Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Define os objetivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2015-2017, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de maio, que aprova a Lei-Quadro da Política Criminal

(proposta de lei n.º 318/XII/4.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.ª Ministra,
Sr.ª Secretária de Estado,
Srs. Deputados,
De facto, a pergunta que se impõe neste início de debate, de certa forma, já foi feita, mas tem de ser enfatizada, porque a Sr.ª Ministra foi muito crítica, e bem, em 2006, aquando da aprovação nesta Assembleia da República, por proposta do Governo do Partido Socialista, de uma lei-quadro da política criminal. E foi muito crítica com boas razões, e nós também o fomos, considerando que esta lei era não só desnecessária como uma lei inadequada para o nosso ordenamento jurídico, tendo em conta o Estatuto do Ministério Público. Portanto, sempre considerámos que estávamos perante um propósito de governamentalização da política criminal, que era incorreta.
Ora bem, na altura a Sr.ª Ministra concordava connosco neste ponto e, aliás, foi muito contundente, como há pouco a Sr.ª Deputada Cecília Honório teve oportunidade de citar. Mas o que acontece é que agora o Governo vem apresentar uma proposta, quando o deveria ter feito, nos termos da lei, em 2011 para 2013.
Em 2011 para 2013 não o fez, em 2013 para 2015 também não o fez e agora vem apresentar uma proposta que, digamos, é uma disposição testamentária para os vindouros, porque o Governo não quis definir as suas prioridades mas agora quer definir as prioridades para o governo que há de vir.
A Sr.ª Ministra dir-me-á: «Bom, eu não estava de acordo com a lei, mas a lei é a lei, dura lex, sed lex, e eu tinha que a cumprir». Mas então não o fez. Ou seja, a Sr.ª Ministra não a cumpriu de 2011 para 2013, não a cumpriu de 2013 para 2015 e lembrou-se agora que tinha de cumprir a lei.
Portanto, a primeira questão é a de saber porquê, por que é que o Governo, que tinha a incumbência legal, não o fez, ou, então, o Governo estava no seu legítimo direito de propor a revogação da Lei-Quadro da Investigação Criminal, dizendo que não estava de acordo com ela, que não queria esta lei e que propunha a sua revogação.
Não o fez e, então, ao não o fazer, cometeu a incoerência total, que foi não a ter cumprido durante quatro anos e agora dizer: «Bem, nós não a cumprimos, mas os que hão de vir hão de ter a incumbência de o fazer» e apresenta agora a proposta de lei.
A pergunta é esta: porquê, Sr.ª Ministra?
(…)
Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados,
Sr.ª Ministra da Justiça,
Efetivamente, a Sr.ª Ministra não explicou por que é que só agora é que apresenta esta proposta de lei.
Disse-nos apenas que a lei anterior era má. Era, sim senhor, mas não se percebe por que é que atempadamente não corrigiu essa lei que considerou má e só ao fim de quatro anos é que vem apresentar uma proposta de lei para os governos vindouros!
Se a Sr.ª Ministra tivesse apresentado uma proposta para 2011/2013, 2013/2015 e agora apresentasse uma proposta para 2015/2017 ninguém estranharia. O que se estranha é que não a tenha apresentado nos quatro anos anteriores e que agora é que se tenha lembrado.
Sr.ª Ministra, efetivamente, do nosso ponto de vista, essas leis não fizeram falta nenhuma e isso resulta do parecer da Procuradoria-Geral da República, que, no seu início, refere, e bem, que a ausência de leis de política criminal durante os últimos quatro anos não impediu o Ministério Público de, no âmbito das suas competências, estabelecer objetivos, identificar prioridades e desenvolver projetos em conformidade com os mesmos, com base na perceção da evolução dos fenómenos criminais e na execução das opções de política criminal subjacentes à legislação penal e processual penal. E, Sr.ª Ministra, assim é que deve ser. Portanto, essas leis não fizeram falta nenhuma, como esta, do nosso ponto de vista, também não faz.
Sobre esta proposta de lei, a fundamentação da proposta de lei deve constar em anexo, e consta. Ora, se virmos atentamente qual é a fundamentação, nela se diz, e muito bem, que a identificação dos crimes de prevenção e investigação prioritários assentou na análise dos fenómenos criminais, sob a perspetiva do seu nível de incidência, bem como na ótica da importância dos direitos ofendidos e da gravidade das ofensas cometidas. Depois, manifesta grande preocupação com os crimes contra as pessoas, que representaram 24,1% da criminalidade participada. Portanto, refere os maus tratos sobre menores, o tráfico de pessoas, o abuso sexual de crianças, adolescentes e menores dependentes, o lenocínio e pornografia de menores e a violência doméstica.
Portanto, na fundamentação, esta é a prioridade das prioridades. Então, vamos ver a proposta de lei. Qual é a primeira prioridade? É o terrorismo. Ou seja, o terrorismo, que nem sequer consta da fundamentação, é a primeira prioridade, por decreto, Sr.ª Ministra, porque, de facto, não há uma incidência criminal que o justifique.
A Sr.ª Ministra pode dizer: «Mas o Sr. Deputado está a desvalorizar a perigosidade do terrorismo». Não estamos, Sr.ª Ministra. Estamos é a considerar que a fundamentação diz muito bem que aquilo que deve ser a prioridade em termos da afetação de meios é o que tem incidência criminal, não é aquilo que, por muito perigoso que pensemos que seja, e seguramente é, não tem uma incidência criminal. Aliás, tal como consta do Relatório Anual de Segurança Interna, felizmente, não existe ocorrência de crimes de terrorismo em Portugal. Mas, nesse caso, temos de dar obviamente toda a atenção a esse fenómeno. Não podemos é considerar, por decreto, a prioridade das prioridades da política criminal quando temos fenómenos criminais gravíssimos que afetam claramente, e com incidências concretas, grande parte da população portuguesa, que é preciso proteger.
Portanto, há aqui uma inversão de valores. Decreta-se que tem de ser o terrorismo. Haja o que houver, a prioridade é o terrorismo, porque assim se decretou. Mesmo que não haja cá crimes de terrorismo, não faz mal; não há, mas poderá haver! O critério não pode ser este, Sr.ª Ministra, embora nada objetemos quanto a dar prioridade aos crimes contra as pessoas.
Vou terminar, porque o tempo está a esgotar-se, dizendo que também não se percebe ao que vem o plano nacional de videovigilância e também não nos parece adequado colocá-lo como prioridade da política criminal.
Mas se não está como prioridade não faz cá nada, Sr.ª Ministra, porque esta é uma lei sobre prioridades.
Depois, o problema da violência no desporto é de facto um problema muito relevante, mas, convenhamos, é um problema muito relevante a exigir grande atenção sobretudo quando essa atenção se justifica. Quando há um Benfica/Porto, um Porto/Benfica, o Benfica/Sporting ou, vá lá, um Guimarães/Braga justifica-se que haja medidas especiais de prevenção da violência no desporto, mas considerar isso uma prioridade da política criminal, Sr.ª Ministra, por amor de Deus…
Não nos parece que seja adequado que conste deste diploma, tanto mais que na sua fundamentação não há uma palavra sobre a matéria e, portanto, está completamente metido a «martelo», o que não nos parece que faça algum sentido.
Portanto, sublinhamos: do nosso ponto de vista, esta lei não faz falta nenhuma. Devia ser o Ministério Público, como fez nos últimos quatro anos, a definir aquelas que devem ser as propriedades da política criminal, de acordo com a incidência dos fenómenos criminais e com a perceção daqueles que efetivamente têm a incumbência de combater, de facto, a criminalidade.

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