Intervenção de

Crime de enriquecimento ilícito

 

Cria o tipo de crime de enriquecimento ilícito

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Em primeiro lugar, quero registar positivamente a anuência do Grupo Parlamentar do BE para que neste seu agendamento potestativo pudesse ser incluída a apreciação do projecto de lei do PCP que cria o crime de enriquecimento ilícito (projecto de lei n.º 25/XI /1.ª).

Esta iniciativa do PCP propõe que os cidadãos que, nos termos da lei, sejam obrigados a efectuar declarações de património e rendimentos, tendo em conta os cargos públicos que exercem, incorram num ilícito criminal caso o património e os rendimentos que possuem se revelem anormalmente superiores aos que constam das declarações que efectuaram ou aos que decorreriam das remunerações correspondentes aos cargos públicos e às actividades profissionais que exercem.

O processo legislativo que ocorreu nesta Assembleia entre 2007 e 2008, onde a discussão sobre o enriquecimento ilícito já esteve presente, foi, como todos sabemos, uma oportunidade perdida, não correspondeu às expectativas criadas, não contribuiu para prestigiar a Assembleia e não deu o contributo legislativo necessário para combater comportamentos criminosos que minam a credibilidade do Estado democrático. De então para cá, como sabemos, a preocupação com o fenómeno da corrupção não diminuiu, bem pelo contrário. O sentimento de impunidade de corruptos e corruptores não só se manteve como se agravou. A ideia de que a lei é dura, mas só para com os fracos, e ineficaz para com os poderosos é uma convicção que se generaliza e que mina a confiança nas instituições políticas e judiciárias.

É hoje uma evidência, Srs. Deputados, que os tipos de crime estabelecidos na nossa lei penal são insuficientes e inadequados para permitir uma eficaz dissuasão e para punir efectivamente o fenómeno da corrupção no exercício de funções públicas.

Aliás, isso mesmo é reconhecido num recente relatório de monitorização da reforma penal, que ainda há muito pouco tempo tivemos oportunidade de debater na 1.ª Comissão. Diz-se nesse relatório, apresentado em Outubro de 2009, portanto, há exactamente dois meses, que «até agora, a justiça portuguesa não conseguiu que um único caso de criminalidade económico-financeira grave que envolvesse pessoas poderosas tivesse chegado ao fim com uma condenação transitada em julgado». Isto consta do relatório de monitorização da reforma penal.

Não podemos deixar de ter em conta este facto e esta observação, não podemos ignorar a gravidade deste estado de coisas.

Consideramos, por isso, que a criminalização do enriquecimento ilícito dos titulares de cargos públicos é uma exigência de transparência democrática e um instrumento indispensável para impedir que o exercício de funções públicas possa ser usado para enriquecer de forma ilegítima à sombra de dispositivos legais que se revelam quase totalmente ineficazes.

Sabemos que esta não é a receita milagrosa para prevenir a corrupção, que há outros problemas a considerar, desde a falta de meios das autoridades judiciárias até à ineficácia dos meios de prevenção existentes, passando mesmo pela inadequação de outros mecanismos legais, mas consideramos que esta criminalização tem uma importância que não deve ser subestimada. O titular de um cargo político ou de um alto cargo público, incluindo aqui tanto o sector público administrativo como o sector empresarial do Estado, exerce o seu cargo tendencialmente em dedicação exclusiva e se tiver outras actividades tem obrigação legal de as declarar.

O património e os rendimentos desse titular são objecto de uma declaração que é entregue no Tribunal Constitucional, de acesso público, e que no caso de titulares de órgãos executivos deve ser renovada anualmente, embora saibamos que um anterior presidente da REN não entregou a renovação da sua declaração de rendimentos durante 10 anos.

Se o Ministério Público demonstrar que o titular de um cargo político ou de um alto cargo público possui um património ou um nível de rendimentos anormalmente superior ao que seria suposto, tendo em conta as actividades que exerce, e se o Ministério Público demonstrar que esses bens foram adquiridos durante o exercício dessas funções, será pedir demais que esse titular demonstre a origem lícita desses proventos?

Não é pedir demais, Srs. Deputados! Não será a criminalização do enriquecimento ilícito dos titulares de cargos públicos uma exigência de transparência democrática, um instrumento indispensável para impedir, de facto, que o exercício de funções públicas possa ser usado para enriquecer de forma ilegítima e imoral à sombra de dispositivos legais ineficazes? Consideramos que é, de facto, uma exigência de transparência democrática. Srs. Deputados, os argumentos que foram opostos, em Abril de 2009, pelo PS à nossa proposta não têm razão de ser. Em 2009 acusaram-nos de eleitoralismo, em Abril de 2009 diziam que o facto que nos motivava era o facto de haver eleições em Setembro. Srs. Deputados, agora não temos eleições à vista, pelo que esse argumento cai absolutamente pela base, não faz sentido.

