Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores Membros do Governo,
Para aqueles que têm memória curta ou que auto-bloqueiam a lembrança do que não lhes convém, importa recordar que a revisão do artigo 31º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas é para o PCP uma prioridade de agenda parlamentar há muitos anos.
Apresentámos pela primeira vez um projecto de lei de revisão do artigo 31º na VI Legislatura, há mais de 8 anos.
Na Legislatura passada, reapresentámos o projecto, e agendámos em 1998 a sua discussão pelo Plenário da Assembleia da República.
Colocámos assim a matéria na ordem do dia do Plenário da Assembleia da República. Só o Governo veio mais tarde, já depois do debate do Projecto do PCP, apresentar alterações ao artigo 31º, incluídas na proposta de revisão da Lei de Defesa tornada necessária pela aprovação da nova Lei do Serviço Militar. A proposta do Governo era então francamente má, especialmente no que toca ao associativismo militar. Mas os Deputados do PS apresentaram um alteração a essa norma, alteração com um conteúdo globalmente positivo. Foram votadas as propostas do PCP e do PS sobre associativismo militar, mas foram ambas inviabilizadas, nos dois terços necessários, pela direita parlamentar. Fugindo à responsabilidade de, com esse voto contra estar a obstruir a mudança necessária do artigo 31º, o PSD invocou uma questão metodológica, a de que essa revisão só poderia ser feita no quadro geral da revisão da Lei de Defesa. Vê-se agora a seriedade do argumento, com o PSD a apresentar projectos desinseridos de qualquer revisão da Lei. Mas, não se espere que o PSD venha fazer uma autocrítica, basta ver os textos que agora apresenta, para se ver que a razão de fundo que levou na Legislatura passada o PSD a votar contra é a mesma que o leva agora a apresentar textos altamente limitativos, retrógrados e esvaziadores dos direitos que diz querer consagrar.
Na presente Legislatura foi, o PCP quem mais uma vez tomou a iniciativa. Apresentámos o nosso Projecto de Lei nº 14/VIII logo no começo da Legislatura. Em sede de Comissão Parlamentar insistimos com as outras forças políticas: ou apresentavam iniciativas dentro de um prazo aceitável, ou levaríamos o nosso projecto a debate no Plenário. Um ano e meio depois, finalmente, PSD e Governo entregaram iniciativas, já depois de o PP o ter feito há uns tempos.
Vamos agora discutir a alteração do artigo 31º da Lei de Defesa. Mas é preciso que fique à partida bem esclarecido o seguinte: a revisão do artigo 31º que é necessária é a que consagra o princípio do reconhecimento dos direitos, liberdades e garantias dos militares e dê aos respectivos limites um carácter excepcional e de estrita medida. Para continuar a considerar que o princípio aplicável aos militares é o da limitação de direitos e que o exercício desses direitos é a excepção, já basta a actual formulação do artigo 31º. Como diz a canção, para pior já basta assim.
O artigo 31º nasceu em 1982, após a primeira revisão constitucional, num contexto político adverso aos militares. O artigo 31º foi aprovado pelo PS, PSD e CDS na decorrência de um espírito de desconfiança e de até de algum revanchismo contra os militares. Houve muitas vozes que então se levantaram contra essa norma. Pelo seu significado quero lembrar que o então Presidente da República Ramalho Eanes invocou vários pontos desse artigo para fundamentar o veto à Lei de Defesa e que o então Deputado Jorge Sampaio e actual Presidente da República votou contra o seu conteúdo.
O artigo 31º mantêm-se em vigor vai para 19 anos. Mas, desde a sua elaboração que ele é retrógrado e contrário à afirmação dos direitos humanos dentro das Forças Armadas. É um abcesso na vida democrática, que envergonha Portugal. Manteve-se estes anos todos, apesar de logo em 1984 o Parlamento Europeu ter aprovado o Relatório Peters defendendo o reconhecimento aos militares do direito de associação; apesar de 1988, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa ter aprovado o Relatório Apenes, no mesmo sentido; apesar de aqui, na Assembleia há mais de uma década a Comissão de Defesa receber regularmente as associações militares para apreciar questões de natureza socio-profissional e não meramente deontológica; apesar de o mesmo terem feitos vários membros do Governo; apesar da presença de representantes dos órgãos de soberania, dos partidos parlamentares e da hierarquia militar em realizações das associações sobre temas de natureza profissional e político-profissional, como por exemplo a análise do próprio artigo 31º da Lei de Defesa e as propostas para a sua substituição.
