Intervenção de Bernardino Soares na Assembleia de República

Cria um regime de composição dos litígios emergentes de direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos

Procedendo à quinta alteração ao Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, e à segunda alteração ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 48-A/2010, de 13 de Maio
(proposta de lei n.º 13/XII1.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr. Ministro da Saúde,
Os meus cumprimentos.
Sr. Ministro, estamos hoje a debater uma matéria muito importante que se arrasta há vários anos sem a necessária solução e que tem impedido a entrada de medicamentos genéricos no mercado nos últimos anos,
com base numa fraude à lei que é a utilização das providências cautelares por parte da indústria farmacêutica detentora de patentes.
Essa questão é evidentemente importante. Gostaria de colocar-lhe duas questões sobre esta matéria, uma das quais tem a ver com as regras que são estabelecidas, e alterando o Estatuto do Medicamento, em matéria de sigilo. Naturalmente, tem de haver por parte de todos os intervenientes sigilo no tratamento dos processos, que têm muitas vezes segredos comerciais, de autorização dos medicamentos, de estabelecimento das comparticipações e de outros procedimentos que cabem ao INFARMED (Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde).
O problema é que vigora entre nós uma prática que é a de nunca ou quase nunca se ter acesso às fundamentações que são usadas pelo INFARMED e pelos seus organismos próprios para atribuir, ou não, uma comparticipação e determinada comparticipação, e para atribuir um determinado preço em função de critérios objectivos, que se espera sejam utilizados.
Portanto, uma coisa é garantir o sigilo em matéria de protecção do segredo comercial das empresas que detêm a patente de determinado medicamento; outra coisa é criar um mecanismo que impeça a transparência dos fundamentos da decisão, em cada caso concreto, para que todos possam ter a certeza de que há rigor, seriedade e objectividade na aplicação de determinada comparticipação, no estabelecimento de determinado preço. E as alterações que o Governo propõe em matéria de sigilo parecem dificultar, ainda mais, essa transparência, e essa matéria devia ser estudada, na especialidade, com vista a não avançarmos nesse sentido.
Mas não posso deixar de colocar-lhe uma outra questão, tendo em conta que o Sr. Ministro terminou a sua intervenção a falar do direito de acesso a medicamentos.
Queria perguntar-lhe, Sr. Ministro, se já é capaz de nos dizer qual a justificação de política de saúde que possa levar à descomparticipação da pílula contraceptiva, da vacina do cancro do colo do útero e de uma série de outros medicamentos que têm óbvia utilidade para um grande número de cidadãos, sendo que, não havendo decisão definitiva — diz o Ministério da Saúde!… —, tem estado em cima da mesa a possibilidade de se descomparticipar estes medicamentos e estas vacinas, o que teria consequências dramáticas para a saúde pública e para o acesso ao medicamento por parte de muitos portugueses.
Em concreto, a questão da pílula tem uma influência decisiva em matérias de saúde pública, de prevenção de gravidezes indesejadas e de garantia do direito ao planeamento familiar para as mulheres portuguesas. Ora, quando se vem aqui falar de direito de acesso aos medicamentos, é muito importante que o Governo esclareça se vai limitar este acesso aos medicamentos.
(…)
Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados:
A questão que hoje aqui abordamos tem, de facto, de ser resolvida, e penso que há boas perspectivas para que a lei seja alterada num sentido eficaz. O Sr. Ministro disse, e é verdade, que é preciso que a lei que venha a sair desta Assembleia não permita que qualquer expediente possa voltar a entravar este processo.
Neste caso concreto, não há risco de, por exemplo, uma empresa que queira comercializar o genérico de um medicamente que ainda esteja protegido pela patente se atreva a fazê-lo aproveitando o novo mecanismo que venha aqui a ser criado, porque a penalização que teria mais tarde, quando um verdadeiro detentor de patente conseguisse provar que a patente ainda estava em vigor e, consequentemente, obter uma vultuosíssima indemnização, significaria para quase todas as empresas que produzem genéricos o encerramento.
Portanto, aqui «o medo guarda a vinha»; ninguém se atreverá a entrar no mercado com um pedido de comercialização de medicamento genérico se não tiver a certeza absoluta de que a patente, de facto, já caducou e que só expedientes inaceitáveis estão a procurar prolongá-la.
Este aspecto é importante, porque os pontos de vista da segurança jurídica e do mercado dos medicamentos devem ser tidos em conta.
Finalmente, queria ainda referir-me a uma outra matéria que aqui foi abordada pelo Sr. Ministro — a questão das descomparticipações e das comparticipações. É evidente que todos os anos há comparticipações e descomparticipações, aliás, até há um período anual em que é obrigatória a revisão das comparticipações dos medicamentos, que este ano foi obnubilado pelo governo do Partido Socialista para não ter de baixar os preços de uma série de medicamentos à indústria farmacêutica.
O problema, Sr. Ministro, é que, ao contrário do que acontece em muitas situações, em que medicamentos são indevidamente comparticipados porque não têm benefício terapêutico que o justifique, no caso que está
em cima da mesa, que é o da pílula, não há nenhuma razão de saúde pública, nenhuma razão no que se refere à utilidade do medicamento para que seja considerada qualquer descomparticipação. Só há razões economicistas, só há razões de poupança e, porque a política de saúde não pode ser feita a partir de uma folha de cálculo num qualquer programa informático, temos de olhar primeiro para as pessoas e para o seu direito de acesso aos medicamentos e só depois para os custos e para a necessidade de melhor utilizar o dinheiro.
Porém, o que o Governo faz é exactamente o contrário, ou seja, corta na despesa, independentemente da consequência para a saúde pública. O que dizemos é que é preciso preservar a saúde pública utilizando bem os dinheiros públicos e não cortando cegamente, como, pelos vistos, o Governo se prepara para fazer em matéria de pílula contraceptiva.

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