Um outro argumento era que esta criminalização tinha poucos precedentes no Direito Comparado. Também não é argumento. Podemos dizer que, infelizmente, poderá não ter muitos precedentes, mas está consagrada numa convenção das Nações Unidas, aliás, ratificada pelo Estado português. Portanto, está muito longe de ser uma figura exótica, como o Partido Socialista, em Abril, queria fazer crer. Um outro argumento, já célebre, era o de que essa proposta seria inconstitucional, porque, supostamente, invertia o ónus da prova e contrariava, por isso, o princípio da presunção de inocência. Bom, importa registar que são cada vez mais as vozes de penalistas e de constitucionalistas que consideram, com fundamentos bastantes, que essa objecção não tem razão de ser.

Tenho aqui comigo um trabalho do Dr. Euclides Dâmaso Simões, publicado na revista Polícia e Justiça, onde refere que «é à acusação que competirá provar que o património do agente público não é compatível com os proventos que auferiu licitamente. Será ao Estado que caberá provar o facto típico, antijurídico e culposo. A justificação que o acusado queira trazer ao processo mais não constituirá que o exercício legítimo do seu direito de defesa». No número seguinte da mesma revista, é o Dr. Júlio Pereira, actual Secretário-Geral dos Serviços de Informação da República Portuguesa (SIRP), que, mais uma vez, vem refutar a ideia de que a criminalização do enriquecimento ilícito representaria a inversão do ónus da prova.

Portanto, não faz qualquer sentido continuar a insistir nessa ideia.

Quero pronunciar-me brevemente, em nome da bancada do PCP, sobre os outros projectos de lei apresentados pelo Bloco de Esquerda para dizer que acolhemos favoravelmente os projectos de lei sobre o sigilo bancário no seu conteúdo e que vale a pena serem devidamente ponderadas por esta Assembleia as alterações propostas às molduras penais dos crimes de corrupção.

Há dois projectos de lei sobre os quais não se nos afigura que a solução técnica encontrada seja a mais feliz. Refiro-me, desde logo, ao enriquecimento ilícito, porque parece-nos - enfim, permitir-se-á a modéstia da parte da minha bancada - que a solução que encontrámos é melhor e teria mais eficácia no combate ao enriquecimento ilícito. É que o Bloco de Esquerda coloca a questão na demonstração por parte do Ministério Público de que a aquisição de determinados bens não resultaria de nenhum meio de aquisição ilícito. Ora, quer parecer-nos que o problema não está na aquisição em si, porque é possível um corrupto, com base no dinheiro que adquiriu por via da corrupção, comprar licitamente uma propriedade. Portanto, o problema não está na licitude da aquisição mas em saber como ele arranjou o dinheiro. Assim sendo, é por aí que deveríamos actuar.

Parece-nos, pois, que, em sede de especialidade, poderemos todos procurar encontrar uma solução adequada. Relativamente à cativação das mais-valias, também somos da opinião de que há aqui um problema que deveria ser ponderado.

O que acontece normalmente é que o problema não está na transmissão onerosa. Ora, o Bloco de Esquerda pretende que as mais-valias resultantes de ganhos obtidos pela transmissão onerosa de activos prediais revertam para o Estado. O problema é que não há transmissão, ou seja, o proprietário de um terreno que é objecto de uma alteração, passando, por exemplo, de rural a urbano, evidentemente que, a partir do momento em que obtém essa transformação, não vai proceder à transmissão onerosa, porque aí ele passa a ser directamente o beneficiário dessa transformação. Portanto, temos é de prevenir que não possa haver uma manipulação dos instrumentos de gestão territorial ao serviço de interesses que não devem ser considerados. No entanto, a questão fundamental é que, em geral, estamos perante um bom contributo para o combate à corrupção e pensamos que esta Assembleia faria mal em desperdiçar a oportunidade para, desta vez, nesta Sessão Legislativa, poder contribuir positivamente, em termos legislativos, para combater esse verdadeiro flagelo.

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado José Luís Ferreira,

Vou ter de responder-lhe com muita brevidade, por razões que se compreendem.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que importa salientar o facto de, realmente, Portugal ter ratificado a Convenção das Nações Unidas sobre o combate à corrupção, a qual prevê precisamente a criminalização por parte dos Estados-membros do enriquecimento ilícito. Depois, devo também dizer que, do nosso ponto de vista, não há qualquer inversão do ónus da prova.

A este propósito, aproveitaria agora, pois não tive oportunidade de fazê-lo na minha intervenção, para fazer uma brevíssima citação de um artigo do Dr. Júlio Pereira. E pode parecer estranho o PCP estar a fazer aqui citações do Dr. Júlio Pereira, Secretário-Geral dos Serviços de Informação da República Portuguesa, mas, neste artigo, consideramos que vale a pena. É que ele refere exactamente que «a não justificação pelo arguido da proveniência dos bens não integra os elementos constitutivos do crime. A sua inserção na norma tem como único objectivo fixar uma causa atípica de exclusão da ilicitude, permitindo que o arguido justifique a sua situação patrimonial.

Nestas circunstâncias, a prova solicitada ao arguido ou por este espontaneamente apresentada redunda no seu exclusivo proveito, pelo que não há qualquer inversão do ónus da prova, nem ao arguido é exigida qualquer conduta que beneficie a acusação».

Creio que esta explicação é muito clara, no sentido de que, na criminalização do enriquecimento ilícito, não há qualquer inversão do ónus da prova e não há, portanto, qualquer inconstitucionalidade.

  • Justiça
  • Assembleia da República
  • Intervenções