Projecto de Lei N.º 357 /XII/2.ª

Cria a Comissão Nacional dos Direitos das Crianças e Jovens

Cria a Comissão Nacional dos Direitos das Crianças e Jovens

Exposição de Motivos

Vivem-se hoje dias de retrocesso objetivo na garantia e cumprimento dos direitos das crianças, designadamente da parte do Estado, com expressão muito para lá dos números. A existência de um diagnóstico é uma condição determinante para orientar uma intervenção estruturada e planificada de garantia dos direitos das crianças e de erradicação da pobreza infantil em Portugal.

De acordo com o Relatório «Medir a Pobreza Infantil» apresentado pela Unicef em 2012, 27% das crianças portuguesas vivem em situação de carência económica, percentagem que se agrava para 46,5% no caso das crianças que vivem em agregados monoparentais e mais ainda em famílias cujos pais estão desempregados em que o índice de carência atinge os 73,6%. O Relatório conclui ainda que 14,7% das crianças portuguesas até aos 16 anos vivem abaixo do limiar de pobreza, isto é em lares cujos rendimentos anuais por adulto estão abaixo da mediana da distribuição dos rendimentos (cerca de €400/mês).

Note-se, porém, que este Relatório foi construído com base em indicadores de 2009, portanto anteriores ao agravamento da situação de crise, à aplicação do Pacto da Troika e ao agravamento das políticas de austeridade, o que significa que estes dados pecam por defeito.

Efetivamente, tudo indica que neste momento a situação da pobreza infantil é muito mais grave e, apesar de ainda não existirem dados estatísticos atualizados que a permitam medir, os sinais vindos da sociedade são muito preocupantes.

A pobreza infantil e a exiguidade dos dados disponíveis para o seu profundo conhecimento é revelador do insuficiente cuidado no tratamento e acompanhamento que os diversos organismos, os poderes públicos e as instituições na análise das causas e respostas a este flagelo.
Aliás, esta insuficiência era assinalada em Março de 2011 pelo Conselho Nacional de Educação, através da Recomendação “10ª Recomendação - Fomentar o desenvolvimento da investigação - Considera-se necessário criar um espaço de observação que permita “cartografar a situação das crianças portuguesas”: por que não um Observatório sobre a Infância em Portugal.”
Assim como em 2008, nesta data era afirmado que “A situação da infância em Portugal, apesar dos significativos avanços nas últimas décadas, continua a ser pautada por um conjunto de indicadores preocupantes como, por exemplo, o aumento percentual da pobreza infantil. A própria intervenção social com as crianças e as famílias carece de meios de diagnóstico que sejam adequados e eficazes. Não há nenhum espaço institucional de análise permanente e continuada sobre as crianças. Desde a extinção da Comissão Nacional para os Direitos da Criança que em Portugal não se realizam estudos sobre a aplicação da Convenção sobre os Direitos da Criança e, em geral não existem dispositivos de análise e monitorização das políticas públicas com impacto nas crianças. Assim, podemos afirmar que é necessário a criação de um Observatório sobre a Infância e sobre as Crianças em Portugal de forma a congregar os dados existentes que nos permitem cartografar a situação das crianças portuguesas assim como proporcionar o diagnóstico, estudo e monotorização das políticas públicas para a infância (…). ”
A Declaração Universal dos Direitos da Criança foi proclamada pela Organização das Nações Unidas a 20 de Setembro de 1959, e passados 20 anos foi celebrado o Ano Internacional da Criança.
Contudo, só em 1989, com a adoção por parte da ONU da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (ratificada por Portugal no ano seguinte), é que a Criança passou a ser considerada como cidadão dotado de capacidade para ser titular de direitos.
A todas as crianças deve ser assegurado, o direito à proteção e a cuidados especiais, o direito ao amor e ao afeto, ao respeito pela sua identidade própria, o direito à diferença e à dignidade social, o direito a serem desejadas, à integridade física, a uma alimentação adequada, ao vestuário, à habitação, à saúde, à segurança, à instrução e à educação.
Estes direitos estão intimamente ligados à felicidade e ao bem-estar das famílias e dos que as rodeiam, isto é, ao cumprimento efetivo dos direitos civis, sociais, económicos e culturais por parte do Estado, bem como pelo assumir das responsabilidades para garantir na prática da vida das crianças, os princípios da Constituição da República Portuguesa e outros princípios internacionais, como o da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificado por Portugal no ano de 1990.
Pese embora a vigência destes direitos fundamentais em forma de lei, a vida quotidiana de milhares de crianças no nosso país é hoje marcada por negação de direitos. As causas estruturais da pobreza em Portugal têm sido profundamente agravadas com mais de 36 anos de políticas de direita, o processo de integração capitalista na União Europeia, a natureza do capitalismo e da crise, e a aplicação das medidas do Pacto de Agressão da Troika.
Cada vez mais famílias têm dificuldades em cumprir as necessidades básicas das crianças com alimentação, vestuário, habitação, material escolar e cuidados de saúde. Há fome na escola, porque há fome em casa. Falências e encerramento de empresas, salários em atraso, desemprego, cortes nos apoios sociais, no subsídio de desemprego, abono de família, rendimento social de inserção, aumento do custo de vida. É uma espiral de empobrecimento que arrasa a vida de largos milhares de famílias no nosso país.