Estas práticas não significam que a alteração da Lei não continue a ser decisiva. Porque, se essas práticas representam uma situação concreta de progresso, elas estão sujeitas a um permanente vaivém e não passam de uma espécie de tolerância precária que nem todos partilham (basta ver a recente tentativa de punição disciplinar do Presidente da Associação Nacional de Sargentos) e que está sempre sujeita a cessar por mera discricionaridade.
É preciso assim rever a Lei.
O Projecto do PCP é claro. Afirmamos em relação a cada direito o princípio de que ele assiste aos militares. Reduzimos os limites como deve ser feito nos termos constitucionais. Por um lado, as limitações têm de circunscrever-se à estrita medida das exigências das suas funções. Estrita é o que diz o artigo 270º da Constituição. Depois devem obedecer ao artigo 18º da CRP, isto é, devem obedecer aos princípios da necessidade e da proporcionalidade e não devem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias.
No nosso projecto, não usamos expressões ambíguas que sejam mais tarde fonte de conflitualidade na sua aplicação.
Para fazer uma caracterização do espírito do nosso projecto, ele pode resumir-se assim: o projecto do PCP entende os militares como cidadãos, entende que os direitos fundamentais fazem parte da essência da democracia e se devem estender a todas as instituições, considera que os militares portugueses são patriotas com um alto sentido do dever e das suas responsabilidades, confia no seu sentido ético e de coesão e de disciplina, e entende assim que as limitações de direitos não podem ser um voto de desconfiança, devendo ser circunscritos ao indispensável.
Tomando como referência o nosso projecto e comparando-o com as soluções definidas pelos outros projectos, gostaria de salientar três questões, a do direito de associação, a liberdade de expressão e a capacidade eleitoral passiva.
Quanto ao direito de constituição de associações profissionais de militares, o PCP propõe que ele seja expressamente reconhecido na Lei. Não defendemos a constituição de sindicatos militares, não só por não corresponderem aos sentimentos do país sobre a questão nem estarem na ordem do dia das preocupações dos próprios, mas também por não serem necessários para o objectivo de prossecução de interesses sócio-profissionais, que se pretende consagrar. Mas, também não vale a pena diabolizar esse tipo de solução. A Holanda, por exemplo, reconhece os sindicatos e nenhum dos senhores Deputados vai aqui dizer que as Forças Armadas holandesas não são altamente profissionais e eficazes. Ou será que acham, como o Senhor Primeiro Ministro, que os portugueses são pouco profissionais, e que não se lhes pode dar uma migalha que querem logo o banquete?
A proposta do Governo vai no mesmo sentido de consagrar um efectivo direito de constituição de associações profissionais. Também isso sucede com o Projecto do PP (isto no pressuposto de que as associações de militares que o PP consagra no artigo 31º-C têm vida autónoma e não estão limitadas a intervir no Conselho que o PP prevê no nº 2 do mesmo artigo, já que parece que essa é a leitura razoável da totalidade da norma, particularmente das alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 31º.
Já quanto ao PSD, veio-lhe mais uma vez ao de cima o velho e caturra espírito de suspeita sobre a vida democrática. Aquele mesmo espírito que levou o Governo do Dr. Durão Barroso e do Dr. Carlos Encarnação à indiscritível cena de transformar o Terreiro do Paço um palco da peça "polícia molha polícia". O velho espírito da carga na Ponte 25 de Abril. Da chanfalhada dada a tempo. Desta vez, para fazer o que diz ser o reconhecimento do associativismo militar, proíbe associações a contratados, limita o poder representativo à representação junto da hierarquia militar o que pressupõe a exclusão por exemplo da representação junto dos órgãos de soberania, só permite reuniões nas respectivas instalações ou "em outro lugar especialmente destinado para o efeito" (saiba quem pode o que isto quer dizer!), exclui as matérias remuneratórias e de direitos gerais do âmbito das suas finalidades, limita os direitos de expressão e outros direitos das associações para além ainda das limitações que já impendem sobre os militares, enche-as de proibições de conteúdo tão vasto que na prática as torna silenciosas e decorativas. Isto é: o PSD vai muito para trás do que é a prática consentida actual até daquela prática que ele próprio tem, por exemplo, na Comissão de Defesa e nos colóquios e actividades das Associações em que aceita participar.
Quanto à liberdade de expressão, para o PCP os limites devem estar nos princípios gerais (isenção político-partidária) e no sigilo decorrente da classificação de documentos para garantia dos interesses de Defesa Nacional (o que envolve, como se sabe, as actividades das Forças Armadas de natureza operacional e outras conexas). Limitar mais do que isto é entrar no campo do arbítrio e da restrição desproporcionada e violadora do princípio da necessidade.
