social que marca não só a agenda política em função dos seus interesses de classe e de grupo, mas que a utiliza em larga escala como instrumento de dominação ideológica. Regressão também nos processos de governamentalização e concentração de poderes nas áreas da segurança interna, bem patente no processo de reorganização das forças de segurança, mas também com os novos projectos de governamentalização da justiça.
Processo que tem subjacente e se alimenta da crítica à acção política e aos políticos, que não distingue diferenças e os faz todos iguais. Processo nada inocente e obra, quantas vezes, daqueles mesmos que são responsáveis pelo que chamam de crise do sistema político, mas que é tão só e apenas uma crise de representação que se alimenta da continuada manipulação da vontade dos eleitores por aqueles que têm governado o país. Crise e mal-estar que não são o resultado do mau funcionamento do que chamam sistema político, mas da evidente diferença e desproporção entre promessas eleitorais e as políticas que se concretizam.
É por isso que a crise não se resolve como propõem o PSD e PS, com a sua “Reforma do Sistema Político” que reduziria ainda mais o leque das opções possíveis, a liberdade das escolhas e fidedignidade do voto, mas sim com uma política que responda aos verdadeiros problemas do país e dos portugueses. Foi, como vimos esta semana, fazendo o mal e a caramunha nos diagnósticos e críticas de uma direita que se diz preocupada com o fosso que se alarga entre cidadãos e responsáveis políticos, mas que lava as mãos da sua responsabilidade de mais de trinta anos de acção governativa em rotatividade com o PS, a fazer o contrário do prometeram, mistificando e diluindo responsabilidades e agindo de forma continuada com políticas e medidas que conduzem à degradação do próprio regime democrático.
Degradação que resulta, desde logo, da prolongada e persistente ofensiva que promoveram contra os direitos económicos, sociais e culturais, conquistados pelos trabalhadores e pelo povo com a Revolução de Abril e postos em causa através de uma cada vez maior subordinação do poder político ao poder económico. Subordinação que levou à transferência de sectores chave da nossa economia e à crescente concentração da riqueza nas mãos de um pequeno grupo e à alteração da correlação de forças nas relações de trabalho. Alterações que resultaram em retrocessos graves no plano da democracia participativa, nos direitos de organização e acção sindical com a proibição da actividade sindical e das comissões de trabalhadores nas empresas, com a perseguição e a repressão aos dirigentes sindicais e activistas e a todos aqueles que assumem a defesa dos interesses dos trabalhadores. Alterações que levaram ao refinamento dos mecanismos de pressão e repressivos limitativos dos direitos e liberdades individuais, mesmo no simples direito à sindicalização, mas também colectivos, como o direito à greve.
Ofensiva que, nestes primeiros anos do século XXI, se materializou no violento ataque aos direitos dos trabalhadores e às suas organizações através do novo Código do Trabalho dos governos do PSD e CDS-PP e que tem, hoje, na ofensiva contra os trabalhadores da Administração Pública, pela mão do actual governo do PS, outro exemplo de implementação de formas meticulosamente elaboradas de condicionamento e paralisia da acção e intervenção social e laboral, mas também política.
Mas a degradação do regime democrático não se expressa apenas em formas de proibição da democracia nas empresas, ela acentua-se em resultado também das condições de vida e de trabalho. E, se é verdade que a democracia não pode ficar à porta da empresa como o querem as forças da direita e o patronato mais conservador e reaccionário, o desemprego, os baixos salários, a precariedade que cresceu a partir da generalização dos contratos a prazo, o trabalho temporário e os falsos recibos verdes condicionam o exercício de direitos individuais, mas também os direitos colectivos. É esta cada vez mais limitada e restritiva participação democrática e de exercício das liberdades, que está na base do medo e da perseguição, na gestão do quotidiano de cada um e de todos nos pequenos espaços, que tenderá a projectar-se em novos receios, em distanciamento e ausência de participação em todos os outros domínios da nossa vida colectiva.
O mesmo se passa na escola com a desvalorização da participação dos estudantes nas suas estruturas associativas, nas crescentes limitações nos processos eleitorais, na negação do direito à propaganda ou nas pressões inadmissíveis para fazer abortar as suas formas de luta.
A nossa Constituição integrou no Título dos direitos, liberdades e garantias os direitos fundamentais dos trabalhadores. Eles foram consagrados não porque tivessem sido dados ou garantidos como eternos, mas porque foram conquistados e só se defendem se os soubermos exercer e efectivar.
Hoje, perante a ofensiva ideológica que visa naturalizar a exploração e eternizá-la através da imposição de novos conceitos que não são mais que construções ideológicas e instrumentos de alienação do real, inculcadas com o claro objectivo de legitimar o apagamento de direitos duramente conquistados e a anunciar falsas inevitabilidades, a todos se nos coloca, a nós comunistas mas também a todos os democratas que têm como referência os valores de Abril, a necessidade do combate sério, da denúncia e do esclarecimento sobre a verdadeira natureza de tais construções e dos seus objectivos.
