Intervenção de

Defesa Nacional e Forças Armadas - Intervenção de António Filipe na AR

 

Lei de Defesa Nacional
Regulamento de Disciplina Militar
Lei Orgânica de Bases de Organização das Forças Armadas

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sr.as e Srs. Deputados:
As alterações, que hoje discutimos, à Lei de Defesa Nacional, à Lei Orgânica de Bases de Organização das Forças Armadas e ao Regulamento de Disciplina Militar  (proposta de lei n.o 243/X, proposta de lei n.o 244/X e proposta de lei n.o 245/X) configuram a mais significativa alteração conceptual e organizacional das Forças Armadas portuguesas desde a extinção do serviço militar obrigatório.

Trata-se de uma reforma legislativa da maior importância, que deve ser ponderada por esta Assembleia com elevado sentido de responsabilidade e que deve ser objecto de um profundo debate, envolvendo os próprios militares, as respectivas associações e os seus dirigentes - cuja presença aqui saúdo - e o conjunto da sociedade portuguesa.

Ao contrário do que se poderia supor, ao ler a proposta de Lei de Defesa Nacional hoje em discussão, a defesa nacional não se limita à defesa militar e à organização das Forças Armadas; está muito para além disso.

A proposta de lei reconhece-o, inclusivamente quando prevê a participação dos ministros responsáveis pelas áreas da indústria, da energia, dos transportes e comunicações ou das finanças no Conselho Superior de Defesa Nacional, mas por aí se fica.

Esta proposta de lei limita-se a regular a componente militar da defesa nacional, sendo, assim, profundamente redutora.

Este conjunto de propostas de lei contém aspectos fundamentais dos quais o PCP discorda frontalmente.

Como o tempo de que dispomos é escasso, passarei a enumerar as nossas discordâncias fundamentais, sem prejuízo de outras que só será possível referir na especialidade e relativamente às quais não deixaremos de apresentar propostas.

As propostas de Lei de Defesa Nacional e de Lei Orgânica de Bases de Organização das Forças Armadas incluem, entre as missões das Forças Armadas, a colaboração com as forças e serviços de segurança em matéria de segurança interna e a cooperação com essas forças e serviços, tendo em vista o cumprimento conjugado das respectivas missões no combate a agressões ou ameaças transnacionais.

Portanto, incumbir as Forças Armadas de missões desta natureza contraria frontalmente o disposto na Constituição.

Tendo em conta a natureza específica das missões de segurança interna que são exercidas pelas forças e serviços de segurança, que, pelas suas óbvias implicações em matéria de direitos, liberdades e garantias, estão sujeitas ao controlo ou mesmo à direcção das autoridades judiciárias, não se entende como podem elas ser desempenhadas pelas Forças Armadas, sem que isso configure um verdadeiro estado de excepção, que a Constituição não admite em caso algum.

O que o Governo propõe é a consagração daquilo a que o General Loureiro dos Santos, em artigo ontem publicado no jornal Público, chama de «estado intermédio» entre a situação de paz e os estados de excepção.

Mas isso é inaceitável. A Constituição não permite situações intermédias entre a normalidade constitucional e os estados de excepção, que estão tipificados, e que são o estado de sítio, o estado de emergência e o estado de guerra.

Porém, a proposta de Lei da Defesa Nacional e a proposta de Lei Orgânica de Bases de Organização das Forças Armadas prevêem amplamente esse novo estado de excepção, com carácter de normalidade e com a agravante de ser exercido sob a mais estrita governamentalização.

A cooperação operacional, para efeitos de colaboração entre as Forças Armadas e as forças de segurança, será feita entre o CEMGFA e o todo-poderoso Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna, sob a coordenação e orientação do Ministro da Defesa Nacional.

O Presidente da República limita-se a ser informado; a Assembleia da República nem isso; o controlo judicial não existe; a governamentalização é absoluta.

O que diz o artigo 275.º da Constituição é que às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República, satisfazer, nos termos da lei, os compromissos internacionais do Estado português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte, podendo ainda, nos termos da lei, ser incumbidas de colaborar em missões de protecção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, e em acções de cooperação técnico-militar no âmbito da política nacional de cooperação.

Em parte alguma da Constituição se admite que as Forças Armadas possam ser incumbidas de missões de segurança interna.

É essa a tendência desde o 11 de Setembro, dizem-nos; é o que fazem outros países para combater o terrorismo, também nos dizem; é o «ambiente estratégico internacional», ainda há pouco aqui dizia o Sr. Ministro. Mas não é o que diz a Constituição Portuguesa.

E as missões das Forças Armadas portuguesas têm de ser definidas no quadro da Constituição, independentemente do que outros digam, façam ou mandem fazer, tanto mais quanto o tal ambiente estratégico internacional tem servido para justificar prisões ilegais, voos secretos, guerras de pilhagem e de ocupação, violações dos direitos humanos e crimes contra a humanidade.

Esse ambiente estratégico rejeitarmo-lo frontalmente. O nosso ambiente estratégico é o que consta do artigo 7.º da Constituição, é o do respeito pelos princípios da independência nacional, dos direitos do Homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade.

Sr. Presidente e Srs. Deputados:

Um segundo ponto de que discordamos frontalmente diz respeito à governamentalização da política de Defesa Nacional, que se reflecte nestas propostas de lei aos mais diversos níveis. Reflecte-se, desde logo, na aprovação do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, que é feito exclusivamente pelo Governo, limitando-se a Assembleia da República a um debate sem quaisquer consequências.

Reflecte-se também na composição do Conselho Superior de Defesa Nacional, onde a Assembleia da República está, a nosso ver, sub-representada.