Nós não confundimos o texto da proposta de lei com claras marcas de progresso, com o projecto do PSD restritivo e retrógrado. Mas esta matéria do direito de associações, serve justamente para evidenciar como a proposta do Governo cai por vezes no esvaziamento de direitos que proclama reconhecer. A liberdade de expressão para o Governo é proclamada como total ("têm o direito de proferir declarações públicas sobre qualquer assunto"), o pior são as excepções: tem de ter a reserva própria do Estatuto da condição militar, não pode incidir sobre a condução da política de Defesa Nacional, não pode pôr em risco a coesão e disciplina, não pode desrespeitar o apartidarismo, nem o dever de isenção política e sindical, não pode versar sobre factos de que tenham conhecimento em virtude do exercício da função, incluindo elementos sobre pessoal! Estas excepções, para além da extensão, contém numerosos conceitos indefinidos, contraditórios ou desenquadrados. Por exemplo: se o que se está a definir é a liberdade de expressão, porquê esta especial chamada de atenção para o estatuto da condição militar? O que é a isenção política, quando no corpo do artigo no que se fala é de isenção político-partidária, que é a que tem sentido face à Constituição? Porquê a referência a dados sobre pessoal quando os problemas das associações de militares versam fundamentalmente sobre esse tipo de questões? O que é a condução da política de defesa? Está nela incluída a política para as Forças Armadas incluindo as questões estatutárias? Uma lei como esta não pode ser tão perigosamente a leituras restritivas e esvaziadoras.
A terceira questão é a da capacidade eleitoral passiva. Aqui há que fazer um reparo. Por causa da questão dos pilotos, a questão é noticiada, como se a norma actual fosse permissiva, libertária, afirmativa de direitos. É falso. Quando esta norma foi feita em 1982, foi para impedir os militares de se candidatarem a cargos políticos, foi para tirar aos militares a capacidade eleitoral passiva, obrigando-os a deixar o activo e a abandonar a carreira, passando à reserva. Quis o destino que 15 anos depois a norma fosse usada de forma perversa, transformando o que era uma "punição" da condição militar uma via para sair do activo.
O que é preciso é restituir aos militares a capacidade eleitoral passiva (com o que se acaba com a excessiva restrição do direito e, ao mesmo tempo, se inviabilizam os abusos). Todos o fazem, o PCP através da figura da licença limitada, o Governo com licença especial, o PP com a comissão especial de serviço, o PSD com a suspensão de funções.
Só que PCP, Governo e PP estendem essas figuras ao exercício dos mandatos que decorrem da eventual eleição. Se reconhecem a capacidade eleitoral passiva, não vão tirar depois o direito de exercer o mandato para que foi eleito quem exerceu a sua capacidade eleitoral passiva.
Ao contrário, o PSD, que aceita que o militar se candidate e continue no activo, já o quer obrigar a passar à reserva se ele quiser exercer o mandato, ainda por cima tendo que pagar uma indemnização ao Estado. Esta solução é inconstitucional por limitar os direitos políticos fora da previsão do artigo 270º.
Mas, aqui, deve dizer-se em abono da verdade, que a pior de todas as soluções é a que está em vigor. É urgente alterá-la, tanto mais que se aproximam autárquicas.
Ora, o debate de toda a matéria de alteração do artigo 31º vai ser complexo e demorado. Não deve ser feita sob uma espécie de chantagem temporal. Além das questões que referi, há outras complexas, como a da petição colectiva (que o PSD na prática nega), a aplicação da lei aos contratados, aos militarizados, a aplicação de direitos laborais. Há ainda presente na Assembleia uma outra alteração, à Lei de Defesa, e outras alterações têm sido referidas, incluindo quanto à composição do Conselho Superior de Defesa Nacional.
Não é aceitável que a pressão temporal da questão da capacidade eleitoral passiva nos conduza a uma má lei, que, no limite até possa configurar retrocessos ao regime actual.
Da nossa parte, estamos abertos a tratar da questão da capacidade eleitoral passiva em prazo curtíssimo de forma isolada, como aliás faz o PSD ao apresentar um projecto só sobre a matéria.
Teremos então oportunidade de aprofundar a outras alterações propostas. Com sentido democrático, e para prestigiar as Forças Armadas e os militares que as compõem, os cidadãos portugueses que honram o País com o seu alto sentido do dever e das suas responsabilidades. Os militares que só nos pedem, à Assembleia, que sejamos justos para com eles, tanto como eles respeitam a pátria e a Constituição que juraram defender, até com a própria vida.