Projecto de Lei N.º 847/XIV/2.ª

Confere natureza de título executivo às decisões condenatórias da ACT e altera o regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social

...procedendo à 3.ª alteração à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.

Exposição de motivos

Em Portugal a realidade laboral traduz de forma indelével o fosso existente entre a consagração legal dos direitos e a sua concretização, cumprimento e exercício efetivo.

Tal é visível através do desrespeito, incumprimento e violação de direitos dos trabalhadores e é inseparável do agravamento das condições de trabalho, da precarização das relações de trabalho, da desregulamentação dos horários, facilitação e embaratecimento dos despedimentos.

Urge tomar medidas alternativas que contrariem a destruição e degradação das relações de trabalho e das condições de vida, promovidas por sucessivos governos e em particular pelo anterior Governo PSD/CDS, onde a generalização da precariedade e não o seu combate, corporizava uma estratégia de substituição de trabalhadores com direitos por trabalhadores sem direitos.

A precariedade é um flagelo individual e coletivo que representa uma grave violação de direitos e exige o seu firme combate e erradicação.

A precariedade dos vínculos é a precariedade da família, é a precariedade da vida, mas é igualmente a precariedade da formação, das qualificações e da experiência profissional; é a precariedade do perfil produtivo e da produtividade do trabalho, sendo deste modo, um fator de instabilidade e de injustiça social, mas é, em paralelo, um fator que compromete o desenvolvimento do país.

Do Relatório de Atividades do ano de 2018 da Autoridade para as Condições de Trabalho, conclui-se que da atividade inspetiva levada a cabo, foram detetados um total de 484 contratos de trabalho dissimulados, ou falsos recibos verdes.

Quadro 76 – Nº trabalhadores detetados no âmbito do trabalho não declarado (incluindo dissimulado) – 2018
Anos N.º de Empresas Acompanhadas N.º. de Trabalhadores
Contrato Dissimulado Regularizados Não Declarado Regularizados
2014 16.603 1.510 507 2.591 1.079
2015 14.622 478 291 3.002 1.600
2016 15.829 559 84 3.527 1.236
2017 23.615 592 288 1.077 532
2018 18.105 484 158 988 225

Tendo sido 182 as participações ao Ministério Público, no âmbito do artigo 15.º-A n.º 3 da Lei n.º 63/2013, para que o mesmo instaurasse as competentes ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

Quadro 30 - N.º de Participações ao Ministério Público
Objeto da Participação N.º
Desobediência qualificada Regularizados
Encerramento de empresa 12
Falsificação de documentos 4
Desobediência 1
Efeitos para o empregador da falta de pagamento pontual de retribuição 5
Violação da proibição de substituição de grevistas, de coação, prejuízo ou discriminação de trabalhador 7
Lock-out 1
Retenção de quota sindical 1
Violação de regras de segurança 6
Infração de regras de construção 1
Violação de autonomia, independência sindical, ou por ato discriminatório 1
Participação por utilização indevida de contratos de prestação de serviços, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho 261
TOTAL 261

Resulta do Relatório que das 261 participações feitas, 30,27% foram relativas a procedimento criminal (nas situações em que os(as) inspetores(as) do trabalho recolheram indícios da prática de factos que constituem um tipo legal de crime (Código do Trabalho e Código Penal) e 69,73% no âmbito da utilização indevida de contratos de prestação de serviços.

De referir que, tendo em consideração que é possível à ACT levantar autos de advertência em situações que ainda não tenham resultado prejuízo sério para os trabalhadores, mas que no futuro possa vir a resultar, fica demonstrado que inexiste efeito prático na advertência emitida, permitindo às entidades empregadoras a continuidade de práticas prevaricadoras e os trabalhadores continuarão a ver os seus direitos permanentemente violados por estas.

Ainda nessa sequência, é mencionado no Relatório que “O trabalho total ou parcialmente não declarado à Administração do Trabalho e à Segurança Social, por empresas da economia informal ou da economia estruturada, e fenómenos como a dissimulação do contrato de trabalho, através de figuras como a falsa prestação de serviços, os falsos estágios remunerados ou falsas situações de voluntariado constituem fenómenos que contribuem para a segmentação social (com a constituição de grupos de trabalhadores afastados da proteção social) e para a insuficiência financeira das receitas públicas, sendo ainda um grave fator de concorrência desleal para as empresas que cumprem as suas obrigações.

A situação de crise recente tem potenciado o crescimento das situações de trabalho total e parcialmente não declarado, diminuindo as fontes de receita e os recursos financeiros do Estado, sendo cada vez menor na sociedade o nível de consciência da necessidade de cumprimento quanto a estas matérias.

O trabalho não declarado tem também efeitos negativos nas condições de trabalho dos

trabalhadores e dos seus direitos, seja pela insegurança do enquadramento (potenciadora de riscos psicossociais), falta de proteção social, em caso de doença ou acidente de trabalho, falta de vigilância da saúde, ausência de sistema reparador e de reintegração em caso de acidente de trabalho ou doença profissional, colocando os trabalhadores em situações de risco, sendo, em muitos casos, fator de discriminação e exclusão social.

Assim, a ACT tem procurado dar especial enfoque a este fenómeno para promover o reforço da efetividade do direito neste âmbito.”