Não faz qualquer sentido que, num órgão presidido pelo Presidente da República, onde participa o Primeiro-Ministro e pelo menos mais seis ministros, a Assembleia da República esteja representada pelo Presidente da Comissão Parlamentar de Defesa e por mais dois Deputados escolhidos entre o PS e o PSD.

Entendemos que a representação adequada da Assembleia da República deveria incluir o seu Presidente e, no mínimo, o Presidente e os Vice-Presidentes da Comissão de Defesa Nacional.

Porém, a governamentalização assume foros de escândalo, quando se trata de decidir do envolvimento das Forças Armadas portuguesas em operações militares fora do território nacional.

O Governo decide unilateralmente sobre essa participação, a Assembleia da República acompanha esse envolvimento, através de uma informação prestada pelo Ministro da Defesa Nacional, e o Presidente da República, que é o comandante supremo das Forças Armadas limita-se a ser informado previamente pelo Primeiro-Ministro sobre essa participação.

No limite, um Governo pode decidir enviar um contingente militar português para um teatro de guerra fora do território nacional, mesmo que o Presidente da República e a maioria da Assembleia da República discordem dessa decisão, e isto é inaceitável.

As Forças Armadas não são um mero organismo sob tutela governamental, estão ao serviço do povo português e obedecem não apenas ao Governo mas também aos órgãos de soberania no seu conjunto.

O Governo tem, obviamente, particulares responsabilidades na condução da política de defesa nacional, mas não faz qualquer sentido, em nossa opinião, que o envolvimento de contingentes militares portugueses em operações fora do território nacional, para além das missões de cooperação técnico-militar, possa ser decidido sem a expressa concordância da Assembleia da República e do Presidente da República, que as comanda superiormente por imperativo constitucional.

Um outro ponto de discordância fundamental da parte do PCP em relação à proposta de Lei de Defesa Nacional, mas com implicações relevantes também em matéria de disciplina militar, diz respeito às restrições, que se mantêm, quanto ao exercício de direitos pelos militares.

Os militares têm liberdade de expressão desde que não ponham em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas; têm o direito de se manifestar desde que isso não ponha em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas; têm direito de petição desde que isso não ponha em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas.

E quando é que o exercício das liberdades de expressão, de manifestação e de petição põe em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas? Muito simplesmente, quando o Governo ou as chefias militares entendem que sim.

Ao abrigo da Lei de Defesa Nacional, criou-se um regime de total arbitrariedade na restrição dos direitos dos militares e de instrumentalização da disciplina militar com fins repressivos, que é inaceitável e que deveria ser alterado, precisamente a bem da coesão e da disciplina das Forças Armadas.

Por outro lado, é obviamente inconstitucional a disposição que pretende proibir a apresentação de queixas ao Provedor de Justiça por parte de militares antes de esgotados os recursos administrativos legalmente previstos.

O artigo 23.º da Constituição é absolutamente claro quando dispõe que a actividade do Provedor de Justiça é independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis.

A proposta de lei de Regulamento de Disciplina Militar justifica ainda, desde já, dois reparos fundamentais. Primeiro: não concordamos que, no território nacional e em tempo de paz, possam ser aplicadas penas de prisão disciplinar. Salvo situações excepcionais, em tempo de guerra ou em teatros operacionais, a privação da liberdade só deve ser determinada por decisão judicial, quando esteja em causa a prática de crimes que sejam punidos com penas de prisão.

A prisão disciplinar, aplicada por decisão de superiores hierárquicos, é um resquício do passado que deve ser eliminado da nossa ordem jurídica.

Em 1978, quando ratificou a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o Estado português reservou-se o direito de contrariar o disposto na Convenção nos casos de prisão disciplinar imposta a militares em conformidade com o Regulamento de Disciplina Militar.

Não faz sentido que essa reserva se mantenha e, nesse sentido, o PCP apresenta hoje um projecto de lei para que o Estado português retire a reserva que formulou à aplicação integral da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e deixe de prever a prisão disciplinar imposta a militares em tempo de paz.

Segundo reparo: o Governo mantém na proposta de lei esse verdadeiro absurdo que consiste na imposição do RDM aos militares na reserva e na reforma, em termos, aliás, contraditórios.

Diz-se, a dado passo, que os militares na reserva só estão sujeitos aos deveres de disponibilidade e de aprumo quando façam uso de uniforme e que os militares na reforma só estão sujeitos a este último.

Mas, mais adiante, diz-se que aos militares na reserva podem ser aplicadas sanções gravíssimas, como a reforma compulsiva e a separação de serviço, podendo os militares na reforma ser sancionados com a separação de serviço.

O dever de aprumo, segundo a definição legal, consiste na limpeza e conservação do fardamento.

Como é que se pode, então, conceber que um militar reformado possa ser punido com uma pena tão grave como a separação de serviço, que implica a perda da condição militar, por violação do dever de aprumo?

Como é evidente, esta proposta de RDM contém uma margem de discricionariedade na aplicação de medidas disciplinares que não é aceitável.

Nos termos do artigo 109.º, basta um «vago rumor» - estou a citar - de infracção disciplinar para que se possa desencadear um processo de averiguações e basta uma vaga violação de um qualquer vago dever para que possa ser imposta a um militar no activo, na reserva ou na reforma uma sanção com consequências muito concretas na carreira, na liberdade pessoal ou mesmo na condição militar do visado.

O PCP votará contra as propostas de lei que o Governo hoje apresenta e apresentará propostas na especialidade para que as disposições mais graves e inconstitucionais que delas constam sejam corrigidas e para que as Forças Armadas Portuguesas não sejam desviadas das missões que lhes estão constitucionalmente cometidas.

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