A Sociedade Portuguesa de Pediatria denunciou recentemente que têm surgido nos hospitais casos que não se registavam há 20 anos; mães que acrescentam água ao leite artificial, ou dão leite de vaca a bebés de meses; crianças que na segunda-feira nos refeitórios escolares repetem tudo o que puderem; pais que não têm condições de acompanhar os filhos no internamento hospitalar.

A Rede Europeia Anti-Pobreza alerta para consequências do desemprego dos pais na vida das crianças: situações de elevada instabilidade emocional e psicológica que influenciam as vivências das crianças e provoca em muitos casos problemas de aprendizagem, de inserção no meio escolar, de discriminação, violência.

Em Portugal, a taxa de risco de pobreza é superior à de alguns países com rendimentos mais baixos, mesmo após a transferência dos valores das prestações sociais, o que torna claro a necessidade efetiva de reforço dos mecanismos sociais de combate à pobreza e à exclusão social. Para além disto, o aumento do risco de pobreza está em estreita relação com a destruição, em curso, de importantes funções sociais do Estado. Os cortes nas prestações sociais são ainda mais injustos e chocantes, ao mesmo tempo que o Governo disponibiliza 12 mil milhões de euros para os grupos económicos e financeiros.

O PCP realizou no passado mês de Janeiro uma audição parlamentar sobre o flagelo da pobreza infantil, onde diversas de organizações, associações, entidades e personalidades deram um contributo precioso para a análise da pobreza infantil e ajudaram a apontar saídas efetivas para este flagelo.

Reconhecemos que a realidade atual exige uma resposta efetiva a situações extremas de carência, mas não pode ser orientada por princípios assistencialistas contrários à necessidade de erradicação profunda da pobreza e da garantia da emancipação individual e coletiva dos cidadãos.

Aliás, defendemos que o combate à pobreza e à exclusão social é inseparável de um caminho mais geral de crescimento económico, valorização do trabalho e dos trabalhadores, de uma política de aumento dos salários e das pensões, de maior justiça na distribuição da riqueza, elevação das condições de vida do povo; a aposta num sistema público de segurança social forte, num serviço nacional de saúde público, universal e gratuito, e numa escola pública e democrática que garanta a igualdade de direitos e de oportunidades para todos.

Conscientes deste desígnio, somos contudo confrontados com a inexistência de um diagnóstico regular, permanente, rigoroso e profundo sobra a situação da Criança no nosso país.

A proposta que fazemos neste diploma de criação da Comissão Nacional para os Direitos das Crianças e Jovens pretende responder à inexistência e insuficiência de dados, à análise das especificidades da situação nacional, apontando no caminho do desenvolvimento humano e social respostas efetivas para atender à situação das crianças.

A criação da Comissão Nacional para os Direitos das Crianças e Jovens pretende dar corpo a uma das responsabilidades do Estado nas suas obrigações e deveres face aos problemas da Criança e tudo quanto se reporta à exigência de acompanhamento, análise e definição de medidas adequadas à evolução de fenómenos sociais. Por isso mesmo, o “Comissão Nacional para os Direitos das Crianças e Jovens” não poderá ser indiferente ao papel do Estado naquelas que são as suas funções e deveres sociais, de contribuir para que se criem as condições de autonomia económica e social e a efetivação de direitos.

