A Convenção e a Cimeira de Salónica


Na recente Cimeira de Salónica foram tomadas decisões muito preocupantes sobre o processo de integração europeia, designadamente em torno da Convenção e da chamada constituição europeia; da reafirmação das decisões de Sevilha em matéria de imigração, visando a criação de uma "Europa fortaleza"; da manutenção das políticas monetaristas do Pacto de Estabilidade e dos objectivos neoliberais para a reforma dos mercados de trabalho, dos sistemas públicos de segurança social e de saúde e da privatização da generalidade dos serviços públicos.

Foi igualmente decidido que a dita constituição europeia sirva de base para os trabalhos da Conferência Intergovernamental convocada para Outubro, o que representa um novo salto qualitativo no processo de integração, consolidando as bases e os eixos fundamentais lançados no Tratado de Maastricht, posteriormente desenvolvidos em Amesterdão, mas sobretudo em Nice, cujo tratado entrou em vigor há poucos meses.

A chamada constituição europeia

São completamente inaceitáveis as propostas de alteração do figurino institucional da União Europeia, com o reforço da natureza federalista dos seus órgãos e do seu comando pelas grandes potências. São particularmente graves as que se referem ao fim das presidências rotativas do Conselho Europeu, à eleição de um presidente segundo regras que dão um papel determinante aos grandes países, à não existência de um Comissário por país com iguais direitos e a ampliação das decisões por maioria qualificada, em prejuízo do direito de veto.

A Convenção, o seu trabalho e os respectivos resultados, têm sido apresentados como a possibilidade de dar resposta a quatro questões fundamentais: democratizar as instituições; aproximar aos cidadãos e funcionar de portas abertas; criar uma nova Europa, que inclua os países de leste, que alguns, com maiores tendências de anti-comunismo primário ou anti-sovietismo serôdio, apelidam de "libertação da cortina de ferro"; ser alternativa ao imperialismo americano.

Vou tentar provar, ainda que de forma sucinta, que, quer a realidade do que se passou, quer os conteúdos obtidos, são exactamente o contrário daquilo que se disse pretender. Vejamos então:

Democratizar - Como é que se pode considerar que se conseguiu aprofundar a democracia quando, à partida, se excluiu a possibilidade de participação na Convenção de todos os partidos representados na Assembleia da República? Que democracia é esta que apenas incluiu, no caso português, deputados do PS e do PSD da Assembleia da República, seja como efectivos, seja como suplentes? Que democracia é esta que acaba com a possibilidade de cada País ter um comissário e uma presidência rotativa, e admite que a opinião de três grandes países seja determinante para bloquear qualquer escolha dos restantes vinte e tal outros Estados - membros da União? Como é que as instituições ficam mais democráticas, se reduzem a possibilidade de cada país defender os seus interesses, e aumentam os momentos em que as decisões serão tomadas apenas pelos grandes, mesmo contra a opinião dos pequenos e médios países?

Aproximar dos cidadãos e funcionar de portas abertas - Como é que se pode aceitar que houve uma aproximação dos cidadãos, quando Portugal e outros países vão perder deputados no Parlamento Europeu e a Alemanha vai aumentar proporcionalmente a sua representação? Como é que pode haver uma aproximação dos cidadãos, se querem que as decisões fundamentais sejam tomadas por maioria, tendo por base critérios demográficos, e não por unanimidade? Como é que se pode dizer que aproximam o poder das populações, se as decisões em termos de políticas monetárias são tomadas pelo Banco Central Europeu, cuja direcção não é eleita, não tem a representação de todos os Estados-membros, nem é fiscalizada por nenhum outro órgão comunitário, embora continuem a ser políticas prioritárias e a sobrepor-se às políticas económicas e sociais? Como se pode afirmar que funcionam de portas abertas, se os problemas sociais e os direitos das pessoas são secundarizados e cada vez mais restritivos?

Permitir o alargamento - O alargamento já é possível sem que o trabalho da Convenção entre em vigor. Aliás, a própria Convenção admite que aspectos centrais do tratado constitucional ou constituição europeia só entre em vigor em 2009. E o alargamento a 25 países está previsto para 1 de Maio do próximo ano. É, pois, perfeitamente possível funcionar na base das actuais regras, que foram aprovadas em Nice, que apenas entraram em vigor há escassos meses. O que se pretende escamotear são as discriminações que praticaram contra os países candidatos, designadamente em termos de fundos comunitários e de livre circulação de pessoas.