Veja-se o que se pretende com a imposição do conceito de flexigurança que, a concretizar-se em legislação concreta como pretendem o grande patronato europeu e nacional e as forças que se assumem com políticas de direita, degradaria ainda mais a componente de democracia social do nosso regime democrático com a possibilidade do patronato despedir sem justa causa, alterar a organização do trabalho a seu belo prazer e dispor, no fundo, da autonomia e da vida dos trabalhadores. Veja-se como se pretende contrabandear direitos fundamentais, desequilibrando ainda mais uma relação a favor de quem tem poder e dinheiro, a troco de uma hipotética segurança no desemprego que, se fosse verdadeira, seria logo posta em causa à primeira troca dos partidos do rotativismo institucionalizado.
Impedir que se reduza a democracia à democracia política e esta a um empobrecido rotativismo entre dois partidos são batalhas que se impõe travar em defesa do regime democrático. É por isso, também, que a defesa do regime democrático passa pelo combate às múltiplas formas de redução da democracia que estão em curso e que tem nas novas leis, ditas de “reforma do sistema político”, outro exemplo preocupante da evolução da nossa democracia.
As anunciadas alterações às leis eleitorais, que PS e PSD vêm trabalhando em segredo, não podem ser separadas do ambicionado projecto de favorecer, artificial e antidemocraticamente, os partidos políticos responsáveis pela política de direita. Com as alterações projectadas, PS e PSD visam consagrar uma concepção assente no poder absoluto, construída na base de maiorias absolutas administrativamente facultadas pelo novo sistema eleitoral e que lhes permitiria, alternada e partilhadamente, prosseguir as suas políticas e a sua ofensiva contra direitos e conquistas sociais.
Por mais que o pretendam iludir as alterações à legislação eleitoral — assentes na redução do número de deputados e na criação dos círculos uninominais — constituem um empobrecimento do seu carácter democrático e uma redução do principio da proporcionalidade.
Ao contrário do que PS e PSD sustentam, os círculos uninominais visam, conscientemente, promover uma concentração de votos nos dois maiores partidos em desfavor dos restantes, conduzindo objectivamente no seu resultado final a uma afectação da proporcionalidade.
Ao contrário do que PS e PSD sustentam, os círculos uninominais não contribuirão para uma credibilização dos deputados e para a sua aproximação com os eleitores, mas sim para a multiplicação de «casos» semelhantes aos que emergiram nas últimas eleições autárquicas e para afastar os eleitores, em regra a maioria, que não tendo votado no único candidato eleito, não se sentirá representada.
Ao contrário do que PS e PSD sustentam, a verdade é que estes círculos uninominais, por mais apresentados que sejam como sendo apenas «de candidatura», aparecerão realmente aos olhos dos eleitores como «de eleição», ampliando ao extremo os fenómenos de bipolarização que, como se sabe, desvirtuam a genuinidade de expressão da vontade eleitoral de largos sectores do eleitorado.
Na verdade, a alegada reforma do sistema político procura quase sempre, como a experiência demonstra noutras paragens, encobrir os seus reais propósitos de mutilação e empobrecimento da democracia e de monopolização do poder com uma densa cortina de nobres preocupações e inquietações a que jamais tal reforma dá resposta. Foi assim que se atacou, não há muito tempo, o direito à liberdade de organização política, dirigida particularmente contra o PCP, como a Lei dos Partidos e a do Financiamento dos Partidos e das Campanhas Eleitorais e agora se quer aprofundar com uma regulamentação para as coligações partidárias
Para o PCP, a liberdade de expressão, o pluralismo ideológico e partidário, o rigor e a qualidade da informação difundida pelos órgãos de comunicação social são parte integrante do regime democrático e que estão intrinsecamente ligados às formas de propriedade existentes, às relações de trabalho nas redacções e ao enquadramento legal a que estão sujeitos.
Se é verdade que com a revolução de Abril se rompeu com a censura e o domínio fascista da comunicação social, se possibilitou o exercício livre do contraditório, se promoveu o acesso à cultura e à formação integral do indivíduo, elementos estes que se afirmaram como uma conquista e um património do Povo português, também importa sublinhar que a comunicação social dominante tem ao longo destes anos desempenhado um papel crescente na legitimação da política de direita, na defesa de valores e concepções retrógradas e reaccionárias para a nossa sociedade, na imposição do pensamento único com o conjunto de efeitos que são conhecidos na formação de opiniões, no desenvolvimento da consciência política e social, no quadro de valores dominantes e na cultura democrática.
Há muito que os grupos económicos perceberam que a comunicação social para além de um grande negócio, é também um instrumento de pressão sobre o poder político e de dominação das opiniões e das consciências. O PCP não acompanha a tese dos que defendem que a comunicação social se constituiu num poder autónomo ou num quarto poder como alguns defendem. A realidade tem demonstrado que, independentemente do papel que continua a ter na denúncia e no esclarecimento e informação à sociedade, o que marca de forma crescente o conteúdo da informação difundida pelos media é a relação de propriedade, cada vez mais concentrada em 4 ou 5 grandes grupos económicos, à qual podemos juntar também, entre outros factores, a degradação das relações laborais dos profissionais da comunicação social, também eles sujeitos, e cada vez mais, a formas de limitação da liberdade de expressão.