A “Comissão Nacional para os Direitos das Crianças e Jovens” deve reunir as diferentes instituições, movimentos e parceiros sociais, favorecer a sistematização de um diálogo e de articulação interinstitucional, assim como a concertação de estratégias que permitam rentabilizar os recursos já existentes e apresentar novas soluções para os problemas sociais da Infância.

Assim, ao abrigo das disposições legais e regimentais aplicáveis o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projecto de Lei:

Artigo 1.º
Criação

Com o presente diploma é criada a Comissão Nacional dos Direitos das Crianças e Jovens, com o objetivo de acompanhar a história da defesa dos direitos da Criança em Portugal e os problemas de violação de direitos humanos fundamentais, com particular destaque para a pobreza infantil.

Artigo 2.º
Funções

A Comissão Nacional dos Direitos das Crianças e Jovens Criança tem as seguintes funções:

a) Caracterizar e analisar a extensão e profundidade da violação dos direitos humanos no contexto da Infância;
b) Monitorizar a evolução das desigualdades sociais, dos problemas da pobreza e da exclusão social e seus impactos para a Infância;
c) Analisar as causas e factores da multidimensionalidade da pobreza, promovendo um olhar sobre a pobreza infantil;
d) Propor medidas de promoção do desenvolvimento com coesão económica e social e de afirmação de uma cultura dos direitos da Criança;
e) Acompanhar os impactos e a eficácia das políticas sociais implementadas em Portugal e suas repercussões para a situação social da Criança;
f) Dar pareceres sobre as políticas do Governo nesta matéria mediante prévia consulta;
g) Definir indicadores específicos para a caracterização dos universos das crianças excluídas socialmente;
h) Proceder ao tratamento de dados e indicadores sociais enviados pelos serviços da Administração Pública;
i) Colaborar com as entidades públicas e privadas competentes na promoção das crianças excluídas socialmente;
j) Formular propostas de promoção da integração das crianças excluídas socialmente, designadamente com vista à promoção oportunidades iguais ao nível da escolaridade na educação para a saúde e acompanhamento das famílias mais carenciadas, na promoção de melhores condições habitacionais e quanto à proteção às famílias;
k) Elaborar e publicar informações, estudos e relatórios;
l) Apresentar anualmente, até 31 de Dezembro, um relatório sobre a situação social da Infância e, em especial, relativa à integração das crianças excluídas socialmente.

Artigo 3.º
Composição

A Comissão Nacional dos Direitos das Crianças e Jovens é composta pelas seguintes entidades:

a) Um representante do Instituto da Segurança Social, IP;
b) Um representante da ANMP – Associação Nacional de Municípios Portugueses;
c) Três representantes das Instituições Particulares de Solidariedade Social;
d) Um representante da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens;
e) Um representante de cada uma das centrais sindicais;
f) Um representante da Sociedade Portuguesa de Pediatria;
g) Um representante da CNASTI – Confederação Nacional de Acção Sobre o Trabalho Infantil;
h) Um representante do IAC – Instituto de Apoio à Criança;
i) Um representante das Associações de Solidariedade Social;
j) Cinco personalidades de reconhecido mérito com trabalho desenvolvido sobre a situação social da Infância, indicadas pela Assembleia da República.
Artigo 4.º
Direcção

1- A Comissão Nacional dos Direitos das Crianças e Jovens elege, de entre os seus elementos, uma Direcção composta por um presidente e dois vogais.

2- A Direcção elabora no prazo de sessenta dias, após a sua instalação, o respetivo regulamento interno.

3- Os membros da Direcção não recebem qualquer remuneração adicional decorrente do assumir destas funções.

Artigo 5.º
Tutela

A Comissão Nacional dos Direitos das Crianças e Jovens funciona em instalações próprias, sob tutela do Ministério responsável pelas políticas sociais, que lhe deverá atribuir os meios físicos, humanos e financeiros necessários ao seu funcionamento e inclui-lo no respetivo orçamento.

Artigo 6.º
Instalação

A Comissão Nacional dos Direitos das Crianças e Jovens será instalada noventa dias após a entrada em vigor da presente lei.

Artigo 7.º
Regulamentação

A presente lei será regulamentada no prazo de sessenta dias após a sua publicação.

Artigo 8.º
Entrada em vigor

O presente diploma entra em vigor após a publicação do Orçamento de Estado subsequente à sua publicação.

Assembleia da República, em 15 de Fevereiro de 2013

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