O que se pretende é ir cada vez mais longe no processo de integração europeia e na possibilidade de defesa dos interesses económicos e financeiros dominantes que, em geral, embora sejam grupos económicos com sede nos países mais ricos, mantêm os seus tentáculos e interesses nos pequenos e médios, onde as burguesias locais admitem ganhar mais se forem submissas aos grandes, do que se optarem por um desenvolvimento autónomo.

Ser alternativa aos EUA - A posição belicista e imperialista dos EUA é aproveitada, sobretudo pelos que gostariam de pertencer a um império semelhante, para defender a transformação da União Europeia num novo bloco político militar, esquecendo os custos e as dificuldades de tal caminhar e o beco sem saída, que poderia conduzir a uma guerra, com a nova corrida aos armamentos.

Javier Solana, o Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da UE, na sua comunicação ao Conselho Europeu de Salónica, de 20 de Junho passado, considerou que a proliferação das armas de destruição maciça é a mais importante das ameaças à paz e à segurança entre as nações, referindo que o cenário mais assustador é a aquisição de armas de destruição maciça por parte de grupos terroristas. Mas quem utilizou até hoje as armas de destruição maciça? Não foram os EUA nos bombardeamentos do Afeganistão e no Iraque? Como se pode ignorar que o seu orçamento da defesa é semelhante ao total do orçamento comunitário?

No entanto, Solana parte daí para a defesa de uma cultura estratégica que promova a intervenção precoce, rápida e enérgica, justificação que considera suficiente para criar uma Política Externa e de Segurança Comum e uma Política Europeia de Segurança e Defesa na União Europeia.

A unidade de comando é a sua meta, seja em termos militares e diplomáticos, seja de informação, para o que requer mais meios financeiros para a defesa. Sublinhe-se que o objectivo da unidade de comando é actuar em conjunto com os EUA, considerando que "actuando em conjunto, a União Europeia e os EUA podem ser no mundo uma extraordinária força benéfica". Se-lo-iam, se o seu objectivo fosse apoiar o desenvolvimento, pôr fim à fome e, deste modo, evitar o terrorismo e construir a paz.

Mas com o que se está a passar no Iraque e no Afeganistão, alguém acredita? Todos sabem que os grandes beneficiários são os mesmos de sempre neste mundo capitalista: as multinacionais do petróleo e outras matérias primas energéticas, o poderoso império da indústria armamentista, os negócios das armas, da droga e do tráfico de seres humanos. Aliás, na Cimeira de Salónica, o Conselho decidiu já a criação, em 2004, de uma agência intergovernamental no domínio do desenvolvimento das capacidades de defesa, de investigação e da aquisição de armamento.

Assim, neste momento, a oposição aos propósitos da chamada constituição europeia, que prevê a criação da tal Política Externa e de Segurança Comum, é também uma luta contra uma nova política de blocos político-militares e pela defesa da paz.

O Referendo

Neste momento não há ainda qualquer constituição europeia. O que existe é uma proposta de trabalho da Convenção que o Conselho Europeu, na Cimeira de Salónica, considerou uma base para a Conferência Intergovernamental que convocou para Outubro. Só depois disso saberemos que texto teremos para debate e votação na Assembleia da República e para eventual referendo.

De qualquer modo, é fundamental que se realize, desde já, um amplo debate nacional em torno da proposta saída da Convenção, a dita constituição europeia, que merece a nossa oposição. É que tal proposta, além de pretender menorizar a Constituição da República em pontos fundamentais da soberania portuguesa, aprofunda o federalismo, agrava o centralismo das decisões, dá mais poder aos grandes países, não respeita o princípio da igualdade entre estados soberanos e iguais, menoriza os direitos dos cidadãos, intensifica os mecanismos do neoliberalismo e secundariza a área social, o desenvolvimento sustentado, a coesão económica e social e a paz.

Quanto ao referendo, recordo que foi o PCP quem primeiro o solicitou e propôs que se realizasse sobre o Tratado de Maastricht. Infelizmente, não aceitaram a nossa proposta. Também na revisão constitucional propusemos que se incluísse a possibilidade de realização de um referendo para Tratados internacionais. Não o aceitaram. Assim, não se pode agora insinuar que o PCP não quer um referendo sobre questões europeias.

Pela nossa parte, o debate está lançado.