No entanto, das situações de contratos de trabalho dissimulados ou falsos recibos verdes detetadas pela ACT, em vários sectores de atividade, menos de metade foi efetivamente regularizada.

Relativamente à Ação Especial de Reconhecimento da Existência do Contrato de Trabalho, importa referir que o trabalhador só é tratado como “parte”, caso adira à pretensão do Ministério Público, que tem a competência para dar impulso processual por via do artigo 15.º-A da Lei n.º 63/2013, ou apresente articulado autónomo com a sua pretensão. Acresce que, para que o trabalhador seja parte, tem obrigatoriamente de constituir mandatário ou mandatar o Ministério Publico para o efeito.

Não deixa de ser questionável a legitimidade do Ministério Público para dar impulso a uma ação especial, cujo principal visado e “parte” é o trabalhador, sendo que o mesmo deveria ter acesso a um mecanismo mais célere e exequível para reconhecimento do seu contrato de trabalho.

Quanto à tentativa de conciliação, a mesma decorre com a presença do “trabalhador” e do “empregador”, cujo objetivo fundamental é a transação entre as partes, podendo a mesma não ser coincidente com a pretensão do Ministério Público, podendo significar também que o trabalhador possa aceitar que está no âmbito de uma prestação de serviços.

Como é referido no Acórdão do tribunal da Relação do Porto de 17.12.2014, no Processo n.º 309/14.6TTGDM.P1, “(…) [A] Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, não é um exemplo da arte de bem legislar, suscitando imensas dúvidas e questões” e “está cheia de incongruências”.

Para o PCP não só é possível, como é urgente promover de uma vez por todas, um efetivo combate aos falsos recibos verdes para trazer justiça à vida de milhares de trabalhadores que são duramente explorados e sujeitos a uma brutal precariedade. Urge a criação de mecanismos dissuasores do recurso a estas práticas ilegais, assim como dar ao trabalhador a possibilidade de recurso a meios mais eficazes de reconhecimento da relação laboral subordinada, através da ação executiva.

Propomos, por isso:

  • Que, sempre que detetada uma situação de irregularidade de recurso ilegal à prestação de serviços pela ACT no âmbito do artigo 15.º-A da Lei n.º 63/2013, seja dada força executiva à decisão condenatória, no sentido do trabalhador ver, não só a simples apreciação do reconhecimento da sua relação laboral com subordinação jurídica ao empregador, o qual terá sempre direito ao contraditório, mas também que mesma seja imediatamente convertida em contrato de trabalho sem termo, cabendo então à entidade patronal provar a legalidade do recurso aos «recibos verdes».
  • Que a emissão dos autos de advertência seja limitada apenas nos casos de infrações classificadas como leves e que não causem, no imediato, prejuízo grave para os trabalhadores.

Nestes termos e ao abrigo da alínea b), do artigo 156.º da Constituição da República Portuguesa e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:

Artigo 1.º

Objeto

Com vista a proteger os direitos dos trabalhadores e a dar eficácia ao combate à violação das leis laborais a presente lei altera o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social, procedendo à 3.ª alteração à Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, limitando as situações em que é possível levantar autos de advertência e conferindo natureza de título executivo a todas as decisões condenatórias da ACT.

Artigo 2.º

Alteração à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro

Os artigos 10.º e 26.º do regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro e alterado pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, passam a ter a seguinte redação:

Artigo 10.º

(…)

  1. (…):
    1. (…);
    2. (…);
    3. (…);
    4. Levantar autos de notícia e participações, relativamente a infrações constatadas no exercício das respetivas competências, bem como levantar autos de advertência apenas no caso de infrações classificadas como leves e que não causem prejuízo grave para os trabalhadores, para a administração do trabalho ou para a segurança social.
  2. (…):
    1. (…);
    2. Levantar autos de notícia e participações, relativamente a infrações constatadas no exercício das respetivas competências, bem como, levantar autos de advertência apenas no caso de infrações classificadas como leves e que não causem prejuízo grave para a segurança social;
    3. (…);
    4. (…);
    5. (…);
    6. (…);
    7. (…);
  3. (…).
  4. (…).

Artigo 15.º-A

Procedimento a adotar em caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviços

  1. (…).
  2. (…).
  3. Findo o prazo referido no n.º 1 sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada e sem que o trabalhador tenha intentado ação executiva nos termos do artigo 26.º, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público da área de residência do trabalhador, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
  4. (…).

Artigo 26.º

(…)

  1. A decisão condenatória que não seja cumprida tem a natureza de título executivo.
  2. [novo] O auto de regularização, previsto no n.º 1 do artigo 15.º-A, adquire força executiva quando, decorrido o prazo nele descrito, a situação não tenha sido regularizada.
  3. [novo] O trabalhador deve intentar respetiva ação executiva no prazo de 20 dias contados a partir do momento da aquisição do título executivo, sob pena de perda do direito.
  4. [novo] O Ministério Público pode, a todo o momento, aderir à ação executiva interposta pelo trabalhador.
  5. [novo] A entidade empregadora pode opor-se à execução, com efeito meramente devolutivo, no prazo de 20 dias a contar da citação.
  6. [novo] Findo o prazo constante do n.º 3 sem que a ação executiva tenha sido intentada, aplica-se o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 15.º-A.

Artigo 3.º

Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.