O governo PS tem em desenvolvimento um conjunto de medidas de enquadramento legal que colocam inquietantes preocupações àqueles que, como o PCP, consideram que a ausência de pluralidade, de qualidade e de rigor na informação tem sido um factor de empobrecimento da democracia. Chamamos a atenção para a proposta de Lei do Estatuto do Jornalista, que contou a rejeição de mais de 2500 assinaturas recolhidas pelo Sindicato dos Jornalistas e que, a concretizar-se, configura um retrocesso na protecção da independência dos jornalistas e da liberdade de expressão.
Para o PCP não existem dúvidas quanto à necessidade de combater – e temos combatido - a crescente promiscuidade entre poder económico, poder político e os principais órgãos de informação. O aprofundamento desta relação é um sinal que não pode ser ignorado e que exige a sua inversão. Por isso, questionamos a hipócrita posição do PSD, que juntamente com o PS, foi responsável pela extinção da Alta Autoridade para a Comunicação Social e a sua substituição por uma outra estrutura esvaziada de poderes como é a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que defende a privatização da RTP e da RDP e que ao longo dos anos, numa postura que em nada se distinguiu do PS em matéria de governamentalização e instrumentalização dos media, venha agora agitar a bandeira da liberdade de informação.
Não estamos hoje, seguramente, no tempo do lápis azul e da censura e manipulação explícita. Mas o que nos preocupa é o sentido, o rumo, que tem sido tomado. Para os comunistas, para todos os que se sentem vinculados aos ideais e ao projecto de Abril, para todos os democratas, defender a liberdade de expressão e uma informação democrática e plural, constitui um imperativo que integra a luta mais geral por um país mais justo e um futuro melhor.
Por fim, cabe aqui também uma palavra para as crescentes limitações ao direito de propaganda política, direito esse Constitucionalmente consagrado e do qual a democracia, tal e qual nós a entendemos, não deve nem pode prescindir. As múltiplas acções que em vários locais se têm registado no sentido de impor limitações ao irrenunciável direito de propaganda constituem um inquietante sinal de intolerância e abuso de poder a que algumas entidades, ou os seus agentes e titulares, têm recorrido visando especialmente o PCP e as suas iniciativas de divulgação e afirmação política.
Esta nova fase na escalada contra o direito e a liberdade de expressão, sustentada no arbítrio e na arrogância, é reveladora de concepções antidemocráticas de quem as assume à margem da legislação e em clara violação de garantias, liberdades e direitos fundamentais.
Esta ofensiva tem-se traduzido nas exigências ilegítimas de licenciamento, de imposição abusiva de limitações quanto a espaços (quando a lei, e só ela, claramente tipifica os locais e regras a que deve obedecer), da pretensão da obrigação de informação ou autorização prévia, da invocação de abusivos regulamentos de publicidade para impedir iniciativas de propaganda, da inadmissível retirada de propaganda visual e das estruturas que lhe dão suporte, do impedimento de distribuição de documentos escritos em locais públicos invocando a natureza privada da propriedade dos espaços e locais, da identificação de membros do PCP e da JCP, de activistas e dirigentes sindicais e associativos – por parte das forças de segurança – e o levantamento de processos no sentido de criminalizar essas actividades.
Ofensiva que, em confronto com a Constituição da República, se tem vindo a acentuar, nomeadamente através da aprovação dos chamados regulamentos municipais de propaganda e publicidade que, de forma ilegal, procuram legitimar práticas anti-democráticas e anti-constitucionais sobre o direito de propaganda. Chamamos aqui a atenção para o processo particularmente grave que, estando longe de constituir o único, a Câmara Municipal do Porto tem desenvolvido no sentido de impedir a liberdade de expressão naquela cidade e que tem tido no PCP e no Movimento Sindical Unitário os seus principais alvos. Daqui reafirmamos que não há regulamento ou presidente de Câmara que possa sobrepor a sua vontade e estar acima da Lei Fundamental do país.
Sobre esta matéria, o PCP, exigindo o cumprimento da Constituição, não prescinde, aliás como nunca prescindiu – porventura em momentos mais difíceis, do seu inalienável direito de esclarecer, informar e mobilizar os trabalhadores e as populações, e de divulgar, junto dos mesmos o seu ideal e o projecto de sociedade e que continuará na prática a exercer as liberdades e garantias que a democracia e a Constituição nos confere e a resistir activamente contra todos os actos de intimidação e abuso de poder.
No tempo que foi preciso sempre foi o povo o protagonista da conquista da liberdade. No tempo que fôr necessário será o povo que erguerá os valores e ideias sempre perenes de Abril e do seu projecto de democracia!
Um apelo dirigido a todos os democratas, homens, mulheres e jovens, cidadãos preocupados com o seu país: Alarguemos as alamedas da liberdade em nome do nosso devir colectivo e assumindo a importante tarefa do esclarecimento em defesa do nosso regime democrático e das suas